— O fundamento básico é o que se segue: todo caminho que não leva a Deus é bom. — Instruía-nos Zórdico certa noite.
Naquele dia tínhamos saído todos juntos após a aula do "Fire's Sons" e Zórdico, conhecedor das minhas dúvidas, abordou o assunto.
— As Artes Mágicas servem bastante para isso porque é fácil influenciar pessoas vazias e fracas. A única Arte que tem significado para o nosso uso é a numerologia cabalística pois tudo está ligado a ela. As demais servem apenas para fagocitar as pessoas. E por que usar a Numerologia? Porque é fidedigna em dar dados sobre o futuro. Vocês podem se questionar: como pode uma Entidade acessar o que não ocorreu ainda? Prever o que virá? Mas vejam bem... o homem também é capaz de fazer algo semelhante, não? Um estudo meteorológico pode prever chuva, frio, calor; e o sismógrafo pode adiantar quando um terremoto acontecerá. Um cálculo matemático pode estabelecer o horário exato em que um avião chegará a seu destino. Os astrônomos podem dizer quando ocorrerá o próximo eclipse, ou quando virá o próximo cometa. Bem, se nossa inteligência pode prever certas coisas, o que não pensar de seres que existem antes da fundação do mundo? Mas como isso acontece? Imagine a seguinte seqüência de eventos: um ser qualquer, distante dois mil anos-luz da Terra nos observa com seu potente telescópio. Lá do seu planeta — chamemos de planeta "X" — ele tinha uma visão muito ampla e, ao desviar o telescópio noutra direção, viu um gigantesco cometa que se aproximava da Terra. Este estava a quatro mil anos-luz da Terra e a dois mil anos-luz do planeta "X". Por outro lado, a luz do meteoro levou dois mil anos para chegar até o planeta "X". Certo? Isto quer dizer que
quando o cometa foi visto através do telescópio tanto este quanto o observador estavam a uma distância semelhante da Terra. Dois mil anos-luz!
Concordei com a cabeça.
— Mas imagine agora: se o observador pudesse viajar a uma velocidade muito superior à da luz...por exemplo, duas vezes a velocidade da luz...ele chegaria aqui na Terra em mil anos-luz, ou seja, mil anos antes do choque. E ele diria: "Um cometa está se aproximando da Terra e vai colidir com ela dentro de mil anos." Ele só pôde afirmar isso porque se antecipou a um fato que já existia! E isso foi possível somente porque ele não estava limitado à nossa contagem de tempo e espaço. O futuro só está oculto a nós porque estamos cerceados dentro da nossa dimensão. Mas no mundo espiritual... essas leis que nos cercam e nos aprisionam não existem mais. Passado, presente e futuro caminham de forma Paralela uma vez que nas dimensões superiores não existe o fator Tempo: não existe o antes e o depois. Por isso Deus Se intitula "Eu sou": sem passado ou futuro, mas existindo sempre, simplesmente. Por isso Ele próprio também diz que as coisas que hão de vir já são agora. Isto é, já existem. Nas dimensões superiores tudo simplesmente "É". O homem instintivamente sabe disso, afinal toda história de ficção tem início em uma probabilidade: como a viagem à Lua de Júlio Verne. Era ficção na época, mas havia uma probabilidade de ser real. Viagens no Tempo hoje são ainda uma ficção, mas por quanto tempo? Matematicamente os físicos sabem ser possível. Mas não é sobre isso que quero falar, portanto não divaguemos.
Zórdico pegou o fio da meada e continuou, retomou a seqüência inicial.
— Mas a arte do engano, no entanto, não se restringe às Artes Mágicas. Há um outro quinhão da Sociedade que é muito estratégico nesse sentido. Lembra-se quando falei sobre a cultura de cada povo, que é respaldada por ritos...?
Fiz que sim.
— Naquela altura isso não foi apresentado como algo de muito mais valor. Não que seja, de fato, mas quer ver como é interessante? Raciocine comigo: o homem é um ser pensante. E como tal, acaba por muitas vezes divagando e com isso cria idéias e conceitos que nada têm a ver com a realidade. E curioso o comportamento humano, não é preciso ensinar nada ao homem: se separarmos um grupo em uma ilha, ainda crianças, com certeza, após algumas décadas já terão desenvolvido uma cultura com linguagem, costumes, crenças e rituais próprios. O homem precisa disso! A maior parte das crendices populares não têm o menor fundamento! Por exemplo, quem disse para o índio que ele tem que fazer aquele totem? Quem disse que máscaras feias espantam maus espíritos? Isso funcional Tem fundamento? É claro que não, funciona só na cabeça dele. Porque ele quis acreditar que poderia ser assim. As crendices, muito ao contrário das Artes Mágicas, são criadas pelo próprio homem. A mente dele está cheia de lixo e eles podem transformar qualquer besteira em algo "importantíssimo".
