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Capitulo VI
Capitulo VI

 

O quarto era todo em tom azul celeste, com nuvens brancas pintadas no teto, bem iluminado, amplo.

— É aqui, Eduardo!

Comentei, admirado:

— Pôxa, legal a pintura deste quarto!

Dentro de um potinho já havia um daqueles incensos de erva queimando. A música continuava também ali dentro, sempre no mesmo tom, em volume brando e constante.

Aproximei-me da cama super espaçosa. O tamanho do col­chão era o mais interessante, ele encostava no chão circundado apenas por um envoltório metálico. Era diferente de tudo o que eu já havia visto.

— Este colchão é prá ninguém reclamar que não dormiu direito, heim? A cama inteira é um colchão! Vou adorar dormir aqui!

O homem mais baixo aproximou-se de mim estendendo uma roupa cuidadosamente dobrada.

— Isto é para você. Vista logo mais, na Cerimônia, à noite. Tudo bem?

Eu a tomei nas mãos, desdobrando-a. Era uma vestimenta inteiriça, mais ou menos como uma longa túnica de mangas com­pridas, com um largo capuz, e inteiramente negra. O tecido era suave como cetim, delicado. Nas costas havia um Pentagrama gran­de bordado em vermelho com todos os seus detalhes, a figura da cabeça do bode no centro. Na parte da frente, um desenho que, como eu já sabia, era uma espécie de Pentagrama “abreviado”, também em vermelho vivo e com inscrições aramaicas em doura­do. Não deixava de ser uma bonita veste, mas a expressão meio espantada do meu rosto fez com que o homem mais alto principi­asse a esclarecer algumas coisas:

— Esta é a roupa que vocês, “Iniciados”, deverão usar hoje. — Principiou ele. — Faz parte da Cerimônia. Creio que você deve estar lembrado dos conceitos que foram ensinados no Grupo a respeito dos Rituais, da sua simbologia...

— Sim, certamente. Discutimos bastante. — Coloquei a rou­pa sobre a cama.

— Esta Cerimônia de logo mais é um Ritual de bases muito antigas que ainda mantém inalterada sua forma original. E como todo processo Ritual este não foge à regra: a forma expressa uma verdade muito maior. O Rito é simplesmente a “Forma” de se expressar um “Conteúdo”. A partir de agora você vai começar de fato a aprender as “formas” e “conteúdos” dos Ritos Satânicos. Por que se faz de um jeito ou de outro, para quê é feito, qual o significado e o que desejamos obter com cada prática.

Meu olhar não se desviava dele. Ele deu um tapinha amis­toso em minhas costas.

— Mas tenha paciência, Eduardo, haverá tempo para tudo isso. Aliás, uma vida inteira pela frente! Esteja certo de que você aprenderá. Por hora concentre-se na sua preparação para a Cerimônia... e compreenda que, como todo processo ritualístico, ela tem as suas formas de realizar-se. O manto faz parte desta “forma”. Em primeiro lugar, homogeneíza todas as pessoas e mos­tra que ali, naquelas circunstâncias, todos são iguais. Por outro lado, a cor negra simboliza o meio do qual todos fazemos parte... a Sombra! Não a Sombra como algo ruim, mas fazendo menção a uma posição escondida, aonde nem todos estão vendo você. A Sombra como sendo o “Oculto”.

— Imagine... — Salientou o homem baixo à guisa de comple­mento. — ...que você está num quarto escuro e tem alguém lá fora, no claro. Você vê quem está no claro mas ele não vê você; este é o conceito do “estar na Sombra”. Em outras palavras quem está na Sombra tem muito mais visão do que quem está na Luz, por­que quem está na Sombra enxerga tanto a Sombra quanto a Luz. Mas os que estão na Luz... somente até onde a Luz ilumina!

Deliciei-me com tal explanação, tão simples e coerente! Eu sabia que estava fazendo a coisa certa. Ele continuou:

— O Negro também simboliza o Poder Absoluto. Pois esta é a cor que tudo absorve, tudo retém, tudo concentra e de onde nada é devolvido! Inclusive... a Luz!

— De fato... — Meus olhos abaixaram-se para a roupa sobre a cama, focalizando o Pentagrama que se destacava sobre a cor negra. — Compreendo o que querem dizer quanto ao negro. Mas também estudamos muito sobre o simbolismo do Pentagrama no Grupo. É o símbolo máximo da Magia... — Falei mais de mim para mim do que para eles.

— Há um sem número de significados por trás dele, não foi assim que o ensinaram? — Incentivou o homem alto.

Eu também queria demonstrar os meus conhecimentos. — O Pentagrama, a estrela de cinco pontas, representa em primeiro lugar a “Cabeça do Bode”. Este bode faz menção àquele outro bode, descrito no Livro de Levítico, o “Bode da Expiação”. Havia dois. O primeiro era oferecido em holocausto pelo povo de Israel, e o outro era solto no deserto. Este segundo era quem sim­bolicamente carregava os pecados do povo após a imposição das mãos do Sacerdote. O Pentagrama representa o Bode que foi em­bora levando os “pecados”. Mas em última análise “pecado” é tudo o que Deus impediu que o homem fizesse, ou desfrutasse. É o símbolo de toda a limitação humana! — Limpei a garganta e continuei. — Por outro lado quando invertemos a posição do Pentagrama, virando-o de ponta-cabeça, temos aí a representação de um homem de corpo inteiro, com os braços e as pernas aber­tos. O homem de braços e pernas abertos simboliza o Homem pleno, expandido, realizado, detentor de todo o seu potencial, li­vrei Expressa o anseio mais profundo do coração humano: a Li­berdade! — Eu até me empolguei. — E esta Liberdade existe! Pode ser vivida! Ela vem através do outro lado.. da cabeça do Bode. O Bode conquistou esse direito! Ele foi para o deserto, está solto, livre. Carregado do pecado mas, em outras palavras, detendo em si mesmo tudo aquilo que o homem gostaria de fazer... e não pode. — Sim! — Interrompeu o homem mais baixo, ansioso por concordar comigo. — Todos no fundo gostariam de poder escapar da podridão do sistema de leis, das regras, da rede da Sociedade e dos dogmas religiosos. Sobrepujar os valores e os conceitos! Vi­ver por viver!

— O Bode representa a Liberdade absoluta porque ele foi solto!” Antes disso estava em cativeiro, preso em algum lugar, es­perando para ser sacrificado pelo pecado alheio. Mas foi liberto! Pode até ser que ele tenha morrido no deserto, na certa morreu mesmo. Só que até aí... morrer todos vão. Mas pode-se morrer em cativeiro, ou pode-se morrer em liberdade! — E isso tinha tanto a ver comigo que quase gritei. — O Bode representa a Liberdade, sim, mas é também o símbolo do próprio Lucifér. Também ele deixou as regras e o sistema para trás, abraçou a própria Liberda­de e construiu um reino novo. Só que, ao contrário de Deus, Lucifér conquistou... e deu esta Liberdade aos seus filhos!

— Sim! Conquistou e deu! — Interrompeu novamente o bai­xo. — Porque Deus diz “Não matarás”, mas de repente Ele próprio é o “Senhor dos Exércitos”, e mata! Só que Lucifér, o diabo, Satanás ou como o queiram chamar, ao contrário: ele não é um pai maluco que dá exemplos de conduta muito contraditórios. Os seus filhos têm a mesma Liberdade que ele, inclusive de matar se isso se fizer necessário. Não é uma Liberdade unilateral!

— Certo! — Concordei. — E tem mais um detalhe que me fascina nesse simbolismo todo. Entende-se que é a cabeça que coordena todo o corpo, exerce domínio sobre ele e sem a qual o corpo deixaria de existir. Como eu disse o Pentagrama representa o homem de corpo inteiro de um lado. Nesse sentido a cabeça é proporcional ao corpo. Mas quando o Pentagrama é colocado ao contrário e volta a simbolizar o Bode, destaca-se apenas a cabeça dele. Uma menção clara àquele que comanda tudo, e que se iden­tifica plenamente com o outro lado do Pentagrama: o Bode co­manda o homem. Sim, porque o Bode representa Lucifér, mas também a essência da natureza humana. Lucifér conhece e se iden­tifica com o mais premente desejo humano! O anseio da Liberda­de é a aspiração mais profunda, mais inerente, mais consistente do homem. O que sobrepuja a tudo o mais. E pela qual faríamos qualquer coisa... — Inspirei fundo. Eu decerto sabia o que estava dizendo.

Ou não.....?

Fizemos todos uma pequena pausa. Refletimos sobre aque­les conceitos que nos eram tão profundos e revelavam uma verda­de tão tremenda, tão mágica, tão completa em seu significado, tão perfeita que se tornava quase incompreensível.

O homem mais alto saiu do estado semi-meditativo pas­sando a mão sobre os cabelos, alinhando-os. E perguntou:

— E o quê mais, Eduardo? Que mais simboliza o Pentagrama?

— Bem... ele tem cinco pontas. Segundo a Cabala, cinco é número de Poder e Domínio. Simboliza Conquista. A nível indi­vidual, a nível global. Neste sentido o Pentagrama evoca a con­quista da totalidade da Liberdade humana através de seus cinco sentidos: visão, audição, tato, olfato, paladar. De que adianta ter tato se não é lícito sentir tudo? Ou visão, e não poder contemplar tudo? “Se o teu olho te escandaliza, arranca-o e lança-o fora”... ora! Como pode alguém dizer isso? Por que Deus criou o Homem para depois limitá-lo tanto? Impedi-lo de atingir e exercer plenamente, livremente as suas funções?!! Nós não podemos aceitar esse “ca­bresto”! Temos potencial em nós mesmos! Temos o direito de utilizá-lo. Cinco também são os dedos das mãos, e os dedos são símbolo de ter-reter-pegar-apreender-tomar. Mas a mão fechada transforma-se num punho, símbolo de Força e de Guerra. Nova­mente uma menção ao poder de Conquista que o homem tem em si mesmo. — Eu me esmerava em não esquecer nada. — Mas o simbolismo de Poder do Pentagrama não termina por aí. Cinco é também o número de continentes do nosso Globo. Faz menção à possibilidade de um Poder “macro”, Mundial. Nesse sentido se refere à conquista do próprio Lucifér. Um domínio, um governo. Governo Satânico. De Liberdade absoluta. — Voltei os olhos para o homem alto e comentei, à procura de maiores esclarecimentos. — E cinco também são os elementos: ar, terra, água, fogo e ener­gia. O Pentagrama é muito profundo quando faz menção à essên­cia da matéria, à origem da própria vida. Especialmente comple­xo é este conceito do quinto elemento, a energia, né?

— De fato é, mas não incompreensível para você. Desde a Idade Média é entendido — principalmente pelos alquimistas —, que havia quatro elementos fundamentais. Ar, terra, água e fogo. Mas hoje sabemos que estes não são “elementos” puros, e sim a composição de outros produtos, certo? Água é Hidrogênio e Oxi­gênio; a terra tem sais minerais, por exemplo; o ar é uma mistura de gases, o fogo é resultado de uma reação química complexa. Mas para a mentalidade da época era assim pois estes conceitos são muito antigos, remontando à época dos Druidas.

Balancei a cabeça e acrescentei :

— Pois é, mas hoje a Ciência moderna já tem uma maneira diferente de encarar as coisas. O quinto elemento — a energia pura — seria como a fonte da qual derivam todos os outros elementos. Algo como a “matéria prima”, a composição básica de tudo o que existe! Esta concepção de energia, ainda que os antigos entendes­sem intuitivamente, começou a ganhar forma com Einstein. Atra­vés da sua clássica equação E = m.c2. Quer dizer que matéria nada mais é do que “energia condensada”. Segundo a fórmula, matéria e energia estão na verdade em íntima associação... certo?! O baixo completou compreendendo minha dúvida: — Lavoisier já dizia que na natureza nada se perde, tudo apenas se transforma...! Sabemos que a coisa mais corriqueira é transformar matéria em energia. Por exemplo, basta atear fogo a um tronco e logo toda a madeira terá sido convertida em energia térmica e luminosa. Mas e se fosse possível o contrário? Ao invés de transformar matéria em energia... transformar energia em ma­téria?

