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Capitulo II
Capitulo II

Capítulo II

Às vezes, nos finais de semana meu pai ia ao estádio de futebol ver o jogo ao vivo. Naquele domingo, embora não fosse lá muito amante de futebol, eu fui junto e vestido à caráter na camisa do São Paulo.

Na volta, já na rua de casa reparei numa Kombi branca que nos ultrapassou e encostou logo adiante para despejar um garoto das redondezas que também voltava do jogo. A Kombi estava cheia de moleques que faziam uma algazarra mais ou menos! O garoto que desceu morava na minha rua mas eu o conhecia muito de longe, só de vista mesmo porque ele nunca estava por ali.

Eu ia passando ao lado do meu pai quando o tal menino olhou para mim. E não sei se por pura obra do acaso ou porque o São Paulo havia ganho o jogo e isso deixava a todos muito felizes, inacreditavelmente ele puxou papo comigo.

— Êh, meu! Você também é são-paulino, é? — Gritou ele de longe para mim.

Fiquei surpreso e satisfeito com a pergunta:

— Sou, sim! Você também viu o jogo? — Gritei de volta.

— Vi, estou voltando de lá agora!

Meu pai resmungou em tom que só eu ouvisse e me chamou logo:

— Venha cá, Eduardo, não vai se meter com essa ralé.

Eu fiz que não ouvi.

— Legal! - Diminuí um pouco o passo. — Eu também fui ao estádio, super jóia, né? Que jogo!

— Pô, cara, maneiro, altos lances! Só deu fina neste jogaço!

A medida que eu retardava o passo meu pai aumentava o dele e volta e meia olhava para trás, me chamava.

— Eduardo, vamos!

— Peraí, pai, já vou.

— Como é o nome do seu pai? — Perguntou o menino.

— Otávio.

Ele bradou com as mãos em concha:

— Seu Otávio, deixa ele ficar aqui conversando um pouco com a gente!

E não é que a conversa engrenou? Não sei o que deu no moleque, mas eu não conversava assim amistosamente com ninguém fazia muito tempo. A turma da Kombi também ficou por ali um bom tempo, conversavam entre eles porque eram mais velhos. Volta e meia um deles brincava com meu colega, numa boa. E ninguém se implicou comigo. Na verdade, nem sabiam quem eu era e isso ajudou muito. A maioria deles morava ali mesmo no pedaço, mas eu não conhecia ninguém.

— E como é o teu nome? — Perguntou por fim o menino.

— Eduardo.

— Essa não! Não diga! Caramba, o meu também! É isso aí, cara, nós somos “brother” mesmo, tu é gente fina! E são-paulino ainda!

— Engraçado, eu nunca vejo você na rua!

— É que nem dá tempo, cara! Eu estou direto com o povo da “29”! — Apontou para o restante da rapaziada. — Quase todo mundo aí é de lá.

— “29”?! Que que é isso?

— Pô, meu, nunca ouviu comentar? Turma da mais entrosada, maneira mesmo, maior barato! Se tu quiser te apresento, cara. Quer ir lá hoje?

— Iiih, mancada! Hoje não vai dar, meu pai vai pegar no meu pé. Mas eu quero conhecer a turma, sim!

— Não tem galho, vamos durante a semana que teu velho nem vai se tocar, ocupado no serviço. Teu velho trabalha, né?

— Trabalha! — Dei risada com a pergunta.

— É, pois é, nem todo mundo trabalha!! De repente... vai saber.

E o papo rolou longe, conversamos muito tempo ali na calçada. O pessoal da Kombi foi dispersando mas eu e Eduardo continuamos engrenados tagarelando sobre tudo que é assunto. Ele era engraçado e extrovertido e eu, quando deixado à vontade, sabia me relacionar perfeitamente bem com quem quer que fosse. Parece que finalmente encontrava alguém com quem pudesse ter afinidade. Estava satisfeito! Arre que custou!...

Eduardo tinha quase a mesma altura que eu mas devia ser um pouquinho mais velho, beirando os seus 12 ou 13 anos. A conversa terminou com o acerto do horário para ir conhecer a tão falada “29”. Ficou marcado para o dia seguinte, segunda-feira, no final da tarde.

Saí da escola no dia seguinte com uma sensação gostosa de expectativa misturada com curiosidade, alegria e uma certa insegurança. Esta última resquício daqueles malfadados meses de tanta rejeição. No entanto se todos fossem como Eduardo eu tinha certeza de que tudo iria bem!

Foi a primeira vez que me afastei sozinho da rua de casa e da vila. Sentia-me um tanto estranho longe do nosso apartamento, da rua sem saída com linha de trem no fundo, do bandinho que corria atrás da bola e de tudo que eu conhecia. Ao dobrar a esquina o mundo se descortinou de uma forma diferente diante de mim. Não era mais simplesmente como ir à escola, agora era um compromisso particular e isso era muito importante!

Eduardo marcara encontro comigo na esquina e quando cheguei ele já me aguardava. Fomos caminhando lado a lado na avenida barulhenta e larga. Avistava-se logo adiante o shopping, a churrascaria e dois postos de gasolina frente à frente. No caminho Edú  foi me contando sobre a turma.

A sede da “29”era uma casa abandonada na esquina de uma travessa da avenida. Hoje mora gente lá, o jardim foi arrumado e a fachada está pintada. Decerto seus moradores não têm nem idéia do passado daquele lugar. Mas naquela época a turma mais bacana que já havia conhecido reunia-se ali. Na casa de número 29, totalmente abandonada, coberta de mato na frente e sem portão separando-a da rua. Olhei bem quando Edú apontou de longe:

— É ali!

A frente da casa era de um tom amarelo-claro e estava descascada pelo efeito do tempo e da falta de manutenção. Havia um corredor ao lado, provavelmente uma passagem de carro, toda de cimento bruto. A porta de entrada ficava meio escondida lá no fundo, em cima de um pequeno terraço, e o mato que cobria todo o jardim escondia parte da escada que levava à entrada.

Fiquei fascinado. Aquilo tinha um cheiro de aventura! Que bom que Eduardo ia me apresentar. Era muito ruim estar sempre só.

