Eu trocava algumas palavras amistosas com Marlon e um outro rapaz, tamborilando alegremente com os dedos sobre a mesa. Era muito fácil o entrosamento apesar do pouco tempo de que dispúnhamos antes das palestras. A introdução do curso havia me deixado com água na boca e pensando bastante a respeito. Eu me sentia como que sentado num restaurante onde os pratos vão sendo servidos muito lentamente e em pouca quantidade quando comparados à sua fome.
Mas isso faz com que se coma devagar e a “digestão” ocorra satisfatoriamente. Caso contrário, se eu pudesse me servir à vontade muito provavelmente acabaria tendo uma indigestão de conhecimentos mal digeridos. E que me fariam mais mal do que bem.
Eu podia dizer que a minha fome estava mais estimulada do que nunca. E como parece que os melhores pratos ficam sempre para o fim... nada mais me restava senão contentar-me com as reuniões às terças e quintas. Que gostinho de pouco!!! Aquela hora e meia que passávamos ali me punha o resto da semana meditando. E aguardando na maior expectativa o próximo encontro.
Olhei em derredor. A maioria já estava sentada à volta da mesa, conversando e rindo em pares ou trios, aproveitando para conhecerem-se mutuamente. Quando Zórdico apareceu, calmo mas altivo, sorrindo um sorriso difícil de descrever, todos os olhares convergiram na sua direção como se algo magnético se desprendesse dele. Vestia calça de linho clara, de corte elegante, uma camisa tipo social-esporte muito bonita, de riscas azuis.
— Boa noite para todos! — Saudou-nos ele na forma jovial de sempre ao ocupar o seu lugar. — É bom tê-los conosco mais um vez! Espero que tenham tido tempo de refletir acerca do que comentamos na palestra passada.
Naturalmente houve gestos e olhares afirmativos. Alguém tentou gracejar:
— A feijoada foi meio pesada mas parece que agora está tudo em ordem.
Zórdico limitou-se a cruzar calmamente as mãos sob o queixo, naquele gesto já conhecido que preparava o grupo para o início da aula.
— Bem... não vou retomar a fundo o que eu já disse e que, espero, tenha sido bem compreendido. Não temos a pretensão de levá-los ao conhecimento completo de tudo o que existe. Seria tolice acreditar que isto seja possível neste momento. No entanto continuo enfatizando que é necessário conhecer a verdadeira verdade para que haja crescimento efetivo. Esta é a proposta... a princípio! — Parou de falar e olhou o grupo com firmeza.
Iniciou um novo assunto após poucos segundos, em outro tom, com voz pausada e grave.
— Sabemos que o Homem tem muitas crenças. As crenças dependem da localização no globo, do tempo na História, da cultura e de uma série de fatores que variam de região para região. O que se crê hoje aqui no Brasil é diferente do que se cria há dois séculos atrás. E é diferente do que se crê na África ou no Japão, em qualquer tempo! O ser humano precisa de crenças. E o que vem a ser isso? Tudo o que não podemos explicar com a razão vamos chamar genericamente de “Crença”. Seria uma espécie de doutrina paralela à razão, algo em que se acredita mas que não necessariamente é reflexo da realidade. Existe uma infinidade de tipos de crenças. A Religião, por exemplo, é uma.
Zórdico descruzou os braços, gesticulando para explicar melhor.
— A religião é uma crença porque não a podemos explicar pela lógica. Depende de fé. Deus seria uma espécie de sinônimo de tudo o que o homem não consegue explicar. Mas, é engraçado o comportamento humano em se tratando dessa história de fé! Acredita-se em algo que nunca se viu, não se conhece bem, não se sente por aí em toda esquina... mas é preciso crer! Pois não se consegue olhar para a estrada da vida e contemplar ao final dela a morte, pura e simples. A questão da morte é um tema dos mais discutidos em todas as Religiões do mundo. O homem sonha com a Imortalidade. Com a Eternidade. Durante toda a história da Humanidade, e em todas as Religiões, busca-se uma resposta para este tremendo impasse: afinal... e a morte?!
Ouvíamos todos com muita atenção procurando não perder nenhum detalhe, intimamente raciocinando a todo vapor para ver se de fato concordávamos com o que ele dizia ou não.
— A morte também está toda envolvida em simbolismos dentro das doutrinas católicas e cristãs em geral. Diz-se que só se verá o Céu após a morte. Só se verá o Criador face a face após a morte. Um santo também nunca é canonizado em vida, ele só ganha valor depois de morto! Procura-se retardar a morte ao máximo. Quando isso não é mais possível só resta a possibilidade de negá-la, atribuindo-lhe um novo fim. Ou seja, quer indo para o Céu... quer reencarnando, como apregoam os espíritas... basicamente toda Religião diz que a salvação, a purificação, o conhecimento, o aprimoramento...vem pela morte! Esse é um tema comum a todas elas, quer seja exposto de uma forma ou de outra. Em suma, a morte não é um fim em si mesma, mas um novo começo. Conseguem compreender o que digo? Estão comigo?
A falta de manifestação por parte do grupo queria dizer aquiescência. E Zórdico recostou-se confortável, sorrindo ao continuar.