— Ah! Compreendi! — Estava satisfeito. — Teoricamente isso seria possível?

— Nada que a nossa Ciência possa comprovar, mas não pense apenas nas Leis que regem a nossa dimensão. O simbolismo do Pentagrama vai além do nosso mundinho. Entende porque a ener­gia é o elemento do qual tudo deriva? Talvez a nossa Ciência chegue lá, o próprio Einstein estava trabalhando em uma teoria chamada “Teoria do Campo Unificado”. Ela diz mais ou menos isso: tudo que existe é produto de comprimentos de ondas de luz diferentes que se condensam em diferentes formas de matéria. Teorizando um pouco, a luz é a forma de energia mais pura e poderosa que existe. O raio laser, por exemplo, que nada mais é do que uma forte concentração de luz, é capaz de perfurar uma placa de aço. Mas a luz só é “luz” porque está submetida a uma velocidade altíssima, 300.000 km/s. Mas segundo E = m.c2, Ener­gia é igual à massa multiplicada pela velocidade da luz ao quadrado. É fácil ver que se fosse possível desacelerar a luz, esta deve-ria condensar-se em partículas de matéria!

— Mas voltemos um pouco ao Pentagrama e à menção aos cinco elementos. — Continuou o outro. — Isso é muito mais pro­fundo do que Einstein jamais pensou em demonstrar. Sabe por quê? Porque Lucifér é a expressão da forma mais pura de energia. Daí o seu nome, que significa “O portador de luz”! Ele é pura energia. E simbolicamente falando, ele é o quinto elemento! Por­que tudo o que há nesse mundo, apesar de ter sido criado por Deus, deriva da sua semente. Que foi plantada no Éden. Mas em termos práticos, por ser energia ele pode se transformar na “maté­ria” que quiser. Pode apresentar-se de diferentes formas.

— Por isso Lucifér pode “apresentar-se como anjo de luz”? — Tagarelei.

Eles riram juntos satisfeitos com meus conhecimentos.

— Exatamente. Note então que o Poder e o Domínio simbo­lizados pelo Pentagrama não fazem menção apenas ao homem e ao mundo, mas também ao reino das Trevas. É um símbolo misto, há uma mescla muito profunda entre Lucifér e os que foram esco­lhidos por ele. O resultado disso é o Poder completo!! Cinco tam­bém é o número de componentes da principal Cadeia Hierárquica Demoníaca. Lucifér tem a maior patente e ocupa espiritualmente a décima - segunda dimensão, como você já sabe, o mesmo nível de Deus. Lembra-se de Jó? Lucifér pôde acessar Deus, dirigir-se a Ele, falar com Ele. Isso mostra que ambos coexistem no mesmo patamar hierárquico. Não há registro de que nenhum outro demô­nio senão Lucifér tenha conseguido esse acesso, na própria di­mensão espiritual do Criador! E abaixo de Lucifér estão quatro grandes príncipes, quatro demônios muito poderosos: Leviathan, Asmodeo, Bélzebu e Astaroth.

— Em suma o Pentagrama concentra nele uma série enorme de simbolismos. Mas, basicamente, aponta sempre para um duplo conceito: representa o homem e Satanás, o filho e o pai. Faz vis­lumbrar um homem em sua total plenitude e liberdade, ao mesmo tempo em que revela subliminarmente aquele que pode proporci­onar isso a ele. E mostra o produto... o fruto desta união. Fortale­za! Fortaleza absoluta através da comunhão do homem com o Império das Trevas!

— E Poder! Poder em todos os níveis. — Acrescentei. — O Poder gera felicidade! O Pentagrama aponta o caminho da Felicidade plena!

— Muito bem, Eduardo. Você é muito inteligente, aprende com facilidade. Saiba que isto também contou pontos a seu favor perante os Guias.

Eu ainda não sabia muito sobre isso. Então apenas fiquei quieto, dando-me por satisfeito naquele momento. E não fiz mais perguntas. Abaixei-me para ajeitar com mais cuidado as mangas de minha túnica enquanto o homem alto dava as últimas instru­ções sobre o que deveria fazer até a noite. E repetiu o que eu já sabia:

— Você foi escolhido e hoje é nosso convidado! Não está aqui por acaso. O seu destino estava traçado e começa a cumprir-se hoje, neste lugar. Não tema por nada, pois o filho das Trevas não teme os seus semelhantes, nem as Entidades, nem o pai. O temor faz parte do tempo da ignorância e este não é mais o seu caso, não é? O Oculto tem sido revelado e agora que você com­preende a verdade por trás dele começará a entrar na esfera do domínio e do Poder.

Engoli, mesmo sem ter o que engolir, e nossos olhares se cruzaram. Eu ansiava tremendamente por aquilo. Aproximava-se o momento de ver a teoria funcionar!

Ele então reassumiu o tom alegre e informal de boas vindas.

— Mas, venha, venha, Eduardo! Deixemos de lado agora as doutrinas. Temos algo aqui que você vai adorar! Afinal, é hora de relaxar um pouco da viagem, não é?

Mostrou-me o banheiro do quarto, com uma enorme hidromassagem. E apontou para as toalhas e prateleiras repletas de coisas para tornar aquele banho a coisa mais gostosa do mundo:

— Fique à vontade! — Fez o baixo com ar significativo e um sorriso nos lábios. Encostou a porta do banheiro e voltou-se para a mesa encostada no janelão perto da cama.

— Só podemos dar isso para você comer. A dieta faz parte do Ritual, hoje você tem que estar com seus Portais energeticamente liberados.

Eu olhei, havia uma jarra com água e uma cesta de frutas. Fruta do conde, pêssego, pitanga, kiwi, e outras que eu nunca ti­nha visto. Estava satisfeito:

— Pôxa... — Respondi. — Mas está tudo ótimo!  — Então está bem. Agora procure descansar. — Falou o ho­mem alto sem mais delongas. — Só mais uma coisa... entre nove e onze horas da noite você deverá receber uma visitação! Mas não se impressione porque é assim mesmo, não há nada a temer. Será como uma confirmação da sua presença aqui. Lembre-se: você é filho do Fogo!

Aquela afirmação me fez estremecer por dentro. Ainda não poderia compreender de fato o que significava na realidade. Mas estava chegando perto!

Depois que saíram olhei ao redor com as mãos na cintura e um suspiro de satisfação. Nem me lembrei de Marlon, Thalya... queria era entrar naquela banheira! Tinha muita tranqueira, coisas de por na água, de fazer espuma, aromas, sais, xampus importados! Em 18 anos eu nunca tinha tomado um ba­nho assim!!!

Enquanto arrumava a parafernália ainda me lembrei do que tinham dito sobre a tal “visitação”.....

“Vai ver vem mais alguém me dar boas vindas, é isso!”

Relaxei com uma toalha morna sobre o rosto, que nem via nos filmes, desfrutando ao máximo daquele momento. O vapor quente... o perfume... tudo era perfeito!

Divaguei em meus pensamentos. Afinal era meu aniversá­rio, e eu só estava ali porque não permitiram meus amigos em casa. Mas seria esse o motivo real? Eles tinham dito que “não havia acaso”. Ah, deixasse prá lá! O que importava era que eu estava ali.

Sai do banho enrolado em um roupão, o som da música continuava percorrendo o ambiente em ritmos e melodias dife­rentes, mas sempre suave. A impressão que eu tinha era que repe­tia sempre as mesmas palavras.

Comi algumas frutas mas sentia o corpo cansado, pesado, depois do banho quente. Ergui-me da mesa abocanhando uma fa­tia de pêssego e afastei a cortina da janela para observar a vista. Como estava alto! A vista do verde descortinava-se a perder de vista, maravilhosa, e os montes ao redor mostravam-se cheios de vida. Aquilo transmitia paz... e estava anoitecendo!

Resolvi deitar um pouco. O interruptor de luz era um botão giratório que controlava a intensidade luminosa. Conforme abai­xei percebi que a tonalidade da luz também mudava. Passava para amarelo, alaranjado, verde...na verdade todas as cores do arco-íris! Que legal...! Mantive a tonalidade da luz no azul, quase lilás, e acomodei-me na cama.

“Hum, esse colchão é o que há de perfeito...” Na minha frente havia um relógio grande de carrilhão, de madeira escura e polida! Eles haviam prometido vir me buscar às onze horas em ponto. Eu deveria ficar pronto. Mas ainda tinha tempo e acho que só um cochilinho...

***

Aquela claridade...de onde viria?!...Estava claro mesmo ou seria a impressão...de um sonho...?

De repente, me vi desperto. Eu sabia que estava acordado. E a claridade era real! Mas eu tinha deixado o interruptor na to­nalidade azul-lilás, como então?...

Foi aí que, virando-me de costas sobre a cama, reparei que aquela luminosidade estava vindo das velas...cinco velas!

Engraçado...elas estavam apoiadas em suportes de bronze nas paredes, lá no alto. Eram grandes!

“Será que estas velas estavam mesmo aí?”, pensei comigo, esfregando os olhos ainda um pouco pesados de sono.

“Não me lembro de ter reparado nelas antes...pôxa, elas acenderam^

O quarto estava todo esfumaçado numa névoa quase den­sa, meio sufocante. Seria por causa das velas? É verdade que elas eram bem grandes, muito maiores do que velas de sete dias. Será que poderiam estar causando tanta fumaça?!...

Fiquei deitado, observando. E reparando melhor, da posi­ção em que me encontrava sobre a cama, eu estava no centro de um Pentagrama! As cinco pontas eram sinalizadas pelas cinco velas.

“Gozado isso...como não reparei nestas velas antes?!”. Eu ainda estava encafifado. Levantei-me e caminhei até a janela com a intenção de abri-la para fazer sair a fumaça. O relógio de carrilhão marcava quase dez e meia da noite.

Aumentei a intensidade da luz e resolvi: “Acho que já está na hora de me vestir!”

Tomei o manto e o vesti sobre a pele, como eu sabia que deveria ser, acomodando minhas próprias roupas sobre a cômo­da. Não poderia usar nada sob a veste negra. E deveria ir descalço também.

Caminhei até o espelho e passei a observar-me. O tecido da roupa era agradável. Que pano seria aquele? Era grosso e resis­tente como lona, mas suave e macio ao toque como cetim. Havia um cinto negro para amarrar na cintura com uma inscrição aramaica bordada em dourado. Eu não sabia o que dizia. Esqueci de perguntar.

O manto chegava até os pés e nas costas caía o grande ca­puz. Eu o puxei para a cabeça para ver como é que ficava. Era largo, mas as dobras ao lado do rosto tinham uma pequena sus­tentação de sorte que não se deformava. Ficava muito bem, como uma “luva”. Aliás o manto inteiro parecia ter sido feito sob medi­da, inclusive no comprimento das mangas.

Olhei para meu reflexo no espelho e sorri levemente, a pele muito clara de meu rosto fazia um contraste interessante com o tecido negro.

“É! Caiu bem”.

Eu estava satisfeito e entretido, já nem lembrava mais das velas; mas então, refletida junto comigo no espelho, lá estava ela. Por trás de mim, de repente, apareceu aquela sombra muito gran­de, alta... uma silhueta atrás dos meus ombros!

Eu me virei rapidamente e olhei primeiro na direção da vela às minhas costas. Claro, um inseto qualquer estava ali perto, projetando longe a sua sombra. Em um instante meu cérebro ar­quivou a informação: não havia nada próximo à vela! E a sombra continuava ali, bem ali mesmo, à minha frente, por ela mesma! Não desapareceu! Não era projeção de nada...!

Espremi os olhos. Procurei ver melhor. Era somente um contorno indistinto à princípio, sem olhos ou rosto, mas lembrava uma forma “humana”. Sacudi a cabeça. Fechei os olhos. Abri de novo. Não era alucinação, nem sonho. Era real! Estava lá ainda.

Não houve tempo para ficar apavorado pois tudo aconte­ceu em segundos. De repente ela começou a assumir contornos mais definidos. Nunca tinha sequer imaginado algo parecido!... Não tive mais medo. Pelo contrário, fiquei extasiado.