Fomos entrando pelo corredor lateral. Ninguém usava a porta da frente. A tarde estava calorenta e Edú disse que eles deveriam estar para fora ainda. De repente, sem muito aviso, dois garotos saíram correndo de lá do fundo do quintal, dobraram o corredor e quase nos atropelaram. Um deles pulou com brutalidade nas costas do que vinha na frente, enforcando-o pelo pescoço. O de baixo instintivamente se inclinou e virou o outro de ponta-cabeça, que acabou indo para o chão. Eles gritavam, fazendo uma balbúrdia com aquela brincadeira.

— Êh, caras, peraí!! — Exclamou Eduardo. — Vem cá que tem visita!

Acho que eles nem escutaram e voltaram correndo pelo mesmo caminho.

Eu e Edú fomos entrando. Quando dobramos o corredor em direção ao quintal uma cena incomum descortinou-se diante de meus olhos. Havia ali um grupo de mais ou menos uns quinze rapazinhos, a maioria girando em torno de seus 13 a 15 anos, alguns um pouco mais velho, talvez 16 ou 17. Mais novos, como eu, eram minoria. Eles falavam alto e conversavam enquanto Edú muito à vontade foi cumprimentando o pessoal:

— E aí, meu irmão?! Tudo em cima? — Ele saudava os amigos com um tapa de mão espalmada, mão com mão.

— Chega mais, irmãozinho!

— Este aqui é o meu xará, gente fina prá dedéu! — Edú me apresentava aos companheiros como se nos conhecêssemos há tempo.

— Toca aqui! — Era a resposta. — Amigo do Eduzinho é nosso amigo também!

— Seja bem vindo, cara, a casa é sua. Querendo cerveja ali atrás tem! É só pegar!

Apertavam minha mão e Eduardo rodava comigo pelo meio deles. Todos procuraram me deixar à vontade, cada um do seu jeito. Alguns eram efusivos e sorridentes; outros, de pouco papo mas não menos simpáticos, limitavam-se à um aceno acompanhado de um “Valeu” ou um “Tá em casa”.

Eduardo foi pegar uma cerveja para si e me estendeu outra. Comecei a reparar melhor no ambiente. O crepúsculo estava caindo e a iluminação era feita à base de diversas lanternas e velas, porque a “29” não tinha o privilégio de ter energia elétrica ligada. Ali no quintal, ao ar livre, estavam espalhadas algumas cadeiras de praia e uma de balanço meio capenga, mas a maioria deles se acomodava no chão mesmo, encostados nas paredes ou formando círculos. O chão estava muito limpo e havia um par de vassouras encostadas à um canto. Um rádio tocava música.

Reparei que três rapazes sentados no chão dividiam um único cigarro. Pensei lá no meu íntimo:

— Por que será? Vai ver eles são muito pobres!

O cigarro deles tinha um cheiro forte e diferente daqueles que meu pai fumava.

Eu e Edú nos acomodamos para engrenar no papo, afinal aquele era o motivo de estarmos ali. Eu estava impressionado como todos respeitavam-se mutuamente e, mais do que isso, respeitavam Edu e os menores. Tremendo!

Eu viria em breve a saber que a maior parte deles não tinha uma vida muito fácil. Garotos vindo de lares destruídos, da pobreza muitas vezes, com pais e irmãos envolvidos com a polícia outras tantas, muita história de alcoolismo e drogas dentro do seio familiar e mesmo no meio deles.

Mas gostei deles!

Do jeito de se tratarem, como se todos fizessem parte de uma grande e única família, chamando-se mutuamente de “Mano”, “Brother”, “Chegado”, “Companheiro”.

Eu creio que inconscientemente eu buscava uma família. Faltava aquele aconchego dentro de casa, aquela aceitação. Eu não sabia exatamente o quê me faltava, só sei que eu precisava demais.

Quando chegamos perto do grupo que fumava o cigarrinho dividido eles simplesmente disseram, à guisa de cumprimento:

— Vai aí?

Eu não entendi.

— Vai aí?? — Olhei para Eduardo.

— Eles tão te oferecendo o cigarro.

— Ah, obrigado, mas eu não fumo!

Um dos caras da roda ofereceu de novo:

— Que é isso, dá só uma tragadinha! Não quer mesmo uma provada?

Eduardo se intrometeu:

— Pega leve, ô, maninho, que ele ainda é cabaço! — E para mim. — É que este é um cigarro espeeerto! — E riu abertamente diante do meu ar de interrogação. — Olha só aqui!

Eduardo tomou nas mãos o “cigarro esperto” e o colocou debaixo do meu nariz.

— Sente !

Tinha um cheiro esquisito. Eu peguei e já ia colocando na boca, não ia mais recusar um convite tão insistente.

— Não, não! Assim não! — Edú impediu que eu fizesse errado. — Você não encosta na boca, só traga de longe, assim, puxa bem e enche o pulmão!

Ele próprio deu uma longa tragada. Voltou-se para os demais:

— Da boa essa, hein? — E estendeu novamente para mim.

Eu procurei imitá-lo mas não acertei bem. Eduardo devolveu o cigarro ao grupo, que continuou entretido.

— Esquenta não! Você aprende, meu irmão! Ainda tá cabaço mas você aprende. Depois hoje é melhor não ficar balão porque aí você não aproveita! O bagulho é caro e hoje não tem muito.

Metade do que eles diziam eu não entendia. Mas deixei passar e nada perguntei.

Acabamos nos entretendo numa roda, conversando e rindo animadamente. O pessoal era super animado e eu estava bem à vontade. Como toda Gangue que se preze, eles tinham muito o que contar sobre as brigas do final de semana e outros assuntos de interesse comum. Se bem que estes últimos fossem mais ou menos uns cinco por cento da conversa. O que tocava fundo o coração de todos eram os “Paus”... isto é, as brigas!

No meio de uma torrente de gíria pesada, vários palavrões e muita gargalhada, latinhas de cerveja rodando junto com pacotes de bolacha, eu fui descobrindo mais a respeito deles. E a conversa era tanta que, se deixasse, varava a madrugada!