— Já que estamos de acordo, chegamos a um ponto-chave na nossa aula. Quero dizer que de fato a morte é necessária e, diante disso, convido-os... a morrer! — Ele parou, enquanto absorvia os olhares inquiridores do grupo. — Morrer! É o que digo. —Repetiu com seriedade. — Sim, mas não fisicamente. Não agora, pelo menos. Mas convido-os a morrer para nossas idéias prévias, nossos pensamentos, nossas doutrinas, nossa razão. Vamos enterrar tudo. Matem sua educação... sua vontade... suas idéias...seus conhecimentos! — Fez novamente uma pausa longa, como que aguardando que mentalmente nos dispuséssemos àquilo. — E, agora, proponho-lhes algo novo. Um novo nascimento. Um nascimento para um novo contexto, uma nova realidade. Como já dizia o antigo provérbio chinês...”Se você quer beber do meu chá, antes tem que esvaziar a sua xícara”. Eu não estou questionando se as crenças antigas são verdadeiras ou falsas. Apenas proponho que, durante um tempo, vocês abram espaço para as novas. Em pouco tempo poderão julgar por si mesmos se vale a pena ficar com as novas... ou retomar as velhas!
Zórdico aguçava a nossa curiosidade, a minha pelo menos, mas o grupo parecia pouco confortável nas cadeiras diante da proposta. Cada um esperava que o outro abrisse a boca primeiro. Olhei com o rabo-do-olho para Marlon, que parecia muito sereno e observava com o queixo apoiado no punho, mantendo um ar neutro e bastante sério. Fiquei na minha. Ou seja, quieto.
— Estão prontos para o novo nascimento? — Indagou Zórdico.
— Você poderia falar um pouco mais a respeito desta morte? Ser mais específico...? — Perguntou uma mulher de blusa vermelha.
— Não. — Respondeu Zórdico com moderação, mas firmeza. — Trata-se aqui apenas de uma introdução, nada mais. Uma preliminar. É necessário receber o alimento fragmentado. Não há como colocar uma refeição completa diante deste grupo, vocês não têm qualquer base ainda. Não estão aptos para digerir nada mais profundo. É o mesmo que tentar explicar para um pré-escolar uma equação de segundo grau. Contentem-se por hora com a proposta inicial, isto é: o convite ao conhecimento. Quando você recebe um convite à uma festa não pode saber de antemão se será boa ou não; pode supor, claro, dependendo de quem o convida. Mas é você quem escolhe ir à festa divertir-se, ou ficar em casa. Compreendem? Estamos começando o processo de enterrar velhas idéias e renascer para as novas. Ora, aquele que acaba de nascer é criança e como tal deve ser alimentado.
A mulher de blusa vermelha pareceu compreender e ficou calada.
— Antes de entrar em grandes teorias é preciso lançar um alicerce firme, estabelecer as bases desta nova linguagem. Vocês têm que ser alfabetizados novamente, como crianças recém nascidas! A linguagem sempre é o espelho de uma cultura, de uma forma de pensar, não é assim? Esta linguagem que vocês vão aprender vai expressar a nova cultura da qual vocês farão parte. A linguagem é diferente simplesmente porque espelha uma realidade diferente. Estão animados? — Zórdico olhava para nós. — Vocês são como recipientes vazios prontos para serem cheios! Basta saber que, para conhecer a nova linguagem, a nova cultura, a nova ciência, existe um único pré-requisito além de todos aqueles que vocês já têm: há que se matar e enterrar as velhas idéias. — E novamente ele sorriu, descontraindo um pouco o grupo. — Não se assustem, e tenham paciência! O conhecimento virá aos poucos.
O sorriso e as palavras de incentivo realmente nos fizeram acomodar melhor ao redor da mesa. Os sentimentos se dividiam. Alguns estavam levemente receosos; outros, como eu, muito curiosos.
— Como se começa uma longa caminhada?! — Ele mesmo respondeu, de forma simples. — Dando os primeiros passos. Se ficarmos demasiado ansiosos nos perguntando o que virá pela frente deixamos de aproveitar o passeio. O conhecimento é como esta caminhada. Vamos viajar... observando cada detalhe do caminho... cada rio, cada montanha, cada flor. Sem pressa de chegar ao fim! Se perdermos os detalhes a viagem não será tão proveitosa, haverá pouco o que recordar. Certamente vamos nos deparar com muitas oportunidades se prestarmos atenção. Não viajaremos só de dia, mas também à noite. Poderemos entrar nas cavernas, explorar o desconhecido mergulhado dentro delas. Sim...talvez haja ali mundos não revelados. Talvez descubramos seres diferentes dos que conhecemos. Vidas diferentes... porque existe vida na noite! Uma vida que não é nem inferior e nem superior à dos habitantes do dia, que não pode ser desprezada! Talvez trilhemos caminhos que não foram ainda pisados pela maioria.
Zórdico de súbito cortou a divagação a respeito da viagem quando creio que a maioria jazia já embevecida e deleitada nas promessas. O magnetismo dele era ainda mais forte. Eu tinha decorado cada traço do seu rosto, da sua boca, do seu jeito de se expressar. Era difícil desviar a atenção para qualquer outra coisa. Zórdico sabia nos manter completamente entretidos. A viagem ficou no esquecimento e ele retomou a linha de raciocínio que vinha desenvolvendo antes:
— Por que o padre badala o sino na hora da consagração da hóstia, o espírita acende o seu incenso, o indiano canta mantras, os indígenas se pintam, cantam e dançam, os africanos tocam seus atabaques? Dentro de cada crença ou Religião, existem ritos específicos. Os ritos traduzem uma linguagem simbólica específica que é fruto daquela cultura e espelha a realidade daquele povo. Aquilo em que se crê. Da mesma forma vocês: se vão aprender uma nova crença é claro que esta também é respaldada por rituais. Ritos! Meu coração deu um pulo. E eu que pensava que ia ficar só na teoria muito tempo! Lembrei-me da infinidade de ritos que tentei praticar e que não deram certo. Zórdico não perdia o fio da meada:
— Os ritos iniciais são como que pequenas equações dentro deste novo Universo e talvez, a princípio, não venham a fazer muito sentido. Mas mais tarde a maioria de vocês estará apta a compreender os mecanismos que regem todas as coisas e a absorver a doutrina como um todo. Então alguns serão escolhidos para desenvolver os grandes Ritos. Tornaram a perguntar:
— Mas, então... esta nova crença seria uma nova “Religião”? — Quando você arruma uma mesa no domingo à hora do almoço, para receber convidados, você põe a melhor toalha, bons pratos, dispõe os talheres de maneira convencional e elegante. Serve uma boa comida e o melhor vinho. Pergunto eu: será que na Ilha de Bali esta mesa seria posta da mesma forma? Os alimentos seriam os mesmos?! Nisso você não está celebrando nenhuma “Religião”. É apenas o ritual do almoço domingueiro. No início eu disse que existem muitos tipos de crenças e que uma delas é a Religião. Mas nunca disse que toda crença é uma Religião. No caso do almoço, acreditamos que o melhor é fazer da maneira como descrevi, e ponto. É apenas algo que você faz ritualisticamente, semana após semana.