— Mas você está falando de índios. Nem precisa ir assim tão longe! É só olhar à nossa volta. — Retruquei. — As pessoas acreditam em cada coisa absurda... que pé de coelho dá sorte, que quebrar espelho dá sete anos de azar, que duende existe, que "santo" morto pode fazer milagre, que defunto se comunica, que defumar a casa espanta mau-olhado, e por aí vai. O povo acredita em cada coisa!
— Mas isso é no mínimo estratégico, se formos olhar por outro ângulo. — Interveio Marlon. — O povo divaga porque divaga. Faz parte da nossa natureza humana. Algumas crenças têm uma raiz longínqua que até se perdeu no tempo. Mas até disso Lucifér se utiliza, na sua sabedoria, e é isto que ele tem feito através dos séculos e séculos.
Eu escutava com toda a atenção do mundo. Estávamos todos diante de uma janta indescritível e
a conversa havia novamente se desviado do corriqueiro para o meu assunto ultimamente predileto: como introduzir o engano não apenas num indivíduo isolado, mas em toda uma cultura! Lembro-me que Marlon me fizera essa pergunta no dia da minha Iniciação, no carro, à caminho do Castelo.
— Diferente do que acontece com o indivíduo, para contaminar um povo pode levar séculos e séculos. Mas desde a fundação do mundo Lucifér tem tido todo o tempo necessário. Os povos, como já dissemos, têm crendices — ou mitos. Não é assim? Que povo não tem os seus mitos? Como eles se originam não importa tanto, basta saber que os mitos sempre saem da observação e da vivência humana. A partir daí os demônios começam a trabalhar. Chega um momento na história desse povo que aquela crendice está tão incrustada que passa a ser um rito. O próprio nome já diz: ritual não é aquilo que se faz esporadicamente, mas periodicamente. Quando há uma periodicidade em alguma prática, ela impregna... e vira tradição! E uma vez consolidada uma tradição... para derrubar isso depois, meu caro... — Zórdico deu uma risadinha. — Precisa muito! Quebrar tradições individuais, que não têm respaldo na cultura aonde está imerso o indivíduo não é tão difícil. Mas destruir a tradição de um povo é quase impossível. É algo que foi absorvido, introjetado, impregnado de tal forma ao longo de gerações e gerações e gerações... que já não pode ser mudado. A legalidade dada aos demônios nessa cultura é tão grande que praticamente nada pode derrubar essas fortalezas. Pergunto eu... em que fundamento elas foram construídas?
Balancei a cabeça:
— Um fundamento falso. Que coisa tremenda.... — Eu falava reverentemente diante daqueles fatos. — Compreendo, compreendo... Zórdico, diga-me, então...a base das religiões falsas é esta também? Mitos que viraram Ritos e que por fim o povo já não podia mais viver sem eles?!?...
— De uma boa parte delas, sim. E eu diria que essa é a melhor parte! Pensam estar caminhando
para Deus... mas embasados numa crença estúpida e vazia que, ao contrário, jamais os aproximará do Criador. Mas os sujeitará a um cativeiro árduo e pavoroso, uma carga duríssima de ser suportada. Desfalecem antes do fim. E no fim... nada mais os aguarda senão o lago de fogo e enxofre! Não é isto? "Apartai-vos de mim, malditos..."? — O olhar dele era estranho, profundo, quase cruel. — O Inferno de sofrimento existe, como você sabe, e está destinado aos "órfãos" de toda espécie.
Retruquei novamente, decidido a espremê-lo ao máximo. Queria aprender:
— Está certo, deu pra segurar essa. Mas me explica um pouco mais do que vem depois.
— Depois do quê?
— Bom... você me explicou como se cria uma tradição ritualística, ou até mesmo uma religião falsa. Mas, convenhamos... à medida que o tempo passa a gente se cansa de bobeiras sem fundamento. A tendência natural, ainda mais com o desenrolar da ciência e da tecnologia, não seria que essas coisas acabassem sendo sufocadas e deixassem de existir?
Marlon pareceu gostar da pergunta. Ele mesmo respondeu:
— Em outras palavras, você está querendo saber como idéias destituídas de lógica podem perpetuar-se ad infinitum, inclusive dentro da Era Moderna?
— Mais ou menos por aí.