Conheci vários garotos legais com quem pude conversar melhor depois que Eduardo ficou meio alegre de tanta cerveja e esqueceu de bancar o anfitrião. Mas eu já estava enturmado.

Conheci garotos que num futuro muito próximo seriam grandes amigos.

Havia o Tistu, aquele que estava lutando com um outro logo que entramos na casa. Ele era moreno claro, o cabelo roçava na altura dos ombros, sotaque carregado de malandro, uns 16 anos mas gente boa prá valer.

Tinha também o Júlio, de 15 anos, com o cabelo parafinado muito liso e comprido. Só que tinha a pele clara. Vim a saber que ele morava com a mãe mas já não tinha pai.

O Bolinha era baixinho e troncudo, um moreno claro que devia ter muitos problemas em casa porque se recusava a falar na família. Aliás ele sequer ia para casa, era muito raro. Normalmente ele morava ali mesmo na “29”. O nome dele de verdade era Helton mas o apelido vinha do fato de que ele usava muita “bolinha”. Eu ainda não sabia bem o que era bolinha, mas depois descobri que era droga. Com 14 anos ele já era quase dependente. Com o tempo realmente viria a ser.

O Éder era só um pouco mais velho do que eu, tinha uns 13 para 14 anos e me pareceu muito legal. Ele morava com a família, mas era uma coisa meio virtual porque o pai dele era caminhoneiro e vivia com o pé na estrada. Ele tinha também dois irmãos mais velhos que quase nunca estavam em casa. Por isso a liberdade dele era total.

O Márcio era um dos mais velhos do grupo, tinha 18 anos e me tratou muito bem apesar da diferença de idade. Era mulato, com cabelo comprido e cheio de tranças rastafari. Ele também ia muito pouco para casa, preferia morar ali mesmo na “29”.

A maioria deles era de mulatos ou morenos claros. Havia poucos brancos, eu, Edú, Júlio e mais um ou dois apenas.

Enquanto Eduardo ria à valer com outros dois, aproveitando o efeito da bebida, Tistu e Júlio aproximaram-se de mim querendo saber tudo, se eu tinha irmãos, onde morava, o que fazia. Fui falando e perguntando também sobre eles e sobre a turma. Descobri que a Gangue era muito maior, mas a maioria não estava presente no momento.

Acabei ficando por lá até umas onze horas da noite, totalmente esquecido do horário.

Quando cheguei em casa o tempo estava quente por causa da minha ausência. Minha mãe estava toda desesperada em casa e meu pai já havia rodado várias vezes a rua, a vila e as imediações perguntando aos vizinhos do meu paradeiro. Normalmente eu ficava sempre por ali mesmo depois da escola e meu pai costumava assobiar da janela do apartamento tão logo caía a noite. E eu sabia que era hora de entrar. Imagino que naquele dia meu pai deva ter ficado até sem boca de tanto assobiar... e nada de mim!!!

Levei altos pitos assim que entrei com a cara mais lavada do mundo. Passava das onze! Em quase 12 anos de vida eu nunca aprontara uma dessas. Mas sempre acaba tendo uma primeira vez.

— Eu esqueci da hora, pai! — Fui explicando rápido antes que me sobrassem alguns cascudos.

— E posso saber aonde é que o senhor esteve até agora?!!

— Fui com Eduardo conhecer um pessoal super-bacana logo aqui pertinho...

— Eu já te disse que este tal Eduardo e toda aquela gente da Kombi não presta!!! São um bando de maloqueiros, não precisa de bola de cristal para adivinhar isso, vai ver tem até marginal no meio! Você é um garoto de família e eu não quero que você me comece a andar com este tipo de gente! Você está me entendendo??! Eu não criei filho para isso! E agora vá já dormir que amanhã tem aula. Imagine só, ficou até estas horas com esse bando de desocupados!

Eu obedeci e fui para o quarto porque era a única coisa a fazer no momento.

— Eu não acho que eles não prestam. — Raciocinei. — Me trataram tão bem... são super-legais!

Com este pensamento não esquentei a cuca com o que meu pai dissera, e adormeci. Tinha adorado a Gangue! E realmente as advertências entraram por um ouvido e saíram pelo outro. Todas as tardes depois da aula eu fugia para a “29”. Só que procurava chegar cedo em casa para não despertar suspeitas de ninguém. Mas como aquilo me desagradava! Sempre no melhor da conversa eu tinha que sair. Além disso não era todo mundo que podia estar lá logo no início da tarde. Que droga!

O pessoal, já acostumado com a minha presença, insistia para que eu ficasse mais tempo mas eu sabia que não dava. E ia para casa no maior tédio, a contragosto. Ia ficar em casa mas...e daí? Meu coração já estava longe. Em pouco tempo eu me sentia mais em casa na Gangue do que em meu próprio lar.

Alguns poucos dias depois arrumei mais confusão com minha família por causa da turma. Eu havia ficado matutando sobre o que fazer para não ter que depender do horário imposto pelos meus pais. Só havia uma solução,

— Mãe, tô muito cansado hoje. Vou deitar mais cedo, tá?

Meio entretida com a novela, só veio um boa-noite de resposta sem maiores comentários.

Fui para o quarto e tranquei a porta por dentro sem fazer barulho. Ninguém pôs tento em nada do que eu estava fazendo. Meu pai comia na cozinha escutando jogo pelo radinho e eu escutava os berros de Otavinho no quarto ao lado com Roberto.

Apaguei a luz e olhei pela janela até a rua. Estudei bem a possibilidade e resolvi sair mesmo. Não seria difícil escapulir, ficar na “29” sem compromisso de horário e depois subir de volta para o quarto.

Não deu outra. Em poucos minutos eu estava alegremente à caminho. Até aí tudo bem. Mas na volta o problema mostrou-se bem maior do que eu tinha previsto. Na pressa de sair, quem disse que eu me lembrei que não haveria como subir da rua até o quarto??? Não tinha onde segurar direito e nem onde apoiar o pé. Na minha aflição nem pensei em voltar até a Gangue e pedir ajuda ao pessoal. A alternativa era tocar a campainha...