De certa forma eu concordei com a colocação feita, mas não ficou claro se a tal “nova Verdade” era mesmo uma nova Religião ou mera filosofia de vida. Acho que todos ficaram com a mesma interrogação porque, a bem da verdade, Zórdico não respondeu à pergunta. Mas esperamos. A resposta viria a seu tempo.
***
À medida que passavam as semanas fui me entretendo mais e mais com as reuniões. Nunca saía de lá sem ter várias coisas para pensar. Sempre ficava martelando na minha cabeça algum conceito, alguma colocação, algum vislumbre novo das coisas. Um dia Zórdico começou a falar sobre certas práticas que me eram familiares:
— Vamos mudar um pouquinho a linha de raciocínio agora. — Retomou ele. — Por exemplo, acho que todos já ouviram falar em acupuntura, não? As suas origens são longínquas, vieram caminhando paralelas à prática da Medicina Tradicional Chinesa e as mais antigas informações a respeito encontram-se no livro Hwang Ti Nei Jing. Mas até hoje desconhece-se como foi realmente criada. Vamos lá, em que se baseia a teoria acupunturista, alguém sabe?
— Acredita-se que o corpo tem uma “energia” que circula por todo o organismo através de umas vias específicas — os Meridianos! — Respondeu um homem.
— Isso. Existem dois tipos de energia circulando: o que eles classificaram como energia Yin, ou negativa, e energia Yang, ou positiva. A “saúde” é o resultado do equilíbrio entre estes dois tipos de energia. Por outro lado, o desequilíbrio gera a doença. Quando ocorre este desbalanço, um agulhamento de pontos específicos dos Meridianos pode reverter o processo. Acredita-se que a estimulação através das agulhas restaura o fluxo da energia. E a pessoa melhora dos sintomas!
Ele pigarreou rapidamente e continuou:
— No entanto, a raiz da acupuntura é Indiana, não sei se vocês sabiam disso! Os indianos não falam em Meridianos, mas em chakras. Assim como os chineses acreditam que a energia circula pelos Meridianos, os indianos falam em “Centrais de Concentração de Energia”. Isto são os chakras, pontos de muito acúmulo energético. Segundo a teoria indiana são sete os principais, e deles ramifica-se uma série de outros pontos. Os indianos acreditam que os sete principais chakras abrigam uma “serpente adormecida”, a Kundalini. A serpente é um símbolo de uma energia poderosa que pode ser liberada em determinadas circunstâncias. É uma serpente de fogo que dá força, poder e vitalidade. Da mesma forma os chineses liberam essa energia — o “chi” — através da técnica de “Chikow” com a mesma intenção: gerar poder! Interessante estes conceitos, não acham?
Remexi-me na cadeira. Aonde ele queria chegar??? Zórdico alçou um pouco o tom de voz inclinou-se sobre a mesa, aproximando-se de nós.
— Muito bem... a energia de fato existe. Mas é também um pouco mais do que isso. Kundalini, “chi”, o nome pouco importa. Tanto chineses quanto indianos desenvolveram técnicas para a manipulação e liberação dessa energia. Mas... será que é só isso? Vamos tirar um pouco mais o véu, vamos entrar “na caverna”. Vamos olhar este fenômeno mais de perto! Eles detêm apenas parte de Verdade. Nós somos privilegiados porque vamos olhar além deste véu. Eu vou acrescentar um dado a mais para vocês: os chakras, na verdade, são uma espécie de chave... para abrir Portais. São passagens para dimensões paralelas! — Inspirou fundo lentamente.
E nós nem respirávamos diante da afirmação. Quem estaria louco? Eles... ou nós???
— Vocês entendem que todas as dimensões estão aqui? Faamos um paralelo com o mundo material. Observem: todos nós somos seres tridimensionais, ou seja, temos altura, largura e comprimento. Certo? Mas a nossa sombra, que é a projeção dos nossos corpos tridimensionais, tem apenas duas dimensões: largura e comprimento, mas sem altura. Que tal dizer que a sombra é como que o “reflexo” de uma dimensão superior? Estão comigo? A sombra é projeção do corpo, projeção de uma dimensão superior. Se porventura existissem seres vivos na sombra, nessa vida bidimensional, eles nunca olhariam para cima porque o “para cima” não existe. A visão deles é eternamente horizontal, jamais vertical, mas nós que estamos na terceira dimensão, podemos contemplá-los. E eles nunca nos verão. Podemos tocar a nossa sombra ainda que ela não possa nos tocar. Isso quer dizer que é possível até mesmo interferir na vida deles. Fazer coisas que eles não saibam explicar, coisas que para nós são perfeitamente óbvias e normais. Por estar numa dimensão acima você tem mais poder do que eles. E eles dirão, à guisa de explicações: “Bom... Deus fez aquilo”. Ou então eles criam uma outra coisa qualquer, uma crença! Mas não foi Deus nem outra coisa qualquer, foi apenas um Ser que está numa dimensão superior àquela. Concordam?