Foi a vez dele responder de uma forma inesperada:
— E quem foi que disse, Rillian, que os mitos, os ritos, as idéias e tradições, as religiões... dogmas... crendices... e etc. .. não têm lógica?!
— ?????!!! — Fiquei mudo por uns instantes. — Ué, não foram vocês mesmos que disseram que
tudo isso é história de carochinha? Pare de brincar.
— Não é brincadeira. A sua pergunta tem muita lógica e a minha resposta também. É claro que não se pode manter alguém mergulhado na ignorância se isso for absolutamente uma loucura do início ao fim. Eu não te disse que as pessoas que lidam com o que pensam ser uma Arte Mágica têm a sensação ilusória de Poder e conhecimento? Ilusória! Compreende?! Aqui é a mesma coisa. Se o engano não for capaz de enganar, é falho. Mas Lucifér sempre pensa em tudo. E dá todo o respaldo necessário para que a ilusão continue. Eternamente! Afinal, uma meia-verdade é melhor do que uma mentira completa!
Ele tomou calmamente uns goles de vinho enquanto eu permanecia com os olhos fitos nele. Marlon teve que rir:
— Ilusão, Eduardo! Se funciona com uma pessoa isolada, por que não funcionaria com um povo todo? Se há castas inferiores de demônios capazes de influenciar astrólogos e cartomantes de fundo de quintal... por que não haveria legiões e legiões de exércitos demoníacos, sob o comando de Entidades poderosas, que pudessem dominar legalmente toda uma cultura... e criar nela a ilusão de que os seus mitos idiotas são reais? Da mesma forma que as crendices e os mitos, as falsas religiões também nasceram na própria mente do homem. Ninguém nunca disse que os processos rituais deviam ser feitos assim. Não vieram de Deus...e também não vieram de Lucifér, é claro! Você sabe qual é o culto agradável a Lucifér. O resto, meu amigo... é uma confusão que nasceu da cabeça humana e morrerá do mesmo jeito que nasceu, isto é: sem efeito espiritual nenhum! As religiões falsas não agradam nem a Deus nem a Lucifér, não têm fundamento, lógica, nada de nada. Só existem duas coisas no mundo: Satanismo e Cristianismo. O resto... é só resto!
A venda caiu de vez dos meus olhos e meu rosto se iluminou.
— Puxa, tem razão. Como estive cego até agora!
— E muito fácil manter viva uma crença qualquer se dermos substrato, algo palpável para o povo se apoiar. Os demônios se encarregam disso. Não há ciência e tecnologia que se sobreponha ao insobrepujável. Com certeza este não é o caminho. Nada tem um sabor mais doce do que o inexplicável! — Disse Zórdico.
— É deitar e rolar!
— Você captou bem o cerne da questão! As próprias Entidades se incumbem de fazer perpetuar as crenças. Quer ver um exemplo simples? Pegue lá uma das suas experiências simples de colégio: uma lata vazia de óleo é esquentada no fogo. O que acontece? O ar quente se expande e vai para fora da lata. Aí você tapa o orifício da lata com um palitinho e imediatamente coloca-a debaixo da torneira. O grande fenômeno: a lata amassa inteirinha. Porque a pressão é maior fora da lata do que dentro. Mas mostra isso para alguém que não entende! "Nossa, como você fez isso?". E você responde: "Eu não fiz nada... foram os espíritos!". Deu pra entender? As crendices funcionam na mesma linha. Mas a explicação por trás de toda uma montoeira de fenômenos inexplicáveis é uma só: os demônios armam o palco e as pessoas acreditam. Funciona como a pessoa que não sabe porque a lata amassou. E a partir daí começam uma série de doutrinas falsas. E uma casta específica de demônios fica incumbida de fazer com que o equívoco não se desfaça. A inteligência das Entidades é muito maior do que a inteligência humana! Mas hoje em dia, com a organização da Irmandade, se for necessário podemos ajudar nesse processo.
— Sério?! Isso pode acontecer?
— Sim, é fácil infiltrar alguém dentro de qualquer doutrina para facilitar o engano e desviar ainda mais da verdade. A Verdade de Deus é diferente da verdade suprema de Lucifér! Por exemplo, veja
o Ariel: ele trabalha dentro do Espiritismo. Você e eu sabemos que ele não é espírita, é Satanista. Mas ele está propositalmente colocado como um instrumento que atua seguindo as orientações das Entidades que o acompanham. Isto é ainda mais palpável e mais poderoso para influenciar pessoas. É interessante ter Satanistas "disfarçados" em quase todos os lugares. Estes estão ali com propósitos específicos. Apenas os líderes mais proeminentes de algumas ramificações próximas a nós poderão — eventualmente — saber a verdade sobre isso.