Estava ali, de verdade. Um homem grande... enorme! Mui­to bonito. Vestia uma capa de tom azul escuro, uma cor linda, difícil de descrever... ela caía até o chão em ondas, longa, elegan­te. Por baixo da capa ele vestia uma camisa branca de tecido mole abotoada até em cima, com gola alta e arredondada. Parecia uma camisa de smoking, com uns babados na altura do peito. A calça azul de tecido semelhante à capa era larga, meio “bufante”, e es­tava adornada por um cinto largo e dourado. O contraste do bran­co com o azul era intenso e dava um efeito muito bonito.

Mas eu não conseguia mais me desviar do rosto dele! O cabelo era comprido, meio alourado, e ele tinha algo como uma leve cicatriz no lado direito da testa. Os olhos muito profundos estavam fixos em mim, como uma serpente. Era difícil encará-los por muito tempo. Por fim ele fez um gesto amável, mas os olhos continuavam com aquela expressão dura, compenetrada, sem des­viar-se de mim.

— Você é bem vindo aqui. — Disse-me ele, com uma voz indescritível. Parecia que falava dentro do meu ouvido, um sus­surrar gravíssimo, como... como um coro de vozes, é isso! Um coro de vozes dentro do meu ouvido naquele timbre extremamen­te grave, lúgubre, completamente não-humano. Mas estranhamente suave.

E desapareceu!!! Diante dos meus olhos, desapareceu! Em segundos virou uma sombra de novo e sumiu.

A voz dele me marcou mais do que a visão propriamente dita. Fiquei parado, com os braços ao longo do corpo, meio para­lisado, ainda questionando. Questionando a minha sanidade. Não reparei se as velas continuavam acesas ou se ainda havia música. Não reparei em mais nada.

“Será mesmo que eu o vi? Ou não vi?!? Será que eu sonhei?

Fiquei com aquilo na cabeça.

“Será?... Será?...”

E voltei a me olhar no espelho. Poucos minutos depois eu já não tinha certeza de tê-lo visto. Talvez tivesse jogado aquilo num lugar escuro da minha mente e deixasse prá lá. Mas como mais tarde Thalya referiu exatamente a mesma visão, os mesmos detalhes e as mesmas palavras... tive que aceitar o fato como real. Tinha sido uma Entidade de fato, um serviçal, talvez, alguém a quem fora dito: “Vá até lá e dê-lhes as boas vindas!”

Mas naquela altura nem me passava pela mente nada disso. Até que minha atenção foi desviada por leves sons de passos que aproximaram-se claramente da minha porta. As batidas vieram em seguida. Eram eles. Para minha surpresa Thalya já estava lá, junto com duas moças, e todos usavam a mesma túnica negra. Havia também dois homens que deveriam, na certa, ser os meus acompanhantes. Não eram os mesmos que me haviam deixado no quarto.

— Boa noite! — Saudaram-me os desconhecidos. — Vamos?

Thalya não disse palavra, somente sorriu de leve. Estava séria e compenetrada.

***

Nossa pequena comitiva desceu, desceu, desceu, não para­va mais de descer por aquele labirinto que era o Castelo, atraves­sando portas e corredores. Em dado momento estava claro tanto para mim quanto para Thalya que já estávamos descendo bem mais do que havíamos subido para chegar aos quartos. Devíamos estar indo a alguma parte subterrânea. E de fato era.

Por fim demos de cara com uma espécie de cortina grossa, como aquelas de cinema, atrás da qual estava uma porta de tama­nho fora do comum, enorme, de madeira forte. Aberta a porta vislumbrei os primeiros degraus de uma nova escadaria que ia a perder de vista por dentro de uma galeria. Principiamos nossa nova caminhada.

A escadaria parecia não ter fim e adentrávamos por aquele túnel cada vez mais. O lugar era bonito, muito diferente dos Cas­telos de filmes de terror onde tudo é escuro, sujo e sórdido. Ali não havia nada que produzisse tal efeito.

Os degraus eram de pedras coloridas, com um corrimão do lado direito. As luminárias de néon saíam das laterais da galeria e o teto, alto, todinho revestido de um material levemente espelhado refletia as luzes por todos os lados. À medida que descíamos per­cebi que elas iam mudando de tonalidade. O efeito era fascinante. Eu admirava cada detalhe daquela estranha passagem e nossos acompanhantes, ainda que conversassem conosco e mantivessem o bom humor, tinham um ar de seriedade e reverência nos sem­blantes.

Descemos muito. Então subitamente o túnel terminava alargando-se num átrio aonde havia uma nova porta cuja porção su­perior formava um arco amplo. Era enorme também, de duas fo­lhas, madeira adornada com placas de bronze. Impunha respeito com seus quatro metros de altura por uns três de largura.

E estava fechada.

Um dos homens que nos acompanhavam explicou a mim e Thalya:

— Esperem aqui um pouco. Quando forem chamados, vocês poderão entrar.

Estiquei a cabeça quando a porta foi aberta pesadamente e eles entraram juntos. Não vi nada, apenas uma leve claridade, bruxuleante. E uma espécie de fumaça escapou de lá! Um cheiro agradável veio junto com a fumaça, e um leve sussurrar de vozes. Mas a porta foi novamente fechada e ficamos do lado de fora remoendo a curiosidade. Encostamos o ouvido sobre a madeira mas... que nada!

Aguardamos por cerca de um quarto de hora.

***

Finalmente um barulhinho se fez ouvir e apareceu alguém na porta. Era um homem, mas não mais nenhum daqueles que nos haviam trazido. Ele fez um sinal dizendo que podíamos entrar.

Ao adentrar o recinto, meu queixo definitivamente caiu. A medida que meus olhos acostumaram-se à penumbra pude distin­guir as dimensões do lugar. Confesso que não sou impressionável mas nem em sonhos daria para imaginar aquilo. A porta que atravessamos ficava no centro e nos fundos de um salão absoluta­mente imenso, colossal, nada mais nada menos do que cerca de cento e vinte mil metros quadrados: seiscentos metros de largura por pelo menos duzentos de comprimento! A altura não saberia dizer, somente que era alto, muito alto... eu não saberia quantificar. O terreno era levemente inclinado e nós estávamos na parte mais alta dele.

Mas o mais impressionante era o incontável, incalculável número de pessoas presentes ali. De fato... foi surpreendente e inacreditável ao mesmo tempo!!! No mínimo trinta e cinco mil pessoas estavam de costas para nós, voltadas para a frente do sa­lão, com os capuzes sobre as cabeças de forma que só se podia divisar-lhes os vultos negros. Ninguém olhava para trás. Em pé, entoavam um cântico lento e sussurrado, como um mantra. Me soou familiar, lembrava o que estivéramos ouvindo pelas caixas de som desde a nossa chegada ao Castelo.

Toda aquela imensidão era iluminada por tochas. Fiquei parado, meio atordoado por aquela indescritível visão completa­mente além de tudo o que a imaginação pudesse criar. As tochas eram grandes, vigorosas, mediam mais de um metro de altura e estavam colocadas à meia altura nas paredes, em suportes. Ilumi­navam tudo à volta e pude distinguir bem as paredes. Eram de blocos de pedra muito grandes. Sobre elas estavam expostos imen­sos brasões redondos que reluziam um pouco à luz das tochas.

Eram tão grandes que mesmo à distância eu podia ver cla­ramente os símbolos representados neles. Alguns eu não conhe­cia ainda, mas outros eram símbolos esotéricos. Entre os brasões redondos havia símbolos em relevo esculpidos na própria parede. Todos os signos do Zodíaco estavam esculpidos, seis de cada lado, dourados, de forma que os brasões e os signos em relevo ocupa­vam toda a extensão das paredes, iluminados pela indescritível quantidade de tochas.

Passados os primeiros instantes de assombro e eu ainda continuava olhando e olhando, tentando apreender tudo o que os meus olhos viam. Por um breve momento me esqueci completa­mente de Thalya e do homem que nos abrira a porta. Aquele Marlon! Não tinha nem me dado uma pálida idéia de como tudo era estupendo e majestoso! É... majestoso era a palavra!

Virei a cabeça e dei de cara com estranhos objetos enfileirados na parede dos fundos, ao lado da pesada porta que já havia sido novamente fechada. Eles estendiam-se de um extremo a outro do salão. Não eram bem objetos, pareciam mais uns mó­veis de forma muito esquisita. Devia haver ao todo uns vinte de­les. Um mais estranho do que o outro.

O homem fez um sinal para que esperássemos um pouco. Mas eu estava tão impressionado que me aproximei dos móveis, esquecido de que talvez devesse permanecer próximo dele e de Thalya.

“Nossa......que coisas serão essas?”

De repente vi que Thalya também estava ali ao meu lado, junto do homem que viera calmamente atrás de nós. Fomos cami­nhando lado a lado, observando.

— Para que será que servem, não? — Sussurrei para ela de repente.

Acho que falei meio alto. A suave cantilena não encobriu minha voz. Alguém ali atrás, postado na última fileira da multi­dão, escutou meu comentário e respondeu amavelmente:

— Eram instrumentos de tortura utilizados durante a Inquisição

Encarei o rapaz que me falara com expressão inquiridora no olhar. Vislumbrei parte do seu rosto sob o capuz, e o sorriso claro era tão comum que parecia não combinar com aquele ambi­ente. Não tive resposta para dar, nem Thalya, pois o homem que nos acompanhava fez sinal chamando-nos de volta para perto da porta.

Caminhamos com passos rápidos mas meus olhos ainda estavam grudados nos tais instrumentos. Apesar da pouca luminosidade eram perfeitamente visíveis, grandes estruturas, al­guns tinham uma aplicação bem óbvia; outros, porém, realmente eu não consegui adivinhar como funcionavam.

Perto da porta o homem nos deixou a encargo de duas pes­soas que apareceram ali e estavam, obviamente, à nossa espera. Um homem e uma mulher. O homem nós não conhecíamos. Mas a mulher, apesar do rosto bem coberto pelo capuz, eu reconheci.

Era Rúbia! Ambos estenderam as mãos sobre nós, sorri­ram, abraçaram-nos. Foram abraços de verdade, aconchegantes, encorajadores. Que dispensaram quaisquer palavras.

— Vamos lá? — Disse simplesmente o homem para nós.

Havia uma longa passarela central forrada com tapete ver­melho e nós nos pusemos a caminhar sobre ela, um ao lado do outro. Eu e Thalya caminhamos no centro, Rúbia postou-se à mi­nha esquerda e o homem à direita de Thalya.

A primeira sensação foi de um leve temor que sacudia um pouco o corpo. Toda aquela numerosa multidão vestida de preto, com os capuzes cobrindo o rosto... era muito “diferente”! Mas em segundos a estranheza se desfez. Assim que eu e Thalya demos os primeiros passos pelo corredor uma música totalmente diferente se fez ouvir. Parecia que nossa entrada era um momento muito esperado! Não eram mais somente as vozes da multidão, havia agora também sons de instrumentos musicais.

E a melodia era linda.. inebriante... envolvente... algo que meus ouvidos jamais haviam escutado....! A cada passo sentia meu corpo arrepiar-se inteiro, parecia que ondas de calor e ale­gria me invadiam mais e mais. O impacto daqueles sons foi forte... a música produzida transformou completamente o ambiente!

O corredor por onde passávamos era largo e dividia a mul­tidão de pessoas em dois blocos. Arrastei os pés descalços de leve ao caminhar, vez por outra, porque o tapete era tão macio, sedoso, delicioso de pisar. Devia ser de peles de animais tingidas.

Uma seqüência de pequenos e bojudos pedestais dourados unidos por correntes prateadas mantinha as pessoas separadas da passarela. Sobre os pedestais observei uma seqüência de velas diferentes, alaranjadas, grandes como toras de cinco palmos de altura e que alternavam-se dentro de caçambas douradas. Dentro das caçambas também queimava incenso e o ar estava impregna­do pelo seu perfume. Reparei que o pavio das velas era proporci­onal ao seu tamanho, grossos como cordas.

As pessoas que estavam próximas do corredor olhavam para nós com semblantes cheios de simpatia, sorrindo, fazendo gestos de incentivo. Correspondi à alguns sorrisos mas logo meu olhar fixou-se no que deveria ser o altar, ocupando toda a porção frontal do enorme salão. Uma escadaria de mármore no fim da passa­rela permitia o acesso à plataforma. Bem ao lado das escadas, imponentíssimas, estavam duas gigantescas piras de fogo! E muito bem iluminados pelo fogo vi dois enormes símbolos claramente satânicos pintados na plataforma. Eu conhecia aquelas figuras, era uma forma “abreviada” de demonstrar o Pentagrama.