Meus pais já estavam preparados para dormir, afinal já era quase meia noite. Quando meu pai abriu a porta vi seu rosto mudar rapidamente de espantado para indignado.

— Você??!!  — Ele parecia não acreditar no que via.

Minha mãe apareceu por trás do ombro do meu pai:

— O que foi, Otávio?

— É o seu filho, dona Odete! — Ele me puxou para dentro bruscamente, agarrando-me pelo ombro.

— Mas você não disse que estava indo dormir, Eduardo?! —Reclamou minha mãe.

— Eu... disse?... Acho que não, você entendeu mal, mãe!

— Sua mãe entendeu muito bem! — Gritou meu pai puxando-me pela orelha. — Pelo visto você fugiu para se encontrar com aquela gentinha e agora vem com mentiras em casa! Até quando isso vai continuar?! — Ele deu-me um pescoção. — Eu vou repetir pela última vez: você não se encontra mais com esse tal Eduardo e essa maloqueirada toda, ouviu??! Está proibido disso, ou vai ver com quantos paus se faz uma canoa!

— Calma, Otávio!

Meu pai estava nervoso de verdade. Pegou-me pelo braço arrastando-me até meu quarto.

— E vai já deitar!!! — Pegou violentamente na maçaneta e a girou com força: CLAC!

Meu pai continuou girando a maçaneta outras vezes, empurrando a porta com o corpo: CLAC, CLAC, CLAC, CLAC, CLAC! Porcaria. Agora eu estava gelado. Deixara a porta trancada por dentro.

— Você trancou a porta, Eduardo?

Assenti com a cabeça.

— Então dê logo a maldita chave, o que é que você está esperando?

— Calma, Otávio!

— A chave não está aqui... — Eu respondi meio em pânico.

— Como não está?!! — Ele já estava aos urros. — Você perdeu a chave??? — Ele me sacudia pelo braço.

— Não, está aí mesmo, do outro lado da fechadura, eu tranquei a porta por dentro antes de descer pela janela!

Meu pai deixou de ter paciência e acabou me dando uns tapas bem merecidos. Deu a maior trabalheira aquela porta, não houve como empurrar a chave e meu pai teve que desmontar a fechadura.

Que mancada!

Mas com tudo aquilo eu fui ficando mais esperto e era cada vez mais difícil meus pais suspeitarem que eu estava na Gangue. Eu simplesmente dizia que estava na escola fazendo trabalho em grupo... ou na biblioteca... ou na casa de alguém. E continuei na minha, sem dó!

Logo na primeira semana de “29” eu pude ir aos poucos conhecendo o restante da turma e também o interior da casa que eu não chegara a ver no primeiro dia.

Na cozinha, local de acesso ao resto da casa, havia apenas a pia e um lampião roubado, uma espiriteira e um recipiente de vidro cheio de água que o pessoal trazia para beber. Tinha também a caixa de isopor para o gelo e as cervejas. O lampião iluminava bem. Mas no resto da casa a luz vinha de muitas lanternas e velas. A sala tinha só algumas almofadas espalhadas mas o pessoal nunca ficava muito por ali.

No andar de cima havia o banheiro com meio espelho quebrado e objetos de uso pessoal. E os quartos: um quartel-general repleto de colchões dos garotos que moravam lá. Espalhados pelo chão, percebi que não somente o Bolinha e o Márcio estavam naquela condição. Havia muitos outros que compartilhavam aquela casa como uma grande família: o Nenê, o Carlinhos, o Marcos, o Águia, o Fiúza, dentre outros.

Mas tudo era limpo, nada cheirava mal, não havia desordem. Até o banheiro era razoável.

Geralmente o pessoal andava com roupas “da hora”, bem transadas. Volta e meia vinham contando a última:

— Pois é, o cara maior trouxa, deu sopa e enquanto o Bolinha perguntava as horas eu “fiz a função”, “güentei” a carteira do goiabão na boa! Passamos na Ocean Pacific. Olha só que calça e que colete! — O Márcio sorria com os dentes muito brancos sobressaindo na pele morena, os cachinhos do cabelo pulando de lá para cá enquanto mostrava as novas peças do vestuário.

— Pô, coisa fina, agora você tem que dar um rolê por aí prá mostra prás “minas”.

Roupa era importante. “Minas” também. Só que havia um outro detalhe entre essas duas coisas importantes... o banho! Era claro que não havia água na casa. A turma já havia tentado encher a caixa d'água baldeando tudo em latas e baldes, mas dava trabalho demais. O banho de quem morava na “29” não era lá essa coisas. Mas no fim de semana, quando saíamos para dar uma banda, ir a festas, shows, ver e paquerar as “minas”, o banho tinha que ser mais caprichado.

Então, no terminal de ônibus, dava para comprar um banho: custava pouco e eles davam a toalha, o sabonete e um saquinho de xampu. Outra solução era tomar o tal do banho melhor na casa de alguém que tivesse uma “casa completa”. Na ausência da família, é claro.

Descobri que a maioria dos membros da “29” que morava com a família tinha enfrentado mais ou menos os mesmos tipos de problemas que eu enfrentava com meus pais. A família não queria saber de envolvimentos com “aquela gente”.

— Eles se acostumam com o tempo! — Haviam-me dito.

Eu não entendia porque tanta implicância. Eles haviam me tratado muito melhor do que os supostos garotos de família da rua, da vila e da escola. Eu não iria desprezar assim aquela amizade!

Mais ou menos uma semana depois do problema com a chave do quarto o Márcio, o Tistu, o Júlio, o Bolinha e mais alguns me chamaram com uma cara diferente:

— Catatau! Vem cá!

Esse ficou sendo meu apelido na Gangue porque (como o Catatau do Zé Colméia) eu era o menor da turma e estava sempre fazendo perguntas.

— Catatau, hoje é o dia do seu batismo! — Exclamou o Márcio.

— Batismo? E essa agora, cara? Que que é isso?! — Eu já estava meio rindo.

— Não, Catatau! — Fez o Júlio. — É sério. É importante ver como você se sai nisso!