Fiquei pensativo. E depois voltei à questão dos mitos culturais.
— Isto me faz lembrar o ritual zumbi de certa tribo africana. A tribo vodu. Eles produzem um pó onde vai de tudo, até raspa de crânio. Tem todo um ritual só para fazer o pó. A substância ativa dele é o tetradoxeno, extraído das vísceras de um tipo de sapo. Esta droga causa um bloqueio da transmissão neuromuscular e uma diminuição drástica da atividade cerebral cortical e de um tal sistema reticular ativador ascendente. Em suma: o indivíduo que entra em contato com o pó fica como morto. A partir daí, em estado cataléptico, só um eletroencefalograma para diagnosticar a vida. "Mortinho" o cara, ele é enterrado, de acordo com o rito. Só que o efeito da droga dura apenas doze horas. Aí o sujeito é desenterrado. E então começa o rito para fazer "reviver" o morto. Como o efeito já está passando, ele volta à vida mesmo. Tem todo um contexto ritualístico aí, o pajé dança com uma serpente, tem fogueira e essas coisas todas. Mas como a pessoa passou muito tempo embaixo da terra sofreu um déficit de oxigenação no cérebro, e ela volta "zumbi". O cérebro volta lesado. Existe uma explicação científica, mas as tribos acreditam que a alma da pessoa ficou aprisionada dentro de um coco. É a mesma coisa que dissemos até agora, né?
— Você está certo. E não se esqueça que os próprios zumbis são manipuláveis e podem passar a ser diretamente usados. É natural que os demônios capacitem pessoas para coisas "especiais", é
assim que funciona. Só que não são elas que dão o comando como ocorre conosco. Nem sabem o que está acontecendo. E estes se queimam, como queimam! Mas note o principal ponto: para introduzir algo dentro de um povo, e fazer disso uma coisa bem aceita, não podemos ir de encontro às suas raízes. O interessante é simplesmente manter as aparências, isto é, as crendices, as idéias, as doutrinas, as religiões. E introduzir elementos novos, adaptáveis ao modo de pensar e de enxergar o mundo daquela gente. Assim temos certeza de que serão plenamente bem digeridos. Veja as próprias Artes Mágicas, por exemplo: aproveitando-se de elementos e raízes culturais próprias foram introduzidas práticas que se perpetuam até hoje. Se você pensar bem desde milhares de anos antes de Cristo, Deus já tinha dito ao Seu povo: "Não haverá entre ti quem faça passar pelo fogo o seu filho ou filha, nem adivinhador, prognosticador, agoureiro, feiticeiro, encantador, necromante, mágico, ou quem consulte os mortos...". Sinal de que havia quem fizesse tudo isso! Percebe?! Estas práticas existiam... e continuam existindo! E cada uma delas se originou e perpetuou com a intenção de fagocitar ou, pelo menos, influenciar a fundo uma determinada cultura ou conjunto de culturas. Os elementos falsos que vêm dos Guias também têm como base o mesmo objetivo.
— Ah, é mesmo. A Verdade plena é um privilégio dos filhos do Fogo. Mas você falou em ramificações próximas da Irmandade?!... Mas o que são essas ramificações?
— Doutrinas falsas cuja origem foi direcionada pelos próprios Guias. São como Braços da Irmandade.
— Mas desde a origem?! Então quer dizer que nem sempre essas falsas doutrinas partem da ignorância de pessoas que nem sonham com nada disso que comentamos até agora?
— Certamente. As doutrinas podem também partir diretamente da mente dos Guias. E difundirem-se da mesma forma que as outras. Mas alegre-se! Você foi eleito. Até Deus elegeu os seus filhos,
não é isso? Está escrito.
— É!... Pôxa, legal o que você me ensinou com tudo isso. Como Lucifér sabe infiltrar-se no meio dos povos e plantar o que quer. O que é bem aceito no Oriente ou na África nem sempre, ou melhor, quase nunca tem muito respaldo aqui nas Américas, por exemplo. Mesmo assim ele consegue prevalecer tanto lá como aqui. Mas conte-me mais segredinhos! E, voltando um pouco às Artes Mágicas, como se originaram realmente?