Enquanto caminhávamos devagar eu ia observando os de­talhes do altar, profundamente impressionado com tudo. Meus olhos não se desgrudavam mais de lá. Apesar disso procurei rapi­damente outras pessoas que pudessem estar sendo Iniciadas, como nós. Não havia. Éramos apenas eu e Thalya, descendo lentamente por aquela longa passarela.

Um misto de expectativa e curiosidade circundava-me cada vez mais.

Mesmo de longe pude visualizar um grupo de pessoas so­bre o altar, sentados em forma triangular: quatro homens de cada lado e um no topo, ao centro. Este estava em pé. E, ao que pare­cia, seus olhos estavam fixos em nós. Era o único sem capuz.

No centro do altar havia uma mesa retangular alta e com­pacta, um bloco único sobre o chão, inteiramente de mármore. O tampo era claro e, todo o restante, negro. Uma toalha negra cobria parte da mesa. Suas orlas eram primorosamente bordadas em ver­melho e dourado, com figuras, desenhos e inscrições em aramaico. Na porção frontal da mesa estava esculpida em relevo um Pentagrama dourado na posição do bode. Ou seja, com uma ponta direcionada para baixo.

A mesa estava posicionada sobre um enorme triângulo pin­tado no chão. Cada lado deste triângulo tinha seis metros de com­primento, a base estava voltada para o público e a ponta para os fundos do altar. O seu contorno externo era dourado e o interno vermelho-sangue. Ladeando a mesa havia dois candelabros de pra­ta com nove braços cada um, enormes! A vela central era negra e as demais vermelhas. Mas estavam apagadas.

Além da mesa e dos candelabros havia apenas mais um mó­vel dentro do triângulo. Volumoso, coberto por um manto, seu for­mato não lançava qualquer dica acerca do que haveria por baixo.

Vi também um outro móvel, pequeno, um pouco mais atrás da mesa de mármore, fora da área delimitada pelo triângulo. Era uma peça curiosa mas, como eu veria, importante no decorrer do Ritual. Era uma pequena coluna de mármore enfeitada de doura­do que se abria numa pequena pia também de mármore. Depois, reparando melhor quando cheguei mais perto, percebi ali também uma torneira dourada. Era realmente o que parecia: um pequeno lavatório para mãos.

Do outro lado estava um armário grande, de madeira escu­ra e bem polida, com portas de vidro transparente e maçanetas de bronze. Dentro dele pude ver algo como toalhas negras e verme­lhas, e uma infinidade de “coisinhas”: as prateleiras estavam re­pletas de caixinhas, potes de vários tamanhos e formatos, objetos estranhos, um considerável números de facas e punhais, com di­ferentes tipos de cabos e lâminas. Tudo muito bem arrumado, um lugar para cada coisa. Poderia comparar à uma bandeja de instrumentação cirúrgica.

Na parede dos fundos do altar, tomando toda a extensão desta, havia como que um tapete suspenso verticalmente e preso ao teto por duas grossas correntes. O tapete era de um vermelho bastante intenso, cor de sangue e, impressionante, bem destacado no centro dele, a figura em negro de um Pentagrama imenso. Em cada ponta do Pentagrama um símbolo em relevo.

Acima do tapete, quase no teto e um pouco inclinado para frente, um espelho enorme. A direita dele havia outro, enorme também, e levemente inclinado para frente. Os dois estavam pre­sos ao teto por correntes. Eram magníficos! Puro cristal, adorna­dos com pedras semi-preciosas, com moldura prateada e cheia de rococós. A disposição de ambos dava a entender que era um meio de as pessoas do fundo do salão terem boa visão de tudo o que ocorresse no altar. Especialmente naquele “miolo” composto pe­los móveis dentro do triângulo, o armário e o lavatório.

Talvez trinta por cento do altar — toda a extremidade direita — estava encoberto aos nossos olhos por uma cortina negra e es­pessa. A grande cortina descia de um ponto único do teto e abria-se, volumosa, como uma “tenda de circo” e por fim caía até em­baixo sobre o altar. Dava um visual bonito! “Quanto dinheiro não deve ter sido gasto com isso!” — A idéia me veio num flash. “Será que as pessoas que construíram este Castelo, e essas passagens, e esse porão estupidamente gigantesco... será que eles sabiam destes segredos? Ou será que morreram como os escravos que construíram as pirâmides?”.

Mas quê!... Minha mente se recusava a pensar. Não dei mais importância à nada. A caminhada estava quase no fim, sempre no compasso da música, instintivamente reverente. Parecia que aquele percurso tinha sido o tempo exato para que a música começasse a fazer simbiose comigo. Ou eu com ela. Parecia encaixar-se per­feitamente no ritmo do meu coração. Esqueci de tudo. Apenas meus olhos tentavam, extasiados, absorver o máximo possível de tudo o que viam. Eu estava completamente fascinado, maravilha­do, encantado, estarrecido. Literalmente sem palavras...

À medida que nos aproximávamos das escadas de mármo­re que nos levariam ao topo do altar comecei a sentir cada vez mais forte o calor tremendo que emanava das duas piras. Eram tão imensas!!! Pareciam aquelas das Olimpíadas!

Ali a luminosidade era muito intensa, eu sentia como se meu rosto estivesse a ponto de incendiar. Parecia que se eu che­gasse mais perto todo o meu corpo, minhas roupas e cabelo iriam pegar fogo. Confesso que tive um pouco de medo e instintiva­mente retardei um pouco o ritmo. Não queria mais caminhar... mas Rúbia não afrouxou, e as palavras de Marlon saltaram dentro de mim: “Filho do Fogo, o fogo não queima”.

Retomei a caminhada.

Mas como o tamanho daquelas piras era impressio­nante!... Eu erguia a cabeça mais e mais à medida que nos aproxi­mávamos delas. Estavam postadas sobre colunas de pedra, duas enormes taças de metal dourado e reluzente de dois metros de diâmetro. As labaredas erguiam-se, imponentes, muitos e muitos palmos acima de nossas cabeças!

Mas... que estranho... não parecia um fogo comum! Tinha uma cor diferente, parecia criar forma própria, parecia quase...  dançar!

Sacudi a cabeça. Bobagem! Era somente o calor que já es­tava me dando desespero, tão intenso e próximo agora que se tor­nava quase insuportável. Mesmo assim fui adiante, decidido, mas tão logo deixamos a passarela e caminhamos na direção da esca­da subitamente o ar deixou de estar tão quente...! E aquele calor brutal simplesmente tornou-se agradável, ameno... como um ba­nho de sol!...

Paramos um pouco ali, aos pés da escadaria. Respirei fun­do, introjetando as incríveis emanações daquele lugar, o calor do fogo, a fumaça, o perfume do incenso, a música belíssima. Virei o rosto e numa das primeiras fileiras pude ver Marlon, todo vestido de negro, encapuzado...tão diferente estava daquele jeito!

De repente começou um som forte e cadenciado, vigoroso. Os atabaques. Eles se sobrepunham à melodia e foi em meio a esse som que olhei para cima, para os nove degraus que nos leva­riam até o altar. Nove degraus...

Sem qualquer aviso prévio, de repente Rúbia ergueu a mão num gesto rápido e — incrível! — as dezoito velas dos candelabros acenderam-se instantaneamente! Olhei para ela estupefato, mas o homem que estava em pé sobre o altar fez um gesto autorizando-nos a subir. Rúbia apenas sorriu para mim antes de dar a volta e postar-se ao lado de Thalya. E o homem veio para perto de mim. Subimos todos, sempre lado a lado. O mármore estava morno por causa do calor.

Pude perceber melhor de onde vinha o som dos instrumen­tos: eles estavam todos na extremidade esquerda da plataforma, no fundo, encobertos parcialmente por um véu. Não havia quais­quer microfones mas o som era alto e potente, inundava tudo, fluía.

O cheiro adocicado do incenso era bem mais forte ali. E apesar de agradável parecia ser o responsável pela leve sensação de vertigem quando inspirávamos mais fundo. Nesse momento eu e Thalya nos entreolhamos. Difícil descrever o que sentíamos. Para dizer a verdade, eu nem sabia o que sentir. Não havia medo mas o clima cada vez mais intenso de expectativa se derramava sobre nós. Eu sabia que algo ia acontecer. Só não sabia o quê.

Estávamos enfim sobre o altar, diante do enorme triângu­lo. E pude observar de perto o estranho grupo de homens à minha frente. O que estava de pé no centro olhava para nós de modo estranho. Mas então eu o reconheci apesar da aparência tão diferente naquele momento! Era o homem alto que nos tinha recebido no “Jantar de Formatura”, nosso anfitrião! Que coisa... nem pare­cia ele. O rosto parecia diferente.

Os outros homens estavam com os braços cruzados sobre o peito e as cabeças abaixadas, o capuz bem puxado sobre o rosto. Não consegui enxergá-los bem. Eram todos Sacerdotes. E o que estava em pé era o Sumo-Sacerdote.

Eu e Thalya adentramos a área do triângulo. Nesse mo­mento um dos Sacerdotes ergueu-se e veio ao nosso encontro. Ficamos face a face com ele. O seu olhar era frio. Incomodava um pouco.

“Deve ser o jeito dele”, pensei com meus botões.

O Sumo-Sacerdote não se mexeu de onde estava. Conti­nuou próximo à mesa de mármore, com os braços estendidos. Mas à um gesto de sua mão as vozes que cantavam diminuíram um pouco. E a estranha canção continuou em tom sussurrado.

O Sacerdote aproximou-se mais ainda de nós, devagar, e olhou primeiro para mim. Parecia nem se dar conta da presença de Thalya. Seus olhos buscaram os meus. Tinham uma expressão tão estranha... nunca vira nada como aquilo. Como poderei descrevê-los?!... A sensação era que eles podiam olhar não apenas o meu rosto, mas aprofundar-se em todo o meu ser, perscrutar até o mais íntimo da minha alma. Parecia que me conhecia, que podia enxergar e ler os meus pensamentos.

Eu não podia ver muito mais do que o seu rosto por causa do capuz. Mas ele devia beirar uns quarenta anos. Sinceramente, só conseguia mesmo olhar nos olhos dele. Eram claros, cinzen­tos, muito profundos, cortantes. Após alguns momentos ele des­viou-se de mim e deu uma rápida olhada em Thalya, que perma­necia à minha direita. E voltou a me encarar. Não houve sorrisos de cumprimentos neste momento, ele abriu a boca e falou direta­mente com voz muito forte:

— Você tem certeza do motivo que o trouxe até aqui?

Respondi com convicção:

— Tenho.

— Então repita comigo o que eu vou dizer agora.

Eu repeti, frase após frase, palavras após palavra. Em suma foi uma espécie de “confissão” de votos de renúncia. Diante de todas aquelas pessoas, diante de Marlon e, principalmente, diante daquele Sacerdote, eu renunciei ao Cristianismo e suas doutrinas, ao Deus Vivo e a tudo que se referisse à Igreja Cristã. Em contrapartida prometi abraçar com todo o meu ser e vontade o Império da Trevas. E me dedicar exclusivamente à causa de Lucifér.

Em seguida ele voltou-se para Thalya com a mesma per­gunta, e fê-la repetir os mesmos votos. Quando terminou final­mente ele nos lançou um breve sorriso. E ainda encarando-nos profundamente, falou novamente:

— Vocês formam um casal muito forte. A soma do Poder de vocês será, no futuro, fonte de muito estrago no seio da Igreja e neste mundo hipócrita. Nesta noite vocês tornar-se-ão efetivamente filhos das Trevas, tornar-se-ão cúmplices do único deus que me­rece ser honrado e, à luz do novo reino, entrarão em aliança com Lucifér. E ele com vocês. E vocês conosco! Mas não só isso. Você também fará hoje aliança com ela. — E apontou para Thalya. — E ela com você. Hoje será feita uma aliança de sangue que os unirá perpetuamente um ao outro. E vocês a nós. E todos nós a Lucifér! Este é o ciclo que não se acaba!