Eles não estavam brincando e assumi uma postura mais sóbria.

— Nisso o quê?

— Bom, — Falou o Tistu. — estamos a fim de comer qualquer coisa. Vai lá no supermercado e güenta qualquer coisa.

— Güentar o quê? Pôxa, eu não sei fazer isso, meu!

— Mas tem que começar a aprender, Catatau! Manda bala, você é capaz!

O Eduardo, que escutava o papo, se intrometeu:

— Vamos lá, Catatau, eu te acompanho e te dou os toques.

Saímos e eu não falei nada na rua. Sabia que aquilo era uma espécie de teste. Um batismo realmente. Eu não ia decepcioná-los.

O shopping avultou-se à nossa frente. Ele havia sido recentemente inaugurado e estava lindo, impetuoso no cruzamento das duas avenidas. Lá dentro tinha supermercado. De repente, senti uma vontade muito grande de fazer aquilo. Eu os admirava e talvez fosse legal ser como eles. Tomamos a escada rolante para o primeiro andar.

No supermercado havia muita amostra grátis de comida. Aproveitamos sem dó e sem nenhuma cerimônia. Mas logo o peso da responsabilidade e da missão que me trouxera ali fez com que esquecêssemos da comida e quiséssemos resolver logo a parada.

Eduardo deu-me a deixa:

— Vai, Catatau, que eu te dou um pano!

Fiquei esperando pelo pano, provavelmente para embrulhar o que eu roubasse. Edú olhava para mim sem entender.

— Vai, Catatau!

— Caramba, mas você disse que ia me dar um pano!

Edú caiu na risada:

— Não, laranjinha! - Brincou ele. — “Dar um pano” significa ficar de butuca, entendeu? Dar cobertura. Agora vai, güenta aí, mas faz com naturalidade, não fica olhando para os lados!

O supermercado estava cheio e nunca dava para ficarmos sozinhos. Como eu era tolo naquelas alturas. Queria e não queria roubar. Eduardo mostrou como se fazia:

— Olha, Catatau, faz a função na boa, não tem erro, sacou? Pega naturalmente, faz tudo parecer natural. — Com calma ele pegou um chocolate da prateleira e jogou por dentro da gola da camisa.

Dei risada. E vesti a jaqueta que eu trazia amarrada à cintura. Assim disfarçado passei a jogar por dentro da camisa tudo o que eu achasse útil. O que ficava na barriga eu ia empurrando com naturalidade para as costas, encobertas pela jaqueta. E foi chocolate, pacotes de bolacha, de balas, salgadinhos e até lata de refrigerante. Eu e ele fazíamos a rapa, rindo a mais não poder.

Mas naquela tarde, por causa da euforia da novidade, acho que acabei dando muita bandeira. Na hora de sair Edú foi por um lado e eu ia indo pelo outro quando um segurança me abordou com a cara fechada. Pôs a mão sobre o meu ombro meio pesada.

Ergui os olhos assustado. De onde ele saíra??

— Calma aí, garoto. Você pretende levar tudo isso aí sem pagar?!

— Tudo isso o quê? — Indaguei.

Com um puxão rápido ele ergueu minha camisa. Todo o material güentado espalhou pelo chão e senti os olhares convergindo para mim. Vi Eduardo de relance, já do lado de fora. Ele fazia sinal para eu dar no pé.

— Pois você fica aqui comigo, moleque, enquanto chamo a FEBEM!

Não esperei mais nada, azulei! Eu nunca havia corrido tanto, saímos empurrando todo mundo nas escadas rolantes e escapulimos pelo estacionamento. Então, caímos na risada! E mais ainda quando exibi o único produto que eu havia conseguido güentar, um pacote de amendoim que escondi na meia.

Na “29” o pessoal gostou da história. O amendoim era apenas o símbolo de algo maior. Eu havia provado que queria aprender a ser como eles! Passara no teste. O amendoim foi dividido entre todos apesar da comida que Edú trouxera. Era uma homenagem à mim, uma participação na minha vitória!

Tão logo fui batizado tive uma nova surpresa e plena convicção de que eu era o mais novo membro da “29”. Um dia eu estava por lá bagunçando o coreto com o pessoal, construindo uns carrinhos de rolimã “animais”! Eram imensos, com 6 ou 7 lugares, com uma espécie de breque para cada passageiro. A sensação era descer à toda uma das ruas mais íngremes do bairro!

— Gente, preciso falar com vocês! — O Márcio chegou e foi logo entrando na “29” sem esperar muita resposta. Fomos todos atrás dele.

— Maninhos, é o seguinte, temos uma parada aí para resolver! O César mandou avisar: amanhã, dez para a uma, na frente do colégio Conceição, em ponto! O Pau é para valer, todo mundo está convocado!

Enquanto todos cercavam o Márcio procurando saber detalhes sobre o motivo da briga eu apenas observei o tumulto injurioso que crescia e os semblantes que se transformavam. A paz ia sendo substituída por um sentimento tão belicoso que fiquei meio chocado. Eu ainda não conhecia esse lado deles, apenas tinha ouvido falar. Nem escutei o que o Márcio disse. Só acordei quando ele próprio voltou-se para mim.

— Catatau, isso serve para você também, cara! Não falte!

Eu tentei argumentar numa boa:

— Nunca briguei na vida. Acho que é capaz de eu me estrepar lá  no meio!

Ele pôs a mão no meu ombro com brandura e firmeza ao mesmo tempo:

— Só tem um jeito de aprender a brigar, Catatau. E você precisa aprender. Mas não se preocupe, confie em nós! — Ele sorriu amistosamente. — Não vamos deixar acontecer nada com o “Mascote” da “29”!

Tive que sorrir também. Ele continuou:

— Mesmo porque... nem sempre você vai ter mesmo que sair no braço! — A expressão do rosto dele mudou um pouco. — Abre a mão e fecha os olhos!

Fiquei um pouco cabreiro mas confiei nele e obedeci. Todos os outros estavam ao nosso redor prestando atenção na conversa sem interromper. Logo senti em minha mão algo pesado e frio. Abri os olhos rapidamente. Para meu espanto ele colocara ali uma arma pequena, acinzentada. Um revólver calibre 32!!!