— A origem delas, como surgiram e se espalharam, você aprenderá mais tarde. Por enquanto atenha-se ao princípio básico do seu uso. E olhe, você falou de falsas religiões, seitas, falsas crenças, e até citou o ritual zumbi. Mas nem é preciso correr até a África! Há exemplos tão palpáveis bem debaixo dos nossos olhos! Mega-exemplos! — Zórdico saboreava as palavras com o olhar brilhando de satisfação. — Você não sente o mau cheiro que vem sendo exalado de farsas tremendas que têm influenciado a nossa própria cultura brasileira desde há muito, muito tempo? — Olhou-me nos olhos.
Eu estava empolgado com o que acabara de ouvir.
— Mas, puxa vida, esse negócio é como... como uma doença oportunista! Vocês já ouviram falar em doenças oportunistas?
— Aquelas que se desenvolvem em um organismo debilitado, imunodeprimido? Sim, no que você está pensando? — Perguntou Marlon.
— As doenças oportunistas aparecem "do nada" e podem virar pragas devastadoras num organismo fraco e sem defesa. Estive aqui fazendo um paralelo entre isso e o que vocês disseram sobre falsas religiões. As pessoas vazias e ignorantes, sem o conhecimento, apoiadas em práticas e conceitos que não têm fundamento, criam culturas vazias. Óbvio que não quero dizer que essas pessoas equivocadas não são inteligentes. Alguém pode ser muito inteligente e estar enganado do mesmo
jeito! Certo? Mas a cultura vazia é como um organismo imunodeprimido. Qualquer agente externo pode entrar... e causar estragos profundos! Crescer, alastrar como câncer.
— Eu melhoraria um pouco a sua definição. Concordo com o seu exemplo, mas as pessoas são vazias por definição. Não é uma mera questão de "depressão espiritual". Perante o Reino Espiritual a Humanidade pode ser comparada a montes de "vermes". Em termos de potencialidade. Só existem duas raças puras, como você sabe.
— Os Filhos de Deus e os filhos de Lucifér.
— Isso. O que passar disto entra no contingente dos "imunodeprimidos". Dos órfãos! Os filhos de Lucifér somos nós, os que fazemos parte da Irmandade e os que estão em posições muito altas nos braços mais próximos. Os Filhos de Deus... — E o semblante de Marlon carregou-se um pouco. — ...são os verdadeiros Cristãos. Apenas nós...e eles... temos alguma possibilidade de deixarmos de ser "vermes"! Não me entendam mal! — E riu.
— Muitos se dizem Cristãos... — Observou Thalya que escutava quieta até então, entretida com o seu fusilli.
— Muitos se dizem, mas não são! — Retruquei, convicto por experiência própria. — A maioria não conhece o Reino e nem o Deus a quem julgam servir.
— De fato não são muitos. — Tornou Zórdico. — E Deus lá sabe atrair e manter o Seu Povo?! Nós dominamos a Terra e estes Cristãozinhos que esperem porque em breve serão totalmente esmagados.
— O Rillian falou há pouco em coisas que alastram como câncer. — Começou Rúbia, entrando na conversa também. — Eu gostei do exemplo. Você tem razão! O câncer corrói e enfraquece o
hospedeiro. Algumas religiões falsas foram tão bem introduzidas que se tornaram como tumores que engolfam tudo o que vêem pela frente, destroem, necrosam, fedem! — Ela deu umas pancadinhas sobre a mesa. — Há culturas e povos completamente necrosados e prontos para irem feder na caldeira!!!
Ela e Thalya deram risada de novo, juntas, falando besteiras sobre como seria fazer churrasco de "órfãos".
— É verdade! Tudo isso é uma verdadeira podridão. — Ariel estava apoiado confortavelmente no espaldar da cadeira, rodando de leve os cubos de gelo do seu whisky.
Eu também rodei meus cubos de gelo. A coca-cola borbulhava no copo alto e a película esbranquiçada do limão podia ser vista nas bordas.
Aquele desvendar tinha me fascinado completamente. A sabedoria de Lucifér era incomparável, quanta astúcia em enredar o ser humano integralmente. Oferecendo milhares de caminhos diferentes para serem escolhidos, aparentemente todos bons... e todos levando para um só lugar: longe de Deus! Lucifér tinha provado — e continua provando — que deu de "mil a zero" em Deus! Deus ofereceu apenas um Caminho para que o Seu povo possa chegar a Ele. Através Daquele que evitávamos até pronunciar o Nome, Daquele que foi pregado na Cruz...
Mas meu pai, ah, que sabedoria! Que gosto em falar! Todos os outros caminhos estão a seu serviço, para engrossar as suas fileiras, fazer prevalecer o seu reino.
— Estive pesquisando um pouco sobre as origens de algumas religiões brasileiras, como vocês comentaram agora há pouco. Mas realmente, não tive muito tempo...