Havia silêncio agora e todos ouviam com extrema atenção. Nem sei a que horas a música tinha cessado. Não se fazia ouvir nenhum ruído além do ressoar tonitruante da voz do Sacerdote.

Ele fez um sinal a Marlon para que viesse ao nosso encon­tro. Marlon subiu as escadas e aproximou-se de mim. Abraçou-me com força e carinho. O homem que estivera até então ao meu lado voltou-se respeitosamente, e desceu. Então o Sacerdote diri­giu-se ao meu amigo:

— Gostaria de parabenizá-lo por você ter localizado este rapaz e pelo seu cuidado e dedicação no seu preparo. Por causa do seu empenho hoje podemos estar aqui. É fruto do potencial dele mas também do seu trabalho. Esteja certo de que a sua re­compensa por isso será grande. Você será revestido de Poder, como espera e almeja.

Olhei de soslaio para Marlon enquanto ele curvava leve­mente a cabeça.

— Sejam bem vindos! — Bradou em alta voz o Sacerdote para Thalya e para mim.

E então, num gesto inesperado todo o povo se desfez dos capuzes, descobriram a cabeça e, amáveis, sorriam para nós de lá de baixo. O Sacerdote à nossa frente fez o mesmo. Ele era um pouco calvo.

Mas os outros Sacerdotes que estavam de mãos sobre o peito não se moveram. O Sumo-Sacerdote também não. Mesmo assim pensei que era só. Cochichei para Marlon:

— Arre, Marlon, já acabou?

— Não. — Respondeu ele achando graça. — Nem começou ainda!

E convidou-me a ajoelhar ali aonde estávamos.

— Ajoelhe-se agora, Eduardo. — Disse Marlon pondo-se tam­bém sobre os próprios joelhos. — Ajoelhe-se e aguardemos um pouco. — Ele tocou levemente em meu ombro, de forma solene. — Você irá receber o revestimento do Fogo!

Ele dedicava toda a sua atenção apenas comigo. Reparei que Rúbia continuava ao lado de Thalya e a orientava da mesma maneira.

Tão logo nos ajoelhamos, eu, Marlon, Rúbia e Thalya, ime­diatamente as músicas recomeçaram. Só que em tom bem dife­rente agora, todo o povo cantava em alta voz, os instrumentos rejubilavam. Havia um tremendo órgão de tubos por detrás do véu. Ele ainda não havia soado mas claramente passei a distinguir o seu retumbar potente, melodioso. Os atabaques também volta­ram a sua batida em novo compasso.

Marlon e Rúbia nos ensinaram algumas palavras fáceis das canções em aramaico para que pudéssemos participar com eles. Era relativamente simples porque o refrão se repetia muito. De forma que eu e Thalya passamos a acompanhar a multidão na canção, ajoelhados, aparentemente esperando por algo. Mas eu não tinha a menor idéia do quê... ou quem!

Era bom estar ali! Eu me sentia incrivelmente tranqüilo. A nova música era, como as demais, gostosa, agradável, e mudava constantemente. Um som totalmente novo. Meus olhos vagavam sem parar por todo o altar, era o máximo poder ver tudo de perto.

Olhei para a enorme “tenda de circo”. Havia uma abertura por onde se podia entrar e sair. O que será que tinha ali atrás que não podíamos ver?!

Minha curiosidade aguçou-se mais ainda quando um jo­vem saiu de lá e aproximou-se cuidadosamente da área do triân­gulo. Foi direto para a última ponta, lá atrás, onde estava o móvel esquisito coberto pelo manto. Ele retirou a cobertura expondo aos nossos olhos um enorme caldeirão de bronze, que brilhava. Outro jovem veio logo atrás do primeiro, ambos dobraram o manto e o fogo foi aceso debaixo do caldeirão. Nem reparei como o acenderam...será que foi Magia, como fez a Rúbia? De qualquer forma deveria haver um sistema de gás ali, como nas piras gigantes.

Depois duas mulheres apareceram também e dirigiram-se ao armário passando a retirar muitas das coisas que havia lá. Fo­ram arrumando meticulosamente sobre a mesa e percebi que de­veria ter uma forma toda especial de dispor os objetos.

Depois que tudo estava colocado sobre a mesa o Sacerdote de olhos cinzentos voltou a olhar para mim, e estendeu a mão na minha direção dizendo firmemente:

— Erga-se agora. — Falou. — Aproxime-se da mesa.

Sem dúvida era um homem de características muito marcantes. Eu obedeci, cheguei perto com o olhar cheio de curio­sidade. Ele apontou para as facas enfileiradas lado a lado, relu­zentes e impecáveis.

— Pega uma dessas e entrega na minha mão.

Observei-as rapidamente. Eu gostava muito de facas. Es­colhi sem hesitação a que me pareceu mais bonita. Ele me lançou um olhar aprovativo:

— Você fez uma ótima escolha! — E acrescentou, com um gesto de cabeça. — Segura um pouco na lâmina dela antes de me entregar.

Fiz o que ele dizia mas sem que eu pudesse prever, num gesto um pouco brusco, ele puxou o punhal pelo cabo num movi­mento muito rápido.

Não me assustei realmente. Um pequeno fio ficou riscado na palma e o meu sangue impregnado na forte lâmina.

— Este será um elo de sangue. E um elo de sangue não se rompe nunca.

Ele tornou a colocar o instrumento cuidadosamente no mes­mo lugar. E eu voltei ao meu posto, ajoelhado ao lado de Marlon. E, puxa vida..! Iniciava-se todo um Ritual ao redor do caldeirão. Parecia que estavam preparando realmente uma “poção”. Era in­descritível o que eu estava vendo... tudo era cheio de misticismo, de encantamento, de... como poderei dizer?!! Não poderei.

“Pôxa, essa história de caldeirão não é só coisa de filme. E essas bruxas não são feias, não têm verruga no nariz, não são velhas... aliás... UAU!”

Elas simplesmente tiraram os mantos com muita naturali­dade, ficaram ali sem roupa nenhuma. Eu não sabia se prestava atenção no preparo da poção ou se prestava atenção em... puxa, que coisa....! As duas eram bem jovens, talvez 23 ou 24 anos.

Aproximando-se, uma das moças abriu um pote e tomou uma espécie de pó nas duas mãos, jogou-o no caldeirão próximo das bordas, em sentido anti-horário; depois repetiu o mesmo mo­vimento algumas vezes, só que então com as mãos vazias. De­pois, erguendo os braços, fazia gestos e movimentos estranhos no ar, sempre entoando palavras estranhas e mantras. Uma ajudava a outra numa sincronia perfeita, quase uma dança mágica.

A mesma moça que tinha colocado o pó continuou jogando coisas lá dentro. Colocou ervas secas que tirou de outro recipien­te: esmagava-as na altura da cabeça e as deixava cair dentro do caldeirão esfregando uma palma na outra.

“Essa história de bruxa existe mesmo!”

Eu continuava boquiaberto. Os dois rapazes andavam ao redor do caldeirão a uma certa distância. E também faziam gestos estranhos e entoavam mantras.

Aquilo perdurou por um tempo, sempre do mesmo jeito à medida que os ingredientes iam sendo colocados no caldeirão e remexidos lá dentro. Eram bruxos de verdade, em plena ativida­de!

O Sumo-Sacerdote e os outros Sacerdotes permaneceram todo o tempo parados e sem olhar para o que acontecia em torno do caldeirão. Não parecia despertar-lhes o menor interesse. E o Sacerdote de olhos cinzentos que nos recebera ficou todo o tempo diante de nós, em pé e com os braços estendidos em direção às nossas cabeças, falando palavras estranhas. Que esquisito!!!

Por fim a mulher que punha os ingredientes tomou uma jarra e despejou um pouco do seu líquido dentro do caldeirão. Parecia que havia acabado seu trabalho. Tudo deve ter durado pouco menos de uma hora. Mais tarde eu vim a saber que as mu­lheres são muito bem vistas dentro do contexto do Satanismo e da Irmandade. Pois foi a mulher que teve a sabedoria de comer do fruto proibido e, cheia de poder de sedução, ofereceu-o também ao homem.

De repente a música deu uma parada brusca por alguns se­gundos. Ficou claro que aquela etapa estava terminada. Então os atabaques iniciaram sozinhos, novamente, mas em ritmo comple­tamente diferente. Eram ritmados, intensos, cada vez mais inten­sos, vigorosos. A música reiniciou, acelerando aos poucos, tor­nando-se agitada, perdendo aquela suavidade melodiosa de até então. O povo todo retomou os cânticos e os mantras.

E comecei a reparar que subitamente o ar parecia mais den­so, mais pesado, quase que difícil de respirar. Seria real ou im­pressão minha? Comecei a sentir uma sensação esquisita por todo o corpo, como “choquinhos” na musculatura, como se houvesse algo elétrico percorrendo o meu corpo. Mas era diferente do que eu tinha experimentado na “Escola”...

Reparei que finalmente os Sacerdotes ergueram-se ao mes­mo tempo, dispuseram-se lado a lado sobre toda a extensão do triângulo, de braços abertos e com as pontas dos dedos tocando-se levemente. Falavam palavras estranhas como “rezas”, sem pa­rar, balançando o corpo como se estivessem em transe.

Então um daqueles jovens trouxe uma gata negra e adulta que já havia sido preparada para aquele momento. Instintivamen­te eu sabia qual seria o fim dela. Na minha cabeça eu remoía lembranças e palavras... sobre os animais que o “Deus de Amor” pedia às dezenas, centenas, milhares. Animais até mais dóceis... carneirinhos, pombas... ou animais maiores, com maior resistência...que demorariam mais a morrer.

Pensei que a colocariam sobre a mesa, mas para minha sur­presa a mesa não se destinava a ela. A gata foi oferecida ali mesmo, sobre o caldeirão, e em poucos minutos estava morta, sua vida escoando-se junto com o seu sangue. Quando eu a vi morrer... senti muito ódio de Deus. Ódio de tanta abominação. Lucifér, pelo menos, se contentava com um animal só.

Remexi-me sobre os joelhos, levemente incomodado. Olhei de rabo-de-olho para Marlon, mas ele não pareceu dar importância.

Depois daquele sangue mais alguns ingredientes foram ain­da colocados no caldeirão. Mais tarde eu aprendi com detalhes a “receita”. A maioria dos constituintes eram pouco comuns.

A tensão criada pela música e pelos atabaques antes do sacrifício da gata havia amainado. Mas agora parecia crescer de novo. Realmente. Outra vez aquela coisa no ar, aquela expectati­va, o ar denso, sufocante. Mais ainda do que antes.

Os atabaques retumbavam furiosamente agora, cadenciados, incessantes, insistentes. A música crescia e se avolumava gerando um clima de tensão, como que querendo chegar ao clí­max de algo, antecipando alguma coisa. Olhei ao redor procuran­do ver o que viria, pois era óbvio que vinha algo, só não sabia o quê, ou por quê, mas os atabaques repercutiam com mais força ainda. Pressenti que aquele deveria ser o ápice da Cerimônia. Arrisquei um olhar às minhas costas e pude observar que o povo estava visivelmente alegre, festivo, cantando.

A toalha negra então foi retirada de sobre a mesa.

Meus olhos estavam muito abertos e dessa vez minha men­te praticamente parou de raciocinar. Não conseguia raciocinar. Não conseguia pensar no que viria, procurei não adivinhar... não perceber... o que trariam para colocar ali?

Uma vez retirada a toalha vi que a mesa tinha sulcos late­rais e todos drenavam para o mesmo canto. Ali havia um recipi­ente parecido com um jarrinha dourada. Argolas de bronze ajus­táveis na região superior e inferior da mesa pareciam estar providencialmente destinadas à um fim que eu preferia não entender.

Eu olhava, e olhava, apenas olhava, quase sem compreen­der. Cada detalhe, cada gesto, cada som iria impregnar-se indescritivelmente em minha memória. Lembro-me bem... de cada nuance....de tudo o que vi, ouvi e senti.

Desta vez o Sumo-Sacerdote adiantou-se. Saiu do seu lugar. Fez um gesto. Notei a expressão dos seus olhos, um misto de satisfação e — talvez — sarcasmo?! Não saberia dizer. Os lábios mostravam um leve sorriso, um ar de regozijo inundava-lhe a face como que antevendo algo prazeroso, indescritível.