Fiquei sem fala.

— Caramba... — Murmurei alternando a vista entre o presente e o rosto do Márcio.

Ele ergueu o mão fechada na altura dos meus olhos e eu instintivamente abri a minha à espera do que viria. Márcio deixou cair um punhado de balas, sem dizer mais palavras.

***

Aquele foi o maior presente e voto de confiança que eu poderia esperar dos meus amigos. Agora eu fazia parte da Gangue de verdade... meu nome já não era mais Eduardo! Naquela época eu não poderia ainda prever mas aquele meu “outro nome”, Catatau, seria muito temido no bairro!

Mas a minha primeira briga de verdade não foi ainda daquela vez. Já nem me lembro qual foi o imprevisto, não foi desculpa fajuta, mas não pude comparecer. Ficou para uma outra ocasião!

E naquele dia saí da “29” sentindo-me literalmente outra pessoa com a arma guardada na cintura debaixo da camiseta. A sensação do metal encostado ali era estranha. Estranha e agradável. Disseram que me ensinariam a atirar. Eles costumavam treinar em terrenos descampados, atirando em latas de cerveja.

Tudo aquilo dava uma indescritível sensação de poder que eu nunca tinha experimentado antes!

***

Apesar do meu ingresso na Gangue ir à escola continuava sendo a mesma porcaria de sempre. Certa vez um de meus piores inimigos resolveu dar uma de bonzinho. Foi logo depois que eu ganhei o cano (o revólver).

Barão anunciou para todo mundo ouvir:

— Pois é, pessoal, vocês judiaram muito deste pirralho aí! Agora já chega. Eu vou adotá-lo, vou ser seu pai e ele vai ser o meu filho. Quem mexer com ele de agora em diante vai se haver comigo.

Olhei para ele, analisando-o. O resto do pessoal que me oprimia não deu risada. Será que era verdade ou mais uma peça qualquer? Barão viu que eu estava ressabiado. Sorriu amistosamente. Ele sabia ser convincente e simpático quando convinha.

— Pode vir aqui, Eduardo, é sério! Não precisa ter medo.

Aproximei-me devagar.

— Senta aqui no meu colo, garoto. Não tenha medo, agora eu sou realmente seu pai e você é meu filho. Não precisa mais se preocupar com nada, você está salvo do meu lado! — Sorriu mais abertamente e bateu com as mãos sobre o colo, convidando-me.

Ninguém mais falava nada. Ainda um pouco desconfiado arrisquei sentar-me no colo do Barão...

— Isso! - Ele se remexeu, acomodando-me melhor. — Muito bem, no colinho do papai!!!

Percebi que logo o pessoal começou a cutucar-se e as risadas invadiram o ar.

— E não é que ele senta mesmo? Quá, quá, quá! — O Tucano e o Juca já estavam perdendo os bons modos.

O tumulto foi aumentando mas como o Barão não havia dito nada para que eu me levantasse, fiquei ali, perguntando-me o que seria tão engraçado. Que se poderia esperar de alguém que até tão pouco tempo ainda acreditava em Papai Noel, Coelhinho da Páscoa e cegonha ?!

De repente a expressão do Barão mudou e ele me deu um leve tapinha nas costas, com certa compaixão demonstrada nos olhos:

— Levanta daí, vai, Eduardo. Liga não, mas é sacanagem...

Fiquei sem entender. Só compreendi o significado da “brincadeira” bem depois.

Certa tarde, quase sem querer — ou melhor, sem muita intenção — acabei comentando de leve com minha turma da “29”. Nós estávamos reunidos no quintal, conversando, e para variar eles falavam sobre os Paus, sobre o que haviam aprontado com este ou aquele que tinha “folgado” com não sei quem da turma. Eu só escutava mas de repente o Águia virou para mim, na calma:

— E aí? Nunca ninguém mexeu com você, não?

Era a deixa. Comecei a contar, timidamente a princípio, falando só com ele. Eu não tinha percebido até então que a minha raiva era tão grande. Comecei a perder o controle do tom de voz, falando cada vez mais alto. As conversas paralelas foram silenciando e todos passaram a me escutar. Não se ouvia um pio além da minha voz, podia-se ouvir um alfinete cair no chão.

À medida que eu me queixava notei que o semblante e o olhar de todos tornava-se cada vez mais carregado. Até o ar ficou mais pesado, dava para sentir a vibração do ódio. Quando me calei, silêncio total. Finalmente, o Márcio falou. Sua voz soou diferente do que eu conhecia, mais pausada, mais firme. Seus olhos eram graves e ele encarou-me com seriedade:

— A que horas você sai, Catatau?

— Catatau! Catatau!

Ele vinha correndo pela rua lá embaixo.

— Mãe, espera aí um pouco! Deixa eu ver o que ele quer!

Ela parou o carro e Eduardo logo me alcançou. Ele vinha rodando uma corrente na mão e, ao chegar perto do carro, debruçou na janela.

— E aí, hein, Catatau?! É hoje! É hoje!

— É! É! Tá marcado! — E só para ele ouvir. — Ô, meu, baixa a bola aí, cara! Olha a minha mãe. Se liga!

— Tá certo, cara! Tá tudo em cima. Vai lá e provoca os caras, hein?

— Falou! — Apertamos a mão. — Espero vocês lá.

Minha mãe não percebeu nada, pelo menos não fez perguntas. O único comentário dela, ao arrancar com o carro, foi:

— Que que este moleque já está fazendo na rua a esta hora da manhã?

Muito simplesmente eu retruquei:

— Ele não está “fazendo na rua”. Ele está chegando agora. Entendeu? Ele não saiu de casa... ele está indo para casa !

Minha mãe ficou em silêncio e deixou passar sem comentários.

Na escola eu não fiz nada na primeira aula. Até aquela hora ninguém tinha ainda mexido comigo (acho que era a letargia da manhã fria).

Fiquei pensando quem iria provocar. Passou a segunda aula, e nada. Veio o intervalo.

— Bom... — Raciocinei. — Tenho que começar. Tenho que mexer com alguém.