Não havia muito o que concordar ou discordar, apenas ouvir para ver a que conclusão chegaríamos.
— Se os serezinhos da sombra falassem eles poderiam pedir coisas para mim e eu poderia realizá-las. Pois tenho mais poder sobre a vida deles do que eles próprios. Pode ser que alguma coisa aconteça e um dia eles queiram olhar para cima. Talvez alguém mais iluminado, ou mais inteligente, incentive: “Olhem, olhem para cima. Há um ser de três dimensões lá.” Só que, mesmo assim, a grande parte nunca conseguirá entender realmente o que é “olhar para cima”. Porque isso não faz parte da sua cultura! A maioria não compreenderá, certamente, mas talvez um ou outro perceba — e receba — o conhecimento. Zórdico sorriu:
— Para simplificar: adianto que existem doze dimensões espirituais. Sete dessas dimensões são alcançadas através dos sete Portais que mencionei anteriormente. As outras duas através de mais dois Portais que não vou mencionar agora. Isso é o que podemos acessar enquanto ainda estamos nessa vida. A décima - segunda dimensão só se acessa após a morte física. Mas, uma vez aberto o Portal, temos acesso aos seres que habitam ali. Porque é natural que existam seres nas dimensões superiores! Vocês vão aprender a abrir cada um dos Portais que possibilitam a sua interação com tais seres. Vamos ter experiências inter-pessoais com eles. Uma vez aberto o Portal a comunicação é mútua. Tanto nós passamos para lá como eles para cá.
Meus olhos soltavam faíscas na direção de Zórdico. Que coisa fascinante! Se realmente ele provasse tudo que esta dizendo... seria possível tal coisa?
— Para finalizar... pensem no seguinte: o que é a matéria? Em última análise somos formados por átomos. Todo o Universo o é. Mas será que você é diferente de um tijolo apenas porque os seus átomos estão agrupados de um jeito e os do tijolo de outro jeito?! O que faz com que você seja um ser pensante e o tijolo não? Talvez não seja realmente a sua composição física que o torne tão diferente do tijolo, mas o fato de que você tem uma energia vital que o tijolo não possui. Chame-a do que quiser: aura, corpo etéreo, fluido, serpente, “chi”... o nome não importa! Mas diferentes culturas têm se deparado com um poder latente contido no ser humano e que pode ser liberado. E eu estou dizendo como pode ser plenamente liberado: através da abertura dos Portais e do contato com estes seres que habitam as dimensões superiores.
Zórdico olhou para nós pela primeira vez naquela noite com olhar paternal.
— Sei que isso parece uma realidade estranha e até mesmo um pouco confusa. Mas aos poucos vocês irão absorvendo isto. Hoje ficamos apenas com esta introdução. Veremos tudo com mais detalhes em aulas posteriores, portanto contentem-se com isso!
O mesmo rapaz de antes inclinou-se novamente na direção de Zórdico:
— Só um pequeno questionamento. Sei que tudo é introduo, mas como posso saber que realmente essa é a verdade? Os chineses dizem algo, os indianos complementam a idéia, e nós, por nossa vez, vamos um pouco mais além. Mas... veja bem... cada um pode dizer o que quiser, não é assim?...
— Calma. — Interrompeu Zórdico. — Não se adiante, não se precipite no seu julgamento. Nós concordamos em morrer para nossas idéias prévias. Você não poderá absorver uma nova realidade sem abdicar da primeira. Escute primeiro. Deixe para tomar conclusões quando tiver o esboço teórico completo. E depois, como eu já salientei... tudo será provado. Quando começarmos os módulos práticos não haverá mais o que questionar. O mundo acredita em milagres: que uma perna mais curta que a outra cresce por meio de oração, por exemplo, sem que haja explicação para isso. E acreditam por quê? Porque viram a perna crescer, ou porque ouviram dizer, ou porque é mais fácil assim. Então por que você não pode esperar um pouco para ver se o que eu digo tem procedência ou não?! Se eu digo que existe um Ser numa outra dimensão, e que se você souber o que fazer é possível uma interação desse Ser com você...e puder provar o que estou dizendo... será isso o suficiente para vocês? Ou vamos continuar ignorando o olhar para cima?!! Apenas porque não compreendemos o que vemos? É mais fácil dizer “Isso não existe” só porque eu não posso explicar? Sem dúvida. Mas esta parte deixamos para os ignorantes. Podemos continuar com as crenças, com as verdades parciais, incompletas, distorcidas. Não trás tanta angústia, é muito mais cômodo. Nós fazemos tudo se encaixar e dormimos como anjinhos. Mas podemos também dar ouvidos a quem diz poder revelar além do véu... desvendar o Oculto... descobrir a Verdade.....! É uma questão de escolha. Mas vocês sentirão o que digo, verão, experimentarão isso. E passarão a acreditar. Cada passo... cada verdade... cada afirmação será provada. Na prática.
***
As vezes confesso que eu me questionava um pouco Mas pouco, porque logo as dúvidas me abandonavam. Eram pessoas tão cultas, tão inteligentes, um grupo tão seleto. Aquela casa enorme e toda a segurança no falar de Zórdico. Estariam tão enganados assim?!