Foi a vez de Zórdico me interromper.
— Rillian, você vai aprender tudo isto no devido tempo. Estudar em livros escritos por homens aquilo que Lucifér faz não vai elucidar o seu caminho. Poupe seu esforço e concentre-o por hora em coisas mais urgentes. É admirável o seu desejo de aprender, mas poupe-se de estudar o material errado.
— Sim, eu sei que vou aprender. Mas eu queria saber um pouco da origem das principais linhas. Algumas são como os tumores que acabamos de falar... doutrinas tão arraigadas... tão incrustadas!
— Bem, meu querido... — Zórdico às vezes me tratava assim. — Seja paciente. Por hora, junte as peças do seu quebra-cabeça: a raiz africana veio com os escravos. Foi modificada pela fusão com as culturas indígenas e a herança européia dos colonizadores do novo mundo. O que existe hoje é o produto disto tudo no hospedeiro brasileiro — uma mistura de índios, negros e brancos. Que é o povo brasileiro senão a mistura de raças e culturas diferentes? A miscelânea foi total. O hospedeiro foi favorável... e o processo é sempre o mesmo. Que divaguem!
Hoje o Brasil está totalmente tomado e sabemos que quase todas as religiões e seitas de expressão derivam basicamente de duas linhas. De repente a conversa passou a ficar tão engraçada!... Marlon já não conseguia falar com seriedade e nem nós conseguíamos ouvi-lo sem que sorrisos caçoístas brotassem em nossos lábios. Zórdico não ficava atrás. Thalya e Rúbia riam já às gargalhadas e Ariel não parecia mais tão entretido no whisky:
— Como o povo é idiota! O "legado" espírita é um dos melhores! Cada coisa que eu vejo acontecer! — Ele melhor do que ninguém podia saber disso.— Deus proibiu e condenou o acesso aos mortos. Mas naturalmente que os "mortos" falam...
— Mas não os mortos que eles estão pensando! — Exclamei de sopetão.
— Sim. — Fez Zórdico. — Os "mortos" a que Deus se refere são os anjos expulsos de sua presença, nossos aliados. É claro que Ele proibiu esta comunicação. Afinal, as Entidades são detentoras de informações que Deus deseja omitir ou ocultar muitas vezes. Deus é contra o conhecimento vindo das Entidades espirituais. Aliás, ao que parece Ele é contra todo e qualquer conhecimento que vá além daquilo que a sua Pessoa determinar. Não fosse assim não teria proibido o homem de comer da árvore do conhecimento!
— Mas Lucifér nos dá este conhecimento. — Tornei a exclamar.
A partir daí a conversa deixou de ser "cultural" e ficamos apenas terminando o jantar e vomitando nossa indignação contra Deus. E a indigestão parecia não ter fim. Aliás... não tinha fim mesmo!
Um pouco mais de tempo e Thalya fez uma outra pergunta que nos devolveu à uma conversa puramente "séria".
— Deus tratou sua Criação de modo completamente sem lógica. Engraçado se formos pensar bem. É de se imaginar que o ato de criar o homem implicasse em dotá-lo do direito de viver a vida em plenitude. Mas Deus não deu esse direito ao homem. Por outro lado... — Thalya tinha o ar pensativo. — Sabemos que Deus criou o homem...isto é, todo homem! Inclusive nós!.... Sendo assim...
Eu ajudei a completar o pensamento:
— Realmente é estranho pensar nisso, que fomos criados por Deus. Marlon fez um leve murmúrio meio sarcástico, meio irônico, meneando a cabeça com desdém:
— Hum...não se deixem levar por questões tão tolas! O fato de Deus ter-nos criado a todos é de menor significado. Porque Ele equivocou-se com a Criação. "Viu que era bom", mas depois "Arrependeu-se"! Não é assim? Parece que ter criado o homem e tudo o mais na verdade não foi tão bom
assim. Isto revela a natureza equivocada de Deus. Ele fez, mas depois Ele mesmo destrói.
Zórdico completou:
— Fomos criados por Deus, sim, mas um Deus... louco! É uma verdadeira confusão! Deus parece esquizofrênico, e em cada surto Ele muda as regras do jogo!
Marlon retomou a linha de raciocínio:
— Lucifér, muito ao contrário, sempre teve o perfil do verdadeiro deus. Ele, sim, sempre foi o mesmo ontem, hoje e sempre. E embora não possuísse ainda o poder da Criação em si, o conhecimento da essência humana é inerente a ele. Todo ser humano tem no seu interior o lado negro, a natureza ruim que caminha paralela ao lado bom. Ainda que Lucifér não tivesse o Poder de criar o homem ele foi capaz de lançar uma semente na essência mais profunda do ser humano, na Criação de Deus. De modo que ele é parte do homem... e parte do homem é dele!