Então eu a vi. Veio trazida nos braços de um homem e en­volta em um manto vermelho, saindo de trás das cortinas negras. Tinha a pele clara, os cabelos escuros e lisos cortados “channelzinho”, os olhos ligeiramente amendoados, talvez sete anos. O olhar era perdido, embaçado, e ela não oferecia resistên­cia. Notava-se que estava sob efeito de alguma droga, como que hipnotizada, mas não sonada. Apenas sem vontade própria.

Ela foi colocada sobre a mesa, cerimonialmente. Percebi para que se destinavam as argolas e senti um aperto dentro do peito. Eu estava grudado no chão e podia sentir o meu próprio coração pulsando violentamente na garganta. Olhei para Thalya que, à princípio apenas assumiu uma expressão inquiridora no rosto. Como quem diz: “O que ela está fazendo aqui??”.

E aí aconteceu uma coisa estranha. De repente Thalya co­meçou a se encolher ali ao meu lado, seu corpo parecia pesado, como se ela estivesse com muito sono. E realmente, como que “adormeceu”... parecia letárgica, meio desfalecida. Mas embalava o corpo no ritmo da música, jogando a cabeça de um lado para o outro, de olhos fechados. Eu nem acreditava no que estava vendo.

“O que será que deu nela?”

Mas Thalya continuava do mesmo jeito, às vezes erguia os braços bem para o alto, fazia movimentos amplos e continuava naquele estado meio de “transe”.

As moças e os jovens que tinham auxiliado até então saí­ram por onde tinham entrado e não os vi mais.

O Sumo-Sacerdote, que estivera meio agachado próximo à mesa finalmente aproximou-se de nós. Pela primeira vez chegou perto de nós. Esqueci de tudo e olhei na sua direção. A partir daí pude perceber uma mudança clara no seu rosto. Eu sabia que to­dos eles estavam canalizados pelas Entidades desde o início, mas parece que elas não tinham estado tão excitadas até então. Perce­bi que aquele era um momento do qual todos tomavam parte ati­vamente.

O Sumo-Sacerdote passou a recitar frases inteiras de en­cantamento em aramaico e todo o povo repetia em uníssono após ele, cada vez mais exaltado. Aquele homem me chamava muito a atenção! Não apenas por ocupar uma posição de destaque, mas por causa da tremenda diferença desde quando eu o tinha visto pela primeira vez em casa de Zórdico. Observei melhor os deta­lhes do seu rosto. A pele era lisa, ligeiramente bronzeada, com sobrancelhas muito espessas e escuras que cobriam olhos tam­bém negros, profundos. Olhos que exerciam aquele intenso mag­netismo. A musculatura do rosto estava diferente... conferia um formato estranho à face, não parecia um contorno muito humano. Na mão dele notei dois anéis, um no dedo mínimo e outro no anular.

Olhei novamente para trás rapidamente e vi que todos con­tinuavam cantando, e dançavam também, alguns apenas embala­vam-se ao sabor da música, outros davam-se e erguiam as mãos. Cânticos, danças e encantamentos sobrepunham-se uns aos ou­tros. O Sumo-Sacerdote fazia gestos amplos com os braços e sau­dava o povo com um cumprimento que simbolizava a cabeça do bode. Os outros Sacerdotes movimentavam-se numa espécie de dança toda característica ao redor do triângulo. E sempre produ­zindo aqueles sons estranhos, e palavras estranhas, e mantras.

A atmosfera estava “elétrica”. De repente percebi que to­dos entraram como que num êxtase, erguiam as mãos e se regozi­javam cada vez mais. Era realmente um estado de euforia. Mas o mais interessante é que agora todos olhavam numa única direção.

Eu achei esquisitíssimo porque, afinal, não havia nada ali. Olhei para Marlon, interrogativamente, mas ele também tinha toda a atenção voltada para o mesmo ponto, os olhos altos, para cima, movendo-se de leve como que medindo algo, acompanhando os movimentos de algo... muito grande! Ele olhou para mim de re­lance, só um desvio do olhar. E repetia frases que para mim eram muito vagas:

— Seu Guia é poderoso! Muito poderoso mesmo! — Excla­mava com alegria e leve emoção na voz. — É um dos mais respei­tados, e ele te escolheu.

Repetiu diversas vezes: Ele te escolheu!

Será que toda aquela alegria era por causa da presença dele?!! Do tal Guia?

Por fim o Sumo-Sacerdote se adiantou, chegou perto de mim e falou pela primeira vez:

— Este será aquele que o acompanhará! — Retumbou em tom grave, com aquele timbre que mais parecia fruto de um mi­crofone na garganta. Nem de longe a voz que eu conhecia. E apon­tou para o vazio. — Ele será o seu Guardião a partir desta noite, o seu Guia, o seu Protetor. Tudo que você lhe pedir será atendido. — Fez uma pausa. Seus olhos pareciam absorver a minha alma. — Só que tudo tem um preço...

Eu sabia disso.

Mas estranhamente eu não tinha medo algum. Apenas uma sensação de expectativa. Olhei de novo para onde ele tinha apon­tado, mas continuei sem enxergar nada. E todos pareciam conti­nuar vendo algo.

Meus olhos cruzaram rapidamente com os de Thalya, que estava voltada na minha direção e parecia muito bem acordada agora. Nem parecia que há tão pouco tempo estivera meio fora da realidade. Aparentemente nós éramos os únicos peixes fora d'água.

— Estenda a sua mão esquerda agora. — Disse-me o Sumo-Sacerdote.

Obedeci e estiquei a mão na sua direção com confiança. Neste mesmo momento senti Marlon tocar em meu ombro. Des­viei minha atenção do Sumo-Sacerdote por poucos segundos.

— Não precisa ter medo, filho. — Falou Marlon paternal-mente. — Você é bem vindo aqui! Nós te amamos muito!

Não houve dor nenhuma mas nem bem Marlon terminou de falar e senti algo quente escorrendo sobre a mão que eu esten­dera. Olhei e vi que era meu próprio sangue que escorria. Nem sei o que aconteceu.

O Sumo-Sacerdote cobriu minha mão com a sua e apertou o ferimento até que duas ou três gotas de sangue pingassem den­tro de um pequeno cálice. Ele me largou sem dizer palavra.

“Acho que foi só um pequeno corte”, refleti ao observar o local, um pouco abaixo da base do indicador. Vi que o Sumo-Sacerdote foi para o lado de Thalya. Algumas gotas do sangue dela foram recolhidas no mesmo cálice. Mas acho que ela tam­bém não percebeu como foi feito o corte. Rúbia chamou sua aten­ção no momento “H”. E eu, apesar de atento, não vi nada. Sei lá o que aconteceu. Mais tarde fiquei pensando: “Como é que pode...?! Não vi nada!”

Mas, em se tratando dela e de mim, de fato aquilo era mais do que um casamento. Nós já tínhamos as alianças mas agora nosso elo era também de sangue. Nosso sangue estava ali, mistu­rado no mesmo cálice.

Então o Sumo-Sacerdote esticou a mão sobre a mesa aonde estavam os punhais. Os atabaques aumentaram ensurdecedora-mente, o ritmo assemelhando-se ao acelerar de um coração... um coração que pressente o cheiro da morte...tão próxima, tão iminente... e sabe que não existe nenhum outro caminho...! Um coração submetido a uma indescritível descarga de puro terror.

Vi quando ele fechou os olhos e, sem olhar para a mesa, pegou um dos punhais e o ergueu diante da multidão, acima da sua própria cabeça. Era o mesmo que eu escolhera! O que estava impregnado com o meu sangue!

A música parou subitamente e, como que num gesto ensai­ado toda a multidão caiu de joelhos.

Ele olhou bem dentro e profundamente em meus olhos, foi baixando devagar o punhal até tê-lo à altura do meu rosto. Então Marlon empurrou-me levemente, tomando-me pelo braço, e fez com que eu tocasse com minha mão esquerda na ponta do punhal. Depois o Sumo-Sacerdote aproximou-se de Thalya, e Rúbia fez com que ela repetisse o mesmo gesto.

O silêncio era absoluto.

Então o Sumo-Sacerdote novamente ergueu o punhal e apro­ximou-se da mesa. Não houve tempo de pensar em nada.

O golpe foi extremamente preciso, e muito forte. E o silên­cio foi estridentemente partido. Os dedos dele curvaram-se em garra sobre o peito dela. Não pude olhar. Voltei o rosto instintivamente para o outro lado, puxei o capuz violentamente sobre a cabeça. Escutei um baque seco e um som quebradiço. Tudo não durou mais do que segundos. Aquela força não era humana...

Quando voltei a olhar o Sumo-Sacerdote estava com ele nas mãos... ainda pulsando... e encaminhando-se para o caldeirão, o colocou ali. O sangue recolhido na jarra dourada foi derramado também, em meio às palavras de encantamento. A taça aonde es­tava o meu sangue e o de Thalya foi também adicionado e, ao que parece... aquilo tudo... estava terminado. Aqueles de fato foram os últimos ingredientes, os elementos mais “nobres”.

Vi que Thalya estava novamente meio “apagada”, balan­çando o corpo, com a cabeça baixa. Será que ela tinha visto......?!

O Sumo-Sacerdote retirou um pouco daquela mistura que tinha levado a madrugada inteira para ficar pronta e colocou em uma taça. Novamente aproximou-se primeiro de mim. Com reve­rência estendeu-me algo que me lembrou uma hóstia, nem sei de onde ele tirou aquilo.

— Abra a boca.—Disse ele.

E deu-me a comer o que tinha nas mãos. O gosto não era ruim, somente ela parecia viscosa. Engoli e esperei.

— Agora você faz parte do nosso corpo.

Então estendeu-me a taça com a mistura. O líquido era ver­melho, bem escuro e espesso.

Tomei a taça nas mãos de olhos fitos nele. E bebi.

— Agora você também é sangue do nosso sangue, e está em aliança conosco. Você é um irmão muito querido. Hoje você foi feito filho do Fogo. E o seu Guia é muito poderoso... ele está aqui agora. — Disse de novo o Sumo-Sacerdote para mim. — E a partir de então ele o acompanhará. Repita comigo o que vou dizer...

Pronunciou algumas palavras que não entendi, mas diante do olhar de incentivo de Marlon eu as repeti. E esperei confiante-mente enquanto o Sumo-Sacerdote continuou a recitar frases es­tranhas sobre a minha cabeça. E depois, colocando-se diante de mim desenhou uma cruz de ponta cabeça sobre a minha testa, entre os olhos. Usou a mesma mistura da taça.

— Repita comigo novamente. — Tornou a ordenar o Sumo-Sacerdote.

Desta vez repeti novamente o juramento que fizera ao en­trar, renunciando a Cristo, à Igreja e aos ensinamentos Cristãos. Aquela confissão, eu sentia, não era mais apenas para o povo ou­vir. Ao que parecia devíamos estar diante de alguma Entidade — no caso, o meu “Guia” — e ele deveria escutar minhas palavras. Eu não poderia mentir. Toda aquela negação tinha o efeito simbó­lico de “esvaziar-me” para que eu pudesse ser preenchido por coisas novas.

Assim que terminei o Sumo-Sacerdote colocou a mão pesadamente sobre a minha cabeça e, com voz de trovão nova­mente falava e falava, como uma ladainha. Senti sua mão pressionando-me e baixei os olhos sem querer. Eu ouvia o som da voz dele misturada à música e às vozes da multidão. Senti meu cora­ção acelerar aos poucos.

Finalmente ele retirou a mão. Vi claramente o gesto que ele fez, desenhou um Pentagrama no ar e como que o “empurrou” na minha direção. A seguir molhou novamente os dedos no líqui­do da taça e estendeu-os sobre o meu rosto. Fechei os olhos instintivamente e senti quando ele tocou-me nas pálpebras cerra­das, passando a mistura.

Abri novamente os olhos e lá estava ele, encarando-me:

— Lembra-se do que você aprendeu sobre o “estar na som­bra”? Que quem está na sombra enxerga tanto a luz... quanto a sombra? — Sorriu levemente, e o sorriso parecia repuxar o seu rosto. — Agora você pode ver o que nós podemos!