Parecia tão improvável que eles gastassem seu tempo com algo irreal ou sem sentido... se estavam lá deveria valer muito a pena!! Caso contrário, pessoas como Zórdico não gastariam duas noites por semana com os estudos, às vezes três; nem Marlon deixaria seus negócios e viria buscar-me religiosamente. Deveria haver algo muito importante por trás do que eles diziam. E eu queria descobrir!
***
Continuei freqüentando as aulas ao longo de várias semanas.
Minha amizade com Marlon naturalmente se intensificou. Ele era bem humorado e simpático, otimista, estava sempre rindo, por vezes era até engraçado apesar de tanta diferença de idade entre nós. Eu o considerava uma pessoa muito especial e em quem passei aos poucos a confiar plenamente. Marlon fazia o papel de amigo e de pai ao mesmo tempo. Com ele definitivamente eu podia conversar sobre tudo. Não apenas sobre o que estávamos estudando nas aulas, mas sobre tudo mesmo. Ele me orientava em minhas dúvidas, me aconselhava, escutava com paciência e interesse sobre o colégio, meus amigos, Camila... tudo! Até com questões de matérias do colégio me ajudava às vezes!
Nos pontos polêmicos da minha vida, mesmo que discordasse de mim, eventualmente, não me recriminava. Procurava aconselhar mas sempre deixava a decisão a meu encargo.
Aquilo me surpreendia tremendamente. Parecia que ele de fato se interessava por mim, pelas minhas coisas. Me dava atenção. Me escutava. Não havia bocejos ou má vontade. Parece que Marlon também passou a me ver como um amigo a quem se apegava com carinho, respeito e interesse.
Eu realmente gostava dele. Cada vez mais. Sentia-me compreendido e importante. Nunca tinha experimentado esse tipo de coisa em nenhum outro lugar!
E Marlon era inteligente! Tinha uma capacidade toda especial para estimular o meu raciocínio. Eram conversas que me faziam pensar e pensar. Não era difícil estarmos falando sobre coisas corriqueiras, como preferir pão integral a pão comum quando, de repente, Marlon se calava ou perdia os olhos no vazio, mudava completamente o rumo da conversa:
— Você acredita no Infinito? — Indagou-me ele certa vez.
De início aquelas súbitas mudanças no tom e no teor da conversa me desnorteavam um pouco. Mas logo me acostumei. E caía de cabeça nas suas estimulações mentais e filosóficas! Marlon tornou-se aos poucos uma espécie de mentor particular.
— Não é questão de acreditar ou não! Afinal, o Universo é infinito!
— E você já esteve lá para comprovar isso?
— Não, Marlon, mas e daí? Está provado matematicamente que é assim.
— Tá, mas como podemos ter certeza? Dá prá imaginar algo sem fim?
— Imaginar não dá, mas....
— Será que não dizemos que o Universo é sem fim porque justamente ainda não fomos capazes de compreendê-lo?...E nem às dimensões paralelas que o compõem?
Antes que eu pudesse responder, às vezes ele desviava o assunto com um comentário novamente corriqueiro, do tipo:
— Legal essa sua jaqueta!
Ou então:
— É tão duro ficar preso no trânsito, não?
Eu respondia ao comentário e muitas vezes o assunto abordado morria ali mesmo. Só que quase sempre a “setinha” lançada por ele perdurava por dias. Eu pensava, pensava, repensava... até que às vezes Marlon dava continuidade ao mesmo assunto em outra ocasião. E me deixava filosofando com meus botões por mais alguns dias. Outras vezes eu mesmo o questionava a respeito de minhas dúvidas. E aquilo virou rotina.
Conversávamos muito antes das reuniões. Depois passamos a sair juntos esporadicamente, para tomar um café ou um refrigerante. Nossas conversas sempre terminavam com um elogio da parte dele:
— Sabemos quando a madeira é boa, forte, e vai dar um fogo bom. Você é essa madeira. Por isso tem tido toda a assistência de que precisa. Você precisa aprender logo porque o tempo é curto!
Parecia haver um senso de “urgência” em relação a mim, ele dava a entender isso às vezes, mas eu não compreendia. Fiquei encafifado. Será que ele se preocupava em consolidar alguns conceitos e me acompanhar mais de perto porque eu não estava absorvendo os conhecimentos da forma esperada? Sorrateiramente perguntei:
— Você acha que eu não estou indo muito bem nas aulas, Marlon?...
— Por que a pergunta?
— Bom... você gasta tempo em me ensinar por fora, em me adiantar os conceitos, em estimular o meu raciocínio. Isso é uma espécie de “recuperação”?
— Não seja bobo! Pelo contrário, Eduardo, você está indo muito bem! É inteligente e interessado, tem a cabeça aberta, quer aprender de fato. Como sempre digo, mesmo apagada sabemos quando a madeira é de qualidade, capaz de gerar muito fogo! Por isso você tem tido privilégios. Nosso contato próximo está longe de ser uma “recuperação”. A sua auto-estima pouco elevada é que faz você acreditar numa coisa dessas.
— Mas se estou indo bem, por que você me explica em particular, e me ensina? — Insisti. — E por que você diz que o tempo é curto? Curto por quê? Não estou aprendendo no tempo que era esperado?!
Novamente a mesma resposta:
— Você compreenderá mais tarde.
Caramba! E encerrava por aí. Marlon comentava do tempo chuvoso ou do dia de sol e mudava o rumo da conversa. Aprendi também a respeitar esse limites. Era a velha história da “comida de bebê” e da “feijoada”!
Eu não me dava conta, mas as sementes iam ficando. Aos poucos fui realmente mudando minha maneira de pensar e de enxergar o mundo, realmente eu estava trocando valores antigos por novos. Seria isso o novo nascimento?!...