— E parece que a natureza humana busca mais ao pai Lucifér do que ao Pai Deus. Tudo funciona mais ou menos como na paternidade natural: nem sempre aquele que gera é o verdadeiro pai de uma criança. — Comentou Ariel.
Eu compreendia aquele conceito muito bem.
— Deus ficou muito aquém do esperado como "Pai". Ele gerou o homem mas teve uma atitude pouco condizente: "Bem, você está aí, gerado, à minha imagem e semelhança, mas agora, filho, a sua vida vai ser assim: você só pode andar desse lado da rua, do outro lado não pode ir. Estas árvores altas, está vendo? Você pode olhar, tá bem? Mas nada de subir nelas, caminhe somente no meio daqueles matinhos ali. Estas outras coisas que estão à sua volta é o seguinte: estas aqui podem ser tocadas, pode comer, cheirar, apalpar. Mas aquelas outras... nem encoste nelas! Ah, e está vendo
aquela mulher ali? Ela não é pra você, não, ouviu bem? Se você quiser, Eu te dou esta aqui! E é só essa, viu?" — Marlon falava em tom debochado, ridicularizando, e arrancou risadas de todos.
— É mesmo! — Falou Thalya. — Deus impôs regras demais. Impediu o desabrochar da Sua Criação. E o homem olha para si mesmo e sente aquele vazio. "Pôxa, não tenho liberdade para nada!!!".
Rúbia foi categórica. Demonstrava alegria e alívio na voz ao comentar:
— Mas ainda bem que veio um outro... e nos adotou! Livrou-nos dos maus tratos do Pai Deus.
Zórdico escutava mas abriu a boca para comentar:
— Você está certa, Rúbia, mas não fomos "libertos" do Pai Deus... porque Ele sequer era nosso Pai! Deus agiu um pouco pior do que isso que vocês estão falando. Ele fez mais ou menos como a mulher que está para dar à luz e, uma vez nascida a criança, joga o bebê no lixo! Na verdade, toda a Humanidade foi renegada por Ele! De repente o próprio Criador é "Pai adotivo" também! Não se fala lá na Bíblia em "Espírito de adoção"?!! E em "Enxertar a Oliveira brava na verdadeira"? Ora, se há necessidade de adoção é sinal de que os Cristãos não eram filhos antes. E se não eram filhos... é porque foram rejeitados! Não diz também a Palavra que "Foi-lhes dado o poder de serem feitos filhos de Deus"? A Humanidade foi rejeitada por causa da semente de Lucifér. Por terem desejado ser livres, por terem querido sair de debaixo do jugo. Por causa de tudo aquilo que o Bode representa... e que faz parte do mais íntimo do ser humano. Mas o próprio Deus é livre! Se o homem é sua imagem — e Deus assim o fez — como fazer morrer o desejo? Como mantê-lo aprisionado? Isso não tem o menor senso de lógica! Então... pai adotivo por Pai adotivo... cada um escolhe o que desejar! Meu íntimo se revolvia, inquieto, afrontado. Zórdico tinha razão!
— É...Deus criou tudo, fez nascer tudo.. trouxe à luz tudo o que existe. Mas depois, Ele só é Pai de alguns. Escolheu o povinho filhinho-de-Papai, Israel, porque os demais se recusaram a seguir as Suas regrinhas. Só que uma parte destes excluídos teve o privilégio de ser adotada por um verdadeiro pai. Deus escolheu alguns... Lucifér também! E nós somos os seus "queridinhos"! E ele é o que é, sempre! O que supre, sustenta, que dá a liberdade de agir, de atingir o conhecimento e a liberdade, a plenitude verdadeira.
Ariel completou:
— Esta vida é um momento sublime no meio da Eternidade, e tem que ser completamente aproveitada. Para que submeter-se à castração Divina? Se Lucifér tem tudo o que precisamos para sermos felizes?
Decididamente eu estava mesmo no lugar certo. Que reino impressionante Lucifér tinha construído. Que domínio das circunstâncias, que Poder, que visão!!!
Foi aí que reparei em dois casais conversando em uma mesa mais ou menos próxima. Estavam em clima bem romântico mas um dos rapazes era daquele tipo intragável: "Sou o tal". Fazia a maior pose na frente das moças. O mais perfeito "mauricinho". Estava escrito na cara e no jeito dele.