Não compreendi bem o que ele disse. Eu me encontrava um tanto ou quanto atordoado, mas ao desviar dele os meus olhos...que coisa impressionante...! Estava tudo tão diferente! Era com se eu nem estivesse mais no mesmo lugar... por uns instantes perdi a noção de tudo, do Sumo-Sacerdote, de Marlon, de mim mesmo. E procurei me situar. Compreender o que estava aconte­cendo.

Aquele barulho ensurdecedor, infernal, de onde vinha, as­sim tão alto?!... Era como muitas vozes e muitos grunhidos ao mes­mo tempo. O som me atordoou mais ainda.

Só que aí... eu os vi! E só conseguia contemplá-los...

Estavam junto aos brasões, sobre eles, sobre as paredes, como um enxames de moscas negras...! Não, pareciam mais como morcegos-gigantes grudados ali. E no salão também, espalhados, junto com as pessoas, enormes vultos negros bem maiores do que os seres humanos, por trás e ao lado deles. Uma quantidade enorme! Alguns estavam não apenas próximos das pessoas, mas sobre elas, arraigados, aderidos ao ponto de que o que pareciam ser braços e mãos penetravam o crânio e o tórax das pessoas...! Como imensas sanguessugas.

Eu procurava ver direito, forçava e forçava a vista, queria ver se eles estavam mesmo ali, seria possível?!!!

Mas, sim! Por mais que eu piscasse e sacudisse a cabeça... eles continuavam lá. Sem compreender exatamente o que significava tudo aquilo eu me virei procurando pelo Sumo-Sacer­dote. Mas ali, à minha esquerda, algo me chamou tanto a atenção que esqueci completamente dos seres que eu podia contemplar à distância.

A primeira impressão foi de espanto:

“Ôôxa!...”

Meus pensamentos rodopiavam a milhão.

“Como é que eu não reparei antes nessa estátua? Como deixei de ver uma estátua tão grande e tão visível?!”

Ela estava mais ou menos a uma distância de cinco metros de onde eu me encontrava, só que fora dos limites do triângulo. Tinha uma altura colossal, destacava-se de tudo porque era sim­plesmente maior do que tudo! Que coisa fora dos padrões... mas....... teria visto ela se mexer?!!!

“Virou um pouquinho a cabeça, eu vi!!! Realidade? Ou não? Verdade...?! Ou mentira?!”

Minha cabeça dava voltas em milésimos de segundos. Senti uma fagulha de medo e o instinto me dizia para simplesmente sair correndo, mas eu estava petrificado, grudado no chão. Queria conseguir me virar e perguntar a Marlon o que estava acontecen­do, mas não consegui.

“Isso não pode estar aqui. Não é real mesmo, é só efeito das drogas. Estou tendo uma alucinação!”

Sacudi a cabeça para o lado com certo esforço, esperando ver o facho de luz que a maconha produzia às vezes. E nada! Eu procurava me manter calmo naqueles poucos segundos que pare­ceram durar muito.

“Pôxa, essa droga é do além, o que será que usaram...? O chão não afunda, não dá facho de luz, não muda as cores... só dá alucinação! Deve ter sido o incenso... ou as ervas... ou o que aca­bei de comer e beber.....”.

Mas de repente aquele gigante baixou a cabeça e olhou para mim!!! Até então estivera imponentemente com a face volta­da na direção da multidão. Mas agora eu parecia ser o verme, o rato, o inseto que estava despertando o seu interesse! Tive medo de verdade.

“Nossa, como eu estou balão, estou vendo o Inferno........................!”

E eu queria poder fechar os meus olhos até passar tudo aquilo. Mas era impraticável. Os olhos dele, ah, que olhos!! Eram um puro terror.

Eu já experimentara a estranha sensação de ser olhado pe­los Sacerdotes, mas o olhar do gigante era infinitamente mais pe­netrante, realmente indescritível. Exercia um efeito quase hipnóti­co, magnético, como se eu estivesse sendo sugado por eles. Me sen­tia desnudo... o seu olhar me traspassava, entrava por cada poro do meu corpo, vislumbrava minha alma, minha mente, meu coração...

Meu coração! Galopava em surdas batidas dentro do peito. E o sangue parecia fluir violentamente para as têmporas, mas te­nho certeza de que meu rosto deveria estar muito pálido. E se eu não estivesse de joelhos era bem capaz de ter caído sobre eles diante daquela visão... visão, sim, porque comecei a perceber que não era nenhuma alucinação! Nem o que eu vira e ouvira primei­ro, e nem o terrível ser que estava postado a poucos passos de mim.

Ouvi a voz de Marlon ao meu lado, como que vinda de um sonho:

— Este é o seu Guardião.

Meu Guardião.............. era impressionante! Minha mente travou. Parecia que tinha perdido a noção da realidade.

Os temíveis olhos eram absolutamente negros. Na verdade pareciam dois enormes buracos no rosto dele, e o resto do olho era de um tom vermelho muito intenso, como sangue... como se aquelas esfera negras estivessem mergulhadas em lagos de san­gue. Assim eram aqueles olhos!

Uma boca proeminente saltava-lhe da face sobre uma mandíbula também proeminente. O cabelo era comprido, grosso, bem negro e brilhante, semelhante a crina de cavalo. A pele, es­cura, lembrava uma espécie de couro bem grosso e formava como que escamas sobre o peito. Parecia uma couraça. As mãos eram grandes e os dedos, longos e fortes, terminavam em pontas como se fossem garras.

Mas o mais incrível... a musculatura! Totalmente fora dos parâmetros humanos: incrivelmente forte, com músculos muitís­simo definidos em seus contornos, esplêndidos, vigorosos. Nada que alguém pudesse vir a ter algum dia, nem com toda a ginástica do mundo!

E, enfim! Ele me fez um gesto com a mão, de repente, e deu-me um sorriso!!!! Pareceu um sorriso amável, ainda que não combinasse muito bem com os olhos. Porque o sorriso era terno e ele pareceu simpático no seu cumprimento... mas naqueles olhos não havia ternura alguma, não havia amor... destoavam do con­junto. Pareciam carregados de ódio, ameaçadores. Pareciam que­rer engolir-me vivo!

O sorriso abriu-se um pouco mais e pude ver os dentes do meu Guardião. Ele parecia ter mais caninos do que o comum. Era tão assustador. Mas não era propriamente feio... não, não era feio! Só assustador. Por causa daquele vigor físico inacreditável... e da­quele olhar.

Então ele lentamente caminhou na minha direção, ou flu­tuou, sei lá, eu só olhava para cima, para o seu rosto, e vi-o agigantar-se diante de mim. À medida que ele se aproximava sen­ti um cheiro forte, doce, amadeirado...não era desagradável...

Adentrou o triângulo e ficou perto, muito perto!

A adrenalina corria solta nas minhas veias! Me parece que ele se agachou ao meu lado, ficou com o rosto enorme quase que face a face com o meu. E me tocou de leve no ombro esquerdo! Devagar, suave, mas a sua mão era gelada!

E disse:

— Não temas... eu estou contigo!

Voz suave. Mas potente, poderosa, gravíssima. Senti a vibra­ção daquela voz em todo o meu corpo, como se ela viesse de todos os lados. Era uma linha tão tênue entre a fantasia e a realidade...

— Acabou o deserto. — Continuou ele. — Acabou o tempo de solidão. Acabou a fraqueza. Estamos juntos agora. Estou aqui para acrescentar “Poder à sua força”... à sua capacidade... aos seus dons...à sua vontade! Estarei sempre ao seu lado. Completarei aquilo que falta em você. E você completará o que falta em mim. Meu corpo estremeceu sem querer. Faria eu alguma dife­rença a um ser... como ele?!

— Sim, você me completa. — Tornou a Entidade, buscando o fio da meada dos meus pensamentos. — De que valeria todo o meu Poder se não pudesse reparti-lo com alguém? De que adianta um rei sem súditos, sem alguém com quem compartilhar a sua força, a sua posição?

Eu ainda tinha receio diante dele mas as suas palavras sur­tiram bom efeito. Senti-me orgulhoso com tanta honra. Mas aí uma mão tocou o meu ombro. Foi difícil desviar os olhos da figu­ra daquele demônio. Quando o fiz dei de cara com Marlon, que estava ali, à minha direita e não mais à esquerda. Thalya tinha sumido. Rúbia também.

— Este é o Abraxas. — Esclareceu Marlon. — E você tem o grande privilégio de ter sido escolhido por ele!

Não consegui me concentrar no que ele me dizia. Abraxas... Abraxas?! Nem escutei, para dizer a verdade e, sem dar resposta, desviei-me novamente para Abraxas. No entanto.........ele se fora! Olhei para Marlon, mudo e boquiaberto.

— Mais tarde você compreenderá tudo. Por hora, acredite: você foi tremendamente contemplado! Ele é um dos príncipes mais poderosos que existem aqui no Brasil, uma Potestade muitíssimo respeitada. É um dos senhores de São Paulo.

— Ah....é?! Pôxa... — Foi tudo o que consegui dizer. E lá para mim mesmo: “Quem poderia combater uma criatura tão gran­de e poderosa assim?!”

Antes que eu tivesse chance de perguntar a Marlon qual­quer outra coisa ele se levantou e deu-me um forte abraço, muito caloroso, estreito...algo que eu nunca havia recebido... nem do meu próprio pai...! Um abraço gostoso, paternal, aconchegante!

O Sacerdote de olhos cinzentos veio logo a seguir e abra­çou-me também, sorrindo, parabenizando-me. O Sumo-Sacerdote fez o mesmo, envolvendo-me com seus braços enormes. Estava agora como eu me lembrava dele! Seu nome era Akilai.

— Seja bem vindo! — E a sua voz soou tão diferente, tão... humana!

Os demais Sacerdotes foram-se aproximando todos de mim, alegres. Reparei que estavam “normais” agora! A expressão do rosto modificara-se visivelmente, a musculatura facial não pare­cia tão esquisita. Os olhos haviam perdido aquela expressão gela­da e cortante, profunda... as vozes estavam diferentes...

Eu já sabia na teoria como acontecia a “canalização” mas ainda não tinha tido a oportunidade de ver na prática como funci­onava. Os Sacerdotes estavam todos com expressões leves agora, sorrindo, contentes, esbanjando palavras de incentivo e boas vin­das, cercando-me por todos os lados sobre o altar.

— Nós seremos uma verdadeira família para você, espere só e vai ver! Feliz início!

— Esperamos que você se sinta bem acolhido no nosso meio!

— Você esteve muito bem. Parabéns!!

— Parabéns pelo seu Guia! Ele viu a força tremenda que há em você!

— Você é muito especial!

— Parabéns!

— Parabéns!

— Parabéns!

Não cessavam de dizer isso. Eu não sabia bem se era por causa de Abraxas ou se realmente os votos eram porque eu estava fazendo anos. Com certeza foi o aniversário mais estranho que já passei.

Olhei ao redor antes de descer do altar ao lado de Marlon. Pelo jeito, havia acabado! Todos me rodeavam. Eram sinceros e extremamente cordiais, como se já me conhecessem há muito, como se de fato eu fosse um irmão muito querido. Abraços, aper­tos de mão, sorrisos, palavras amigas e cheias de calor humano. O carinho que senti ali era novo para mim. Era transparente, verda­deiro, natural. Congratulavam-se comigo porque eu já era parte daquele corpo!

— E Thalya? — Consegui perguntar a Marlon em dado momento. — Que fim deu nela?!

— Ela foi assistida por mulheres, à parte. Logo estará aqui de volta.

— Mas a que horas ela saiu? Eu nem vi!

— Enquanto você comia e bebia da taça.

Não me preocupei mais e fiquei entretido com Marlon, que me apresentava a todos que conseguiam aproximar-se de nós.

A multidão produzia um burburinho festivo que, para mim, combinava muito pouco com o que acontecera ali. Mas eu procu­rei não pensar em nada, não lembrar de nada. Minha mente ainda estava transtornada, eu me sentia emocionalmente embotado, en­torpecido. Ainda me perseguia a sensação de estar participando de um “filme”. Não poderia ter sido tão real.