O contato direto e freqüente com Marlon era importante, as suas conversas informais consolidavam nuances das mais diversas. Mas sem dúvida que as aulas ajudavam muito. A argumentação era farta e inteligente, Zórdico avançava lentamente mas com muita segurança. Nem me passou pela cabeça na época que talvez eu fosse o único do grupo com aquele acompanhamento diferenciado. Se soubesse certamente teria ficado a me questionar por quê ainda mais.
***
Em dado momento “esquecemos” por um pouco dos conceitos iniciais, deixando que eles fizessem a sua parte no nosso inconsciente e passamos a discutir um série de outros assuntos. Estes, a princípio, pareciam desconectados. Mas garantiram-nos que no final viriam a fazer sentido como um todo. Era como dissecar um cadáver: em partes e aos poucos!
Então, numa aula Zórdico passou a discorrer um pouco a respeito do que ele nomeou de “Artes Mágicas”. Relembro com muita clareza de detalhes a voz grave e pausada quando ele comeou. Repassei mentalmente muitas vezes aquela introdução. A partir daquele momento um mundo realmente novo começou a descortinar-se perante os meus olhos.
— A Ciência humana é a primeira a afirmar que usamos apenas uma pequena parte de nosso cérebro. Isso quer dizer que todo ser humano usa apenas uma ínfima parte de sua potencialidade. Temos um enorme potencial intrínseco, inerente ao nosso ser, mas que está dormente. Eu pergunto: e se pudéssemos aprender a desenvolver este potencial ao máximo?
A pergunta ficou ressoando no ar.
— E se... — Continuou Zórdico. — ...ao invés de nos sujeitarmos a utilizar tão somente dez por cento do potencial que temos, fôssemos capazes de usar cem por cento?! Mais ainda, e se houvesse a possibilidade de não apenas entrarmos em contato com os seres das outras dimensões, mas também fazer com que através da simbiose com estas outras formas de energia, potencializássemos a um nível “supra-máximo” a nossa própria energia?
Eu quase o interrompia com a gritante pergunta: “Como? Como? Como?!!!”
— Vamos fazer isto. Potencializar a nossa limitada capacidade! Eu lhes garanto ser isso plenamente possível. Vamos começar dentro de nós mesmos, vamos descobrir o oculto dentro de cada um. Aquilo que até a ciência sabe que existe mas que não conseguiu ainda acessar. Abramos, portanto, as portas do entendimento e descubramos o que somos ou não capazes de fazer. Daremos vazão à força que está dormente em cada um.
Minha mente estremecia, clamava por dentro: “Vai falar ou não vai?”
Finalmente Zórdico começou a dizer “como”:
— Existem formas de descobrir e potencializar as capacidades que estão ocultas dentro de nós. Temos algumas ferramentas para tal. As Artes Mágicas! Nas próximas semanas vamos começar a estudá-las ainda a nível teórico para que possamos nos aprofundar em cada uma a fim de que, quando chegar o momento de praticar, cada um possa colher grandes benefícios.
As semanas seguintes correram rápidas. E foram deliciosas para mim!
Eu aguardava ansiosamente os dias das aulas. Praticamente minha vida se dividia agora entre o Kung Fu e o Grupo, meus dois focos de maior interesse. Não havia muito mais tempo para nada. O resto — casa, família, escola, Camila — era o resto. Até mesmo a “29” foi ficando para trás.
***
O episódio que fez com que eu me afastasse definitivamente da Gangue aconteceu “por acaso”. Mas naquela altura da minha vida era difícil dizer que as coisas eram simples coincidências... parecia já não haver coincidências! Eu não sabia, nem me passava pela cabeça, mas era como se houvesse uma série de forças até então incompreensíveis agindo sobre mim.
Um dia eu estava com o pessoal na esquina costumeira, tomando vinho, tocando violão, fumando maconha. A bagunça de sempre. Eu estava no meio da turma que beirava bem uns vinte caras ali naquela noite. Até que chegaram duas pessoas bastante conhecidas: o Rumba e o Miçuka. O Rumba, bandido de verdade, velho e admirado conhecido de alguns mais barra pesada da “29”, chegou com a cara meio alegre. E o Miçuka, companheiro de brigas, já veio logo perguntando:
— Cadê o mano Catatau? A gente tá a fim de trocar uma idéia com ele!
Eu vim para perto deles com um sorriso de orelha a orelha, bem característico de quem já está com a cabeça cheia de vinho e de droga.
— Aeh, qualé que é, pessoal?! Querem umazinha aí? Foi o próprio Rumba quem explicou, sem rodeios: — Estamos com uma fita prá fazer. Tá a fim de entrar na onda?
— Fita? — Compreendi logo. — Eu?
— E, você! Cadê o Eder?
O Éder não estava.
— E o Cebolinha? — Perguntou o Miçuka.
Nada do Cebola também.
— Tudo bem, chega aí, chega aí. É você mesmo que a gente quer!
Me puxaram meio de canto. O Rumba continuou:
— Pois é, estamos com uma goma prá fazer e precisamos de um cara esperto prá ajudar a gente!
“Goma”, “Fita” era tudo a mesma coisa. Queria dizer assalto.
— E nós pensamos e...bom, tamos convidando você!
— Mas goma de quê?
— Vamos dar uma guindada num Banco, já tá tudo esquematizado. Já vimos como é que fica a coisa, só tem dois seguranças. As minas também já arrancaram a verdade deles na moral, ninguém quer morrer por causa de bandido, não! Eles disseram que o Banco tem seguro, o seguro que arque. Já morreu um amigo deles lá! Ou seja, tá mole, mole! Já sabemos que dia e que hora tem mais dinheiro nos caixas. A gente enquadra eles rapidinho. Só precisamos de alguém prá dar cobertura. Vai ser logo de manhã! E a gente foge no “batmóvel”, o opala preto do Babú!