Naquela noite nós estávamos conversando num belíssimo restaurante muito grã fino. Afinal eu e Thalya tínhamos que ter aonde usar as nossas roupas sociais. Então, depois dos estudos, Zórdico havia sugerido nos levar para conhecer um lugar realmente decente.
Eu tinha ficado um bom tempo de queixo caído com o restaurante. Thalya também. Espaçoso, luxuosíssimo, o maitre só faltava nos carregar no colo. À meia-luz tocava sempre ao vivo um piano acompanhado por um quarteto de cordas. E as pessoas desfilavam recendendo a dinheiro.
Mas realmente eu me impliquei com o sujeito na outra mesa.
— Que cara mais metido aquele ali. Olha só, Tassa, ele se acha o gostosão!
— Como tem gente besta nesse mundo! — Retrucou ela observando também. — E que cara de idiota ele tem!
Marlon foi o primeiro a sugerir, discreto, sem olhar muito na direção dele:
— E vocês não querem fazer ele passar uma vergonha qualquer? — Vergonha?!
Eu pensei em tudo, menos em usar algum Feitiço. Mesmo porque nós praticamente nem sabíamos como fazer um. Eu poderia soltar um "pum" perto deles.
Ou Thalya podia fazer a cena completa:
— Quer dizer que você anda me traindo, é? E essa é a vagabunda da sua outra namorada?!
Eu e ela imediatamente nos entreolhamos com os semblantes brilhando e a mente dando voltas. Mas Zórdico adivinhou o rumo dos nossos pensamentos:
— Não! Não, crianças! O que vocês estão maquinando? Vocês são filhos do Fogo, usem o Poder. Os Guias trabalham pra vocês
— Usar o Poder?! Mas como? — Indaguei.
— Peça para Abraxas.
— Se eu fizer um encantamento eu posso matar ele? — Perguntei cheio de curiosidade.
— Bom, até poderia. Mas não é ainda o momento disso. Não precisa matar o cara, né? Faça algo melhor. Faça ele passar um belo constrangimento.
Olhei de novo na direção dele. Ele rodava a taça de vinho nas mãos. Que maneira tola de insinuar o óbvio. Fazia até contorcionismos com o pulso.
— Será que eu posso fazer aquela taça explodir? O que você acha, Marlon?
— Não custa tentar!
Todos olhavam para nós. Era bem claro que eles queriam ver a gente se divertir um pouco. Ninguém se ofereceu para fazer nada em nosso lugar.
Eu não sabia muito, nem sabia direito como fazer. Mas tinham dito que eu e Thalya juntos teríamos mais Poder. Então me decidi, peguei a mão dela e disse:
— Tassa, pede junto comigo. Pede para Thorzzodú ao mesmo tempo que eu peço para Abraxas. Vamos fazer aquela taça explodir!
E na minha cabeça eu já via mesmo aquilo arrebentando em mil pedaços, voando caco de vidro na cara dele. Pedimos e esperamos. Não aconteceu nada nos primeiros instantes. Eu dei uma olhadinha para Zórdico. Mas ele já estava olhando pra mim. Então fez um gesto rápido apontando para o rapaz:
— Olhe!
E então imediatamente vi a taça partir-se em duas. A metade perto dele caiu inteira sobre a roupa e ensopou de vinho a camisa branca. Mais que depressa ele apertou o dedo na gravata para tentar fazer estancar o sangue que escorria de um talho. Depois viu o guardanapo e enrolou o dedo apertado nele. O pessoal do restaurante acudiu para saber o que tinha acontecido.
Thalya não se controlava. Ria alto e compulsivamente. Eu ri também, mas não tanto quanto ela. Os demais mantiveram a linha. Não ficava bem nós rirmos demais.
— Uau! Nós fizemos isso?!! — E eu olhava para Thalya.
Ela estava mais entusiasmada do que eu e procurava com os olhos mais alguém pelo restaurante.
— Olha, Rillian, olha aquela mulher ali! Vamos explodir a taça dela também?
— É isso aí, vamos fazer explodir todas as taças do restaurante!
Deram risada e disseram:
— Chega de brincadeira por hoje. Vocês podem usar o Poder, mas não ostensivamente.
Nós assentimos e nos acalmamos. Passamos a conversar de outras coisas depois que esgotamos o assunto da taça. Eu continuava olhando e olhando o ambiente.
— Puxa, esse restaurante deve ser o melhor lugar do Brasil!
— Não. Não é. No exterior, inclusive, tem coisa melhor ainda. Você vai conhecer! No tempo certo!
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