Resolvi folgar com os moleques do F.B.I. que estavam sentados muito na deles lá atrás. Cheguei perto e cutuquei:

— Sabe de uma coisa? Acho que descobri um nominho melhor para a Federação de vocês.

— Eh, que que você tá falando aí? — Replicou o Dalton já ameaçando levantar. Eles eram invocados mesmo.

Continuei:

— Que vocês acham de “ Federação dos Bostinhas Invocados “?

— Cala essa boca que você vai é levar um Pau, ô , seu (...)! Que é que você está pensando, hein?!! Tá querendo apanhar??

Eu levantei as mãos em atitude apaziguadora :

— Calma aí! Vocês querem Pau, tudo bem! Na saída eu pego um por um, falou, bostinhas baixinhas?

Eles já queriam me bater ali mesmo na classe, tal a como a causada pela minha atitude tão inesperada. Mas eu, estrategicamente e sem esperar resposta, fui para perto do inspetor do corredor assim que eles levantaram. Fiquei ali puxando um assunto qualquer com ele.

Volta e meia eu olhava para os garotos do F.B.I e fiz sinal de “na saída, na saída!”. Eles responderam com um gesto feio e caras injuriadas.

Logo depois fui provocar o Paulo. Eu me lembrava muito bem do cabelo que ele tinha cortado. E da ponta de tesoura que ele espetou no meu pescoço. O apelido dele era Paulo Cabecinha, porque a cabeça dele era muito pequena. Gritei de longe, para todo mundo ouvir:

— Aêh ! O, Paulo Cabecinha! Sabia que a cabeça do meu (...) é maior do que a sua cabeça???!!

Ele não acreditou! Quando a ficha caiu, me fuzilou com os olhos de assassino:

— Eu vou te encher de porrada! — Olhou ao redor, sabia que não podia fazer nada ainda. Mas me ameaçou feio: — Vou te enfiar a faca!!! — E daí para baixo. — Na saída você tá morto!

Uns e outros riam de mim, apontando e cochichando, comentando que eu deveria ter endoidecido. Mas incrivelmente eu não tinha medo! Parece que tinha me subido um espírito de valentia até então desconhecido. E eu continuei provocando todo mundo.

Durante o intervalo eu sabia que não ia demorar para alguém comer o meu lanche. Fiquei com o sanduíche bem exposto, mordendo bem devagarzinho, só esperando. Não demorou muito e apareceu um cara de outra turma que vivia ficando com a minha comida no mínimo três vezes por semana.

— E aí, cara? - Ele tinha um sotaque meio porto-riquenho. — Lanche de quê hoje, hein? - Ele veio gingando e esticando o pescoço como se pudesse farejar. Mais que depressa eu respondi:

— Ah, não! Hoje este lanche não é para você, não!

— Qualé, meu? Tá me estranhando, é?! — Respondeu ele com a fala carregada de gíria. — Você vai rodar na minha mão se não me der isso aí agora, moleque! — Avançou para mim já querendo arrancar-me o sanduíche das mãos.

Com agilidade me desvencilhei e, sem dó, atolei o pão num enorme formigueiro que crescia na grama.

— Taí!!! Hoje o lanche é para as formigas! — E acintosamente: — Elas merecem mais do que você !

Ele ficou furioso. Não quis conversa e já fechou o punho, querendo me agarrar pela camisa. Eu voei para a secretaria com ele no meu encalço. Se não tivesse sido mais ligeiro teria apanhado ali mesmo e era capaz de terminar com a cara enfiada também no formigueiro. Mais uma vez fui ameaçado sem piedade. Naturalmente, a hora da vingança... era a hora da saída !

— Você vai ter que sair, seu (...)! E aí você vai ver!

Novamente na classe, a próxima vítima foi o Tucano que vivia pegando a minha borracha. Era um inferno, não havia borracha que durasse mais que dois dias na minha mão. E quando eu ia atrás ele jogava a borracha dentro da cueca. Eu estava cheio! Minha mãe havia comprado para mim uma borracha de Itú, daquelas gigantes, e então eu a cortei em pedacinhos e cada dia levava um. Assim eles podiam me roubar à vontade que o prejuízo era menor.

O Tucano chegou logo após o intervalo:

— Pô, Sabidinho, cadê a sua borracha que eu não estou achando? - Fez ele com a maior naturalidade do mundo.

Respondi alto e bom som :

— Ué? Não sei, você não enfiou ela na calça da última vez?

— Você é louco, é, meu? — Fez eleja irado, a cara afogueando.

— Eu não! Louco é você, que enfia borracha no rabo. Isso sim é loucura. — Respondi sem me intimidar.

Tucano parecia a ponto de subir pelas paredes. Só conseguia repetir a mesma coisa:

— Você tá morto! Você tá morto... eu vou te matar! Vou te matar de tanta porrada! Você... tá morto!!!

Eu nem liguei. Estava com tanta raiva e tão cheio de todos eles que já nem pensava mais nas conseqüências. Puxei o toco de borracha do bolso, mostrei bem para ele e, mirando com pontaria, mandei-a com tudo na cabeça do Juca. Eu não queria esquecer ninguém! A borracha até ricocheteou. TUM!

— Vai pegar! - Retruquei para o Tucano.

Por sua vez o Juca já virou para trás, passando a mão na cabeça.

— Quem foi que jogou esta coisa em mim?

Tudo era um desacato. Por menor que parecesse a ofensa o peso do que eu estava fazendo era muito grande. Eu estava ofendendo e desafiando! — o senhorio deles. Em cada gesto e cada intenção eu estava como que dizendo: “Vocês mandam mesmo por aqui ou não?”

Tucano me apontou:

— Foi ele ali, Juca! Foi ele ali!

O Juca só me olhou feio. Eu conhecia aquele olhar. Dis

pensava palavras.

— Foi aquele (...) ali! Eu vou matar ele na saída! — Continuava o Tucano que nem um papagaio de tão bravo.

— Pois agora são dois! — Retrucou o Juca. E para mim: -Você tem o quê na cabeça?! Deixa estar, (...)!