Limitei-me ao convívio com as pessoas e distribuí sorrisos e risadas. Aquilo me aliviava a tensão. Mesmo assim, apesar de fagocitado pela multidão arrisquei um rápido olhar sobre os ombros... para o altar... para a mesa...

— Seja bem vindo, irmão! — Uma mulher morena pegou-me nas mãos.

Sim, eram todos muito simpáticos! Eu simplesmente dei­xei de lado o altar. Sorri para ela.

Agora era hora de festa.

***

Nós já estávamos à porta de outro salão quando Thalya correu para mim de braços abertos, esbarrando em uns e outros no meio da multidão.

— Eduardo!!! — Ela deu-me um forte abraço, pulava, ansio­sa, puxando-me pelo braço, querendo falar e não sabendo como começar.

— Aonde é que você estava, Thalya? — Perguntei, entre ri­sos, também louco para contar o que me acontecera.

— Cara, você não vai acreditar!! — Respondeu ela, quase gritando.

— Pois você é que não vai acreditar no que eu tenho para contar!!!

— Ah, mas o que é que foi?

Não houve tempo. Rúbia aproximou-se de nós.

— Vamos?

Um misto de encanto, assombro, alegria nos dominava... difícil dizer! Que bom que Thalya estivesse ali.

As pessoas haviam saído aos poucos do salão do Ritual (que na verdade era chamado Átrio Ritual) sem pressa, aprovei­tando o momento de confraternização: eram muitos os risos e sor­risos, os afagos, as mesuras, as cordialidades. Todos estavam ale­gres, bem humorados, ninguém de cara amarrada, nenhuma gros­seria, nenhum tumulto. O povo se abraçava, aproveitava para re­ver velhos conhecidos, trocavam convites e palavras amistosas.

Todos que passavam por nós sorriam, nos abraçavam... nunca vira nada igual. Era impossível cruzar um olhar com alguém e deixar de receber, no mínimo, um amplo sorriso. Eu estava acostumado à frieza do “povinho” evangélico, do seu preconceito e total falta de consideração. Tudo o que eu ouvira em teoria nas Igrejas, aqui era real. Eu tinha encontrado a verda­deira “Igreja”. Tinha certeza.

O salão onde estávamos entrando era bem próximo do ou­tro. O acesso a ele se dava mais ou menos por baixo da escadaria, saindo por um corredor lateral. Eu não tinha reparado antes, nem Thalya, por causa da curiosidade em saber o que iria acontecer.

Este novo ambiente era como um enorme salão de festas. Estava iluminado com lâmpadas de verdade, muito bem ilumina­do por sinal. Havia um enorme número de mesinhas com seis lugares espalhadas por todo o recinto, como num restaurante. Tudo * projetado para confraternização. Um tablado muito grande lá na frente, enfeitado, lembrava uma pista de dança. Num outro ponto encontrava-se um barzinho com banquinhos altos, aconchegan­tes. Era gostosinho!

Eu, Thalya, Marlon e Rúbia procuramos nos sentar juntos. Eram quatro e meia da manhã. Conversávamos muito, o clima era agradável, e logo começaram a servir algo para comermos. Em nossa mesa estavam mais dois homens. Um deles era louro, com marcantes traços alemães, de cerca de 28 anos, simpático mas de poucas palavras. Seu nome era Górion. O outro, Ariel, era falante e espevitado, magricelo, com cabelos claros, arrepiados. Ele não ' era muito mais velho do que eu. Talvez tivesse seus 22 anos.

O povo estava acomodado nas mesas: uma infinidade de pessoas em mantos negros. Virei-me para Thalya e cochichei:

— Já imaginou tirar uma foto nesse lugar?!

O banquete consistia em carne e vinho. Mas não foi como numa churrascaria, por exemplo, onde come-se muito. A carne era muito boa e o vinho também, mas em quantidade moderada. Tomei minha taça, fizemos um brinde. O vinho era de coloração rubra; o sabor forte, encorpado. A carne vermelha estava tenra, suculenta, deliciosa!

Para minha surpresa vi que a música que animaria aquela festa seria ao vivo. A banda entrou prá arrasar, tocaram de tudo um pouco. Cantavam em inglês mas até para alguns sucessos bra­sileiros do momento houve espaço. Me animei. Rúbia me cha­mou para dançar. Eu não dançava, mas fui brincar, Thalya tam­bém. Foi divertido. Em dado momento alguém me pegou pelas costas, pelos ombros, e eu assustei de verdade. Virei já em atitude de defensiva.

— Calma! Ninguém vai te fazer nada, não! É só brincadei­ra! — Esclareceu o grupo de jovens atrás de mim. — Quer ver a gente te jogar pro alto? É super-gostoso!

Parecia uma brincadeira inocente. Nem sei porque me as­sustei tanto. Acabei rindo e eles me jogaram para o alto várias vezes, no meio da gritaria. Era uma maneira de darem as boas-vindas, eu sabia. A simpatia de todos era tanta que às vezes me deixava até constrangido. A bagunça foi bastante e demos risada até cansar. Até em cima das mesas alguns saíram dançando.

Quando cansamos voltamos para a mesas. E começou pra­ticamente um desfile de pessoas ansiosas por cumprimentar a mim e Thalya. Sorridentes, esforçavam-se em nos deixar bem à vonta­de. Conversei muito, conheci muita gente. Parece que as pessoas faziam questão de falar comigo.

Marlon me apresentava, depois levantava, circulava um pouco, ia passando pelas mesas próximas cumprimentando as pes­soas, muito descontraído e comunicativo. Volta e meia me fazia sinal para que eu fosse até ele, me apresentava mais gente.

Thalya grudou em mim, com o sorriso no rosto e bastante satisfeita. Até que aquela moça veio perto de nós...! Era ruiva e muito bonita, com um sorriso que fazia mexer alguma coisa por dentro.

— Ei! — Exclamei cutucando Marlon. — Aquela ali não é a do caldeirão?!

— É ela mesma. A que preparou a poção.

Ela escutou e veio direto para perto de mim com naturalidade.

— Vim aqui só prá te cumprimentar, gracinha! Seja bem-vindo. Sabia que você é um gatinho?

E sem mais essa nem aquela se aboletou no meu colo. Dei risada, meio zonzo com tanta descontração, mas reparei no olhar de jararaca de Thalya. A ruiva parecia muito à vontade, e falou, insinuante:

— Eu estava no caldeirão, sim. E aí? O que é que você achou?!

Eu sabia o que ela queria dizer. Mas fiquei roxo ao responder:

— Você é bonita! Acho que você fez tudo... muito bem!

— Que graça, você fica todo vermelhinho, todo encabulado!

Todos na mesa olhavam prá mim. Procurei mudar de assunto.

— Você é o quê, heim?

— Eu sou Feiticeira.

—Ah!

Thalya não dizia nada mas não estava gostando muito. Eu não queria ser indelicado com uma Feiticeira tão linda, mas tam­bém não podia ser dado demais. Falei, só para que ela ouvisse:

— Olha, gostaria muito de conversar com você, mas acho que vai ter que ficar para uma próxima ocasião.

Ela inclinou-se e cochichou no meu ouvido:

— Pois você que se cuide senão eu te asso no meu caldeirão!

Thalya achou por bem ocupar o lugar assim que a outra levantou e saiu. Veio, sentou no meu colo e não me largou mais. Defendeu muito bem a posição de alma-gêmea! Até porque, em dado momento, depois de muito vinho, notei que todos começa­ram a ficar mais alegres, mais “soltos”, mais à vontade.

As músicas insinuavam um clima mais íntimo, bem como a luminosidade, que foi diminuída. Não sei se apenas pelo efeito do vinho, ou o quê, mas pareceu-me que a partir daquele momento o “sinal estava verde”. Isto é: era hora do “clima”, podia rolar tudo... sem culpas, medos, pudor, com liberdade plena...!!!

Marlon estava acomodado com o braço apoiado no espaldar da cadeira e inclinou-se em minha direção:

— Você e Thalya...já fizeram aliança diante de todos... vocês são forças complementares. Nada mais natural que coloquem em prática as formas mais íntimas de relacionamento!

Foi apenas um comentário. Mas ele queria dizer que está­vamos livres para ficarmos juntos se assim o quiséssemos. Não havia necessidade de ficarmos ali na mesa até o amanhecer. Era esperado que eu e ela celebrássemos completamente aquela união.

Eu olhei para ele. E depois para Thalya que sorria convida­tiva para mim, sem cerimônia alguma.

Aqui?! — Dei risada. — Na frente de todo mundo? Pô, Marlon, sem chance! — Ri com mais gosto ainda. Acho que já tinha bebido bastante. — Só me faltava essa!

Ele riu também:

— Não tem problema, não! Somos uma família, não tem nada de mais. Olhe... vai começar uma celebração do corpo agora.

A música havia feito surgir um estranho clima erótico no lugar e nas pessoas. As mulheres próximas pareciam querer me devorar com os olhos, tocavam em minhas vestes algumas vezes. Estavam bem interessadas e os convites foram totalmente aber­tos. Era tudo muito “natural”! Senti que havia nelas muita admi­ração em relação a mim por causa da impressionante figura de Abraxas, e o Poder que ele representava.

Chiii!!! Não ia dar! Fazia parte da minha natureza detestar aquilo. Sexo... apenas pelo sexo... sem conhecer a pessoa, sem sen­timento nenhum... não era meu perfil!

Vários casais já estavam se atacando vorazmente! Colo­quei as mãos sobre a mesa, decidido.

— Bom...prá mim não dá, cara! Eu não estou preparado para isso ainda.

— OK! — Respondeu Marlon olhando para mim e Thalya. — Não precisa ser aqui. Você sabe chegar ao seu quarto? Podem ficar bem à vontade lá!

Dei de ombros:

— Chegar no quarto? Impossível! Tanta volta para vir até aqui...

— Não tem problema, eu peço para alguém acompanhar vocês dois. Aproveitem um pouco! — Incentivou-me ele. — Não é, Thalya?

Thalya dava risadinhas segurando sua taça de vinho, os cotovelos apoiados sobre a mesa, sem demonstrar incômodo ne­nhum diante da indireta bem direta. Lançou-me olhares malicio­sos revelando claramente sua disposição, ainda que não dissesse palavra. Olhei para ela. O cabelo longo caia sobre a roupa negra, dourado, brilhante. Pensando bem, aquela “roupa” tinha ficado muito bem nela!... Estava linda!!

Mas.......! Aquela noite tinha sido muito diferente para mim.

E algumas imagens ainda estavam muito frescas em minha me­mória. Trocando em miúdos: não estava no clima.

E polidamente recusei.

— Bem... Marlon. — Fiz eu, ainda de olho no que começava a rolar. — Tenho a liberdade de não ficar aqui, né?

— Claro. Eduardo, ninguém o obriga a nada. Você pode fazer o que preferir. Quer mesmo ir para o seu quarto?

— E, sinceramente eu prefiro. Preciso ficar sozinho um pou­co, pensar em tudo que aconteceu. Foi tanta coisa até agora! Não estou na onda, meu irmão, faça você bom proveito por mim! — Dei-lhe um tapinha amistoso nas costas.

Levantei-me, despedi-me de todos e nem convidei Thalya para ir comigo. Ela poderia querer ficar um pouco mais na festa. Então Marlon pediu para Rúbia acompanhar-me.

Ela conversou comigo durante todo o trajeto, insinuando-se também apesar de ter escutado minha negativa anterior. Eu ria diante da insistência, procurando ser educado. Quando chegamos ao meu quarto Rúbia, cheia de dengos, ofereceu:

— Vou te ajudar a tomar um banho. Faço uma massagem que você não vai esquecer nunca mais! — Sorriu abertamente di­ante de mim, o “escolhido”.

Rúbia era peruana, muito bonita, atraente, com longos ca­belos cor de ébano e pele de jambo. Devia ter uns dez anos a mais do que eu, uns 28, talvez. Mas eu podia ver a admiração no olhar dela. Certamente aqueles dotes todos ajudavam! Mas tive que achar graça de novo. E recusei:

— Deixa prá próxima!

— Você é um privilegiado!... — Exclamou ela, desta vez seri­amente. Ia tocar no meu rosto mas desistiu. — Bom, descanse bem, então! Haverá muita oportunidade de nos encontrarmos em dias mais favoráveis!

E saiu.

***