O Babú era um cara gordo e muito doido, o maior encrenqueiro. Fazia musculação no Clube Palmares e quando cansava arremessava longe os pesos. Eu já tinha tido contato com a peça.
— Só que depois da primeira fuga, a gente troca de carro. —Continuou o Miçuka, animado. — O Rumba aqui vai estar esperando a gente em outro ponto. Trocamos de carro e de jaqueta. Normalmente o pessoal do Banco guarda essa história de roupa. Às vezes não lembram bem da cara da gente, mas lembram que o “sujeito estava com uma jaqueta preta”, coisa e tal.
— Por sinal isso aí faz parte, mano. Todo mundo de jaqueta preta no dia. Mas aí trocamos elas depois, já vão ficar dentro do segundo carro. E então? Dá prá contar contigo, brother? A tua função é dar um pano. — Falou o Rumba muito calmamente. — O Babú fica no carro, perto do Banco. O Miçuka, o Jamanta, e o Bolinha entram prá fazer a goma: o Miçuka e o Jamanta enquadram os guardas. O Bolinha faz a rapa nos caixas. Você fica fora, na porta do banco, nas imediações, e dá o alarme se pintar qualquer sujeira. Só que é o seguinte... se alguém da rua perceber que é assalto e tentar ligar de orelhão, tu apaga quem quer que seja. Tamos aí, é prá se queimar mesmo. Nós queremos um cara que não tem nada a perder, um cara meio doido, e sabemos que tu é assim mesmo. Nessa vida é ganhar ou perder. A gente tá jogando tudo, e jogando prá ganhar. E aí? Pegar ou largar! Só tá faltando mais um cara!
— O Bolinha já tá nessa também?
— Falamos com o cara ontem e ele topou.
Eu concordei sem hesitar. Nada de novo.
— Falou, meu irmão. Tá branco! Podem contar comigo.
Eles se alegraram.
— Vamos deixar uma PT na tua mão. Já estamos com ela! Qualquer coisa você mete bronca.
A PT era uma pistola automática. Estava aceitado! Éramos seis ao todo. Quando eles foram embora e eu voltei para o meio da turma da “29” foi debaixo da maior “moral”! Afinal, os caras tinham vindo falar comigo, tinham vindo “procurar o Catatau”! Era uma honra no reino da bandidagem...
A armação era para o dia seguinte mesmo. Nos reunimos mais cedo, às nove horas da manhã, antes do Banco abrir. Tomamos um café preto juntos, com pão e manteiga, na padaria. O Rumba ainda comentou:
— Esse é o nosso último café como pobres!
Depois entramos no carro do Babú e cheiramos uma “carreirinha” de coca prá aumentar a coragem.
O Miçuka me estendeu a PT prometida, carregada até a boca. Cabia dezesseis tiros. Dei uma olhada nela, mexi um pouco. Ele me mostrou como é que travava e destravava. E me deu a arma na mão.
— Já tá destravada, pronta prá mosca. Cuidado que o gatilho dela é sensível!
O Babú encostou o carro num posição estratégica. E deixou o motor ligado.
— É isso aí, galera. Vamos arrepiar!
Batemos na mão espalmada um do outro. Era hora!
O Miçuka, o Jamanta e o Bolinha entraram no Banco, um de cada vez. E eu fiquei fora, calmo, num jardinzinho que tinha em frente. Sentei na mureta que separava o jardim da calçada, abri o jornal, fiquei quieto. A manhã estava gostosa e os centros comerciais na avenida estavam abertos, o povo circulava em todas as direções.
Eu nunca vou saber explicar o que aconteceu...
De repente me veio uma sensação... uma sensação muito clara, tão clara quanto aquela luz do sol que eu estava vendo
“Não vai dar certo.”
Não sabia porquê. Estava tudo em ordem, tranqüilo, nem sinal de nada, de polícia... mas aquilo começou a martelar insistentemente dentro da minha cabeça. Não tinha lógica. Não era fruto do medo também, porque eu não estava com medo. Só aquela sensação estranha, forte. Cada vez mais forte. Foi questão de poucos segundos.
“Vai pintar sujeira hoje. Hoje não é o dia certo prá fazer isso!”
Levantei como se fosse de mola e entrei no Banco, que já estava cheio. Meus amigos estavam posicionados. O Miçuka fingia estar no telefone público (tinha um orelhão lá dentro), o Jamanta estava preenchendo uns papéis como se fosse fazer um depósito. E o Bolinha já estava na fila do caixa. Fiz discretamente sinal para o Miçuka primeiro. Ele entendeu muito bem o que eu queria dizer.
“Sujou! Corta! Cancelai Vamos embora!”.
Ele me olhou ligeiramente espantado, respondeu ao gesto dizendo para eu sair dali. E virou as costas prá mim, continuou fingindo que estava conversando com alguém. Não me dei por achado. Cheguei perto do Jamanta. Tinha mais gente por ali, de modo que passei a mão num dos papéis de depósito e escrevi: “Vamos desistir. Pintou sujeira.”
Ele apenas olhou e foi categórico:
— Tarde demais.
Ainda rodei rapidinho e fui até a fila, perto do Bolinha. Mas a reação dele foi a mesma. Ninguém quis desistir. Ainda daria tempo se eles tivessem me ouvido. Daria tempo de sair dali, fugir.
Corri até o carro, entrei meio estressado.
— Babú! Me ajuda a convencer os caras. Vai dar sujeira. Desiste. Vamos desistir, cara, sério!
— Pô, que é isso, Catatau?! Vai amarelar agora?