O pessoal do F.B.I. também se remexia incômodo nas cadeiras, resmungando coisas semelhantes. Eu sustentava os olhares e a situação. Eles iam era ter uma bela de uma surpresa! Na última aula o clima estava mais quente do que nunca. Ninguém prestava atenção a nada, só tinham olhos para mim. Enviavam gestos feios e palavras ameaçadoras que antecipavam a tão esperada hora da saída.

Alguns minutos antes do sinal de saída resolvi sair. A classe toda já sabia o que estava acontecendo e os rostos desviaram-se na minha direção tão logo me ergui do meu lugar. Senti o olhar inquisidor dos meus adversários me seguindo. Na certa pensavam que eu ia arregar, por isso, antes de fechar a porta da sala eu me virei:

— Não se preocupem, não. Tô lá esperando!

Corri para baixo e me preparei para pular o muro da escola porque o portão ainda não estava aberto. Mas não foi preciso. O porteiro já vinha com a chave e em seguida o sinal já entrou a berrar.

Rapidamente os alunos começaram a aparecer, alunos de todos os lados. Eu saí para a calçada procurando achar a minha turma o quanto antes porque a vantagem era de poucos segundos. Eles estavam do outro lado da rua, aglomerados perto de carros estacionados. Apenas Edú me aguardava ali perto do portão.

— E aí, Catatau? Cadê os caras?!

— Tão vindo aí! — Gritei. — E estão babando!!!

— Valeu! — Ele deu palmadas no meu ombro aprovando meu bom desempenho.

Não houve mais tempo de nada. A turma que vinha para me pegar saiu correndo como um bando de cachorros à procura da presa, olhando para todos os lados.

— Olha ele ali!!!

Avançaram sem piedade e eu voei para o outro lado da rua. Eles eram muitos mas a minha turma era maior! Do outro lado da rua havia pelo menos uns vinte moleques da “29”, alguns até bem maiores do que nós. Fiquei lisonjeado pela presença de todos, e tão pontualmente.

— PEGA ELE!!!! — Gritavam os meus adversários.

O negócio foi rapidíssimo! Quase não houve como entender o que aconteceu. E, em suma, foi um verdadeiro linchamento!

O pessoal da “29” os atacou como feras enraivecidas. Espancaram sem dó e sem culpa, correntadas para todos os lados, onde pegasse, pegou. Rasgaram com estilete, e eu via o sangue escorrendo dos meus colegas! Ninguém escapou.

O Paulo Cabecinha quase conseguiu, mas ficou só no “quase”. Ele tentou fugir, completamente espavorido com aquela emboscada de surpresa, mas o próprio Edú correu no seu encalço. O Júlio, que dava cobertura para o Edú, correu atrás. E eu, que não sabia o que fazer, corri atrás dos dois.

Tão logo o Paulo estava bem seguro Eduardo falou com uma calma impressionante para uma situação como aquela:

— Bate você também, Catatau!

Eu tinha medo de bater. Meu corpo todo tremia por dentro com o que eu estava assistindo ao vivo e à cores. Dei um soco no braço do Paulo.

— Nãããão, Catatau! Assim, não!

Eduardo e Júlio bateram um pouco nele que, aos berros, implorava para mim:

— Eu sou seu amigo! Eu sou seu amigo!

Mas na minha cabeça eu só conseguia lembrar de tudo o que eles tinham me feito passar durante um ano. Um ano! Lembrei do Paulo cortando o meu cabelo, e rindo e rindo. Senti um ódio cego.

— Você é meu amigo coisa nenhuma!

— Bate nele, Catatau! - Incentivou novamente o Edú. — Agora é a sua vez. Dá na cara dele!

Sentia minhas pernas balançarem, mas de repente não pensei mais e enfiei a mão no rosto do Paulo. E não parei mais, completamente tomado por aquela raiva, sentia na boca o sabor da vingança. Escutava os urros de incentivo dos meus amigos mas já não precisava disso. Vi o sangue espirrando do nariz dele e gostei daquilo. Continuei batendo, me entreguei àquilo.

A sorte do Paulo era que eu não sabia realmente bater. Só parei porque minha mão começou a doer. O Júlio e o Eduardo jogaram ele no chão. Com dificuldade e o avental branco todo ensangüentado ele se levanto e apoiando-se na parede, tratou de sair dali.

Tudo não chegou a durar mais do que um minuto. O massacre foi rápido e preciso. Antes de debandarmos eu ainda consegui ver o estado dos meus colegas, que estavam ainda ali na calçada e na rua, numa clareira, porque os outros alunos não estavam a fim de participar. Estavam lavados de sangue. Era deplorável!

Quando alguém da escola resolveu aparecer para “apartar a briga”, nem existia mais briga e nós já estávamos longe. Eu sequer pensei se aquilo tinha sido “covardia” ou não. Eles também não tinham pensado se era covardia o que eles tinham feito comigo, todos eles contra mim! A justiça, boa ou má, estava feita. E pelas nossas próprias mãos. O que a Gangue fizera por mim era algo que nunca tinha recebido de ninguém. Não havia o que questionar. Aquilo era o que eles tinham de melhor! E quem dá o melhor não deve ser condenado.

Nem fui para casa naquele dia, e nem dei satisfação. Aquele era o primeiro de uma seqüência de dias que se seguiriam a partir de então. Era só o começo! Fomos direto para a “29” e depois que o meu susto passou, pude comemorar com eles mais aquele Pau. Aquela palavra começava a fazer sentido...

Passamos a tarde toda comentando da briga, comendo, conversando, brincando e bebendo. Eu nunca havia realmente bebido, a não ser na noite anterior, mas tinha sido sozinho e para conciliar o sono, não tinha graça. Aquela foi a primeira vez que aceitei realmente beber de verdade. Mas não quis fumar. Nem cigarro normal, nem cigarro esperto.

Agradeci muito o que tinham feito e comecei a perceber que aquele negócio de honra e compromisso um com o outro era sério de verdade! Aquilo me aproximou deles muito mais do que eu pude perceber na época. A partir daquele momento, em pouco tempo minha família seria a Gangue.

***