No dia seguinte convidei Thalya. Como Marlon havia dito, ela aceitou de muito bom grado, sem perguntas ou questionamentos a respeito.
— Legal! Que bom que você enfim resolveu me chamar!
— Meu amigo passa sempre no mesmo lugar e virá buscar a nós dois. — Contei sobre Marlon e nossa recente amizade com orgulho. — Vou cabular aula como de costume. Você se encontra comigo em casa ou na frente da Igreja. Mas sabe, acho que você vai gostar do Grupo, é uma coisa bem diferente mesmo. Estuda o Oculto de forma séria. Ainda bem que você vai chegar antes de começarmos a prática. É o que sempre estivemos buscando, você e eu. Vai ver só!
Os olhos dela brilhavam ao escutar minhas palavras.
— Não dá prá acreditar que aquelas cartas iam dar nisso! Puxa, se for mesmo assim como você está dizendo...parece que vale a pena, né?
— Vale. Pode crer! O pessoal é super-culto, inteligente, de ótimo nível social. Realmente não é como vimos por aí. O besteirol de sempre!
— Pô....
Dei a ela uma pequena introdução de como funcionavam as aulas e o que eu estivera aprendendo naquelas semanas. Esmiucei os conceitos o melhor possível para que ela pudesse acompanhar sem se sentir muito perdida. Ficou combinado que nos encontraríamos em frente à Igreja.
Na noite seguinte ela estava mais animada do que eu. Quando o carro de Marlon apontou eu avisei:
— É ele!
— Uau... — Thalya não conseguiu conter o murmúrio de admiração. — É nesse cairão que nós vamos?...
Eu fiz que sim com a cabeça mas reiterei logo:
— Mas eles são gente boa, viu? Não são metidos, nem nada!
Como sempre Marlon vinha no banco de trás e havia dois homens na frente. Thalya foi muito bem recebida. Chamou-me a atenção o fato de que ela foi simplesmente tratada como pessoa, e não como mulher: incrivelmente