— É sério, não me pergunta porquê. Alguma coisa me diz prá não ficar aqui agora, eu sei, olha... não vai dar certo Entra lá comigo e me ajuda a abortar o plano hoje. Vamos desistir!
— Não delira, cara! Que besteira é essa?! Não tem nada de errado. A gente tá aqui prá tudo, até prá morrer!
Não adiantava.
— Bom... eu não quero morrer agora. — Respondi.
Desci do carro, mas mesmo assim fiquei por perto, não que
ria sair dali sem saber se eles iam conseguir. Mas aquela premente sensação continuava, me perturbava.
“Caramba... se eu ficar aqui eu vou me ferrar!”
Não deu mais do que cinco minuto e comecei a escutar as sirenes. Mais tarde fiquei sabendo o que deu errado. Parece que um dos caixas percebeu e apertou um botão de alarme e, por incrível que pareça, nesse dia a polícia conseguiu ser eficaz. Ainda mais que meus amigos demoraram muito prá sair de lá de dentro!
Não havia mais o que fazer ali. Eu estava de costas para o Banco, fingindo olhar algo no correio. Mais que depressa mandei a PT para dentro do bueiro: fingi que fui amarrar o sapato e joguei ela fora, dentro do saquinho de pão. Andei rápido um ou dois quarteirões prá não dar na vista, e depois saí em corrida desabalada para longe dali!
Cheguei em casa tremendo de verdade, nunca tinha sentido aquilo. Era estranho, estranho... como eu tinha escapado daquela??? E o que ia acontecer com eles?! Por que não me ouviram enquanto dava tempo, por quê??!!
“Droga... será que eles escaparam?! O que será que tá acontecendo?”. Eu não conseguia me concentrar em mais nada.
Fiquei entocado em casa o dia todo e a noite toda. Confesso que fiquei assustado de verdade. Não tanto pela polícia, mas por causa do que tinha acontecido. Aquela sensação. Que coisa mais estranha.
“E os caras?”
A notícia saiu até no jornal depois. Eles conseguiram fugir do Banco, mas houve perseguição. Parece até que trocaram de carro também. Mas a polícia acabou por pegá-los. Eles reagiram. Teve troca de tiros. E nessa todos eles morreram...! Todos menos o Miçuka, que foi em cana.
Mas no dia seguinte eu ainda não estava sabendo de nada. O Éder e o Júlio vieram falar comigo.
— Pô, brother, deu zica lá naquela treta! Apagaram os caras! Morreram, tomaram tiro.
Eu fiquei muito chateado. Muito chateado mesmo. Quase inconformado! Mas o pessoal da “29” ainda me deu razão.
— Caramba, eu tentei avisar eles! Eles não me ouviram!
— Foi melhor você ter ficado esperto. Se viu que a coisa não ia dar certo tinha mais é que abortar mesmo. Se eles tivessem te ouvido!
Alguns dias depois correram uns boatos de que o Miçuka tinha passado o meu nome. Apertaram-no na cadeia e ele teve que dizer que tinha mais uma pessoa envolvida. Meus amigos mais chegados se incumbiram de passar a informação prá Gangue inteira:
— Se aparecer alguém aí procurando o Catatau, ninguém sabe de nada, ninguém conhece, ninguém nunca ouviu falar dele, heim?!
Como eles tinham me dado razão fiquei um pouco mais confortável, mesmo assim levou tempo para passar aquela sensação de estranheza. Eu devia ter morrido também. Não tinha lógica nenhuma. Mas alguma coisa me avisou que não ia dar certo! E a polícia acabou não me procurando. Acho que nem deu tempo de pegar muita informação. O Miçuka se meteu em confusão na cadeia muito rápido, e mataram ele pouco depois.
Quanto ao enterro dos nossos amigos... infelizmente não ousamos aparecer. Certamente ia ter polícia na tocaia. Os familiares também não iam querer saber de dar de cara conosco. Tivemos que nos poupar.
Senti demais pelo Bolinha, um mano de tanto tempo. Foi um momento de muito pesar e tristeza na “29”. Arrumamos um jeito de dar adeus ao nosso modo. E enterramos os pertences dele, simbolicamente, em meio ao silêncio e respeito. Foi um momento de dor, sem dúvida. O enterro foi simbólico também em relação aos outros.
Naquele dia compreendi melhor, pela primeira vez, o que o delegado da sétima DP tanto falava. Que aquela vida não ia nos levar a lugar nenhum...
De fato. Era triste. Muitos dos meus antigos amigos aos poucos iam deixando de existir: eram mortes em confrontos com a polícia... mortes na cadeia... mortes violentas no meio das brigas... mortes por overdose de drogas... e, depois, mortes por AIDS.
Fiquei pensando. O episódio me abalou muito.
Mais tarde comentei com Marlon sobre o incidente.
— Você não acredita do que eu escapei, meu irmão!...
Marlon dificilmente me dizia o que fazer. Mas isso não o impediu de externar sua opinião.
— Não é o teu tempo ainda. Você tem muito o que fazer aqui. Não aconteceria agora, entende o que digo? Você foi real
mente preservado. Mas olhe... essa vida não vai te levar a nada, viu? Ficar se metendo com essas besteiras! Isso é coisa de ralé! Coisa de marginal, que não tem o que fazer.
Não tive o que responder.
— O que eles trouxeram de bom prá você? O que você aprendeu andando com essa gente?
— Eles são meus amigos.
— Mas é uma amizade que pode te levar à morte. — Ele deu de ombros. — Você merece coisa melhor do que isso!
E, bem ou mal, eu prezava muito o que Marlon me dizia. Talvez ele tivesse razão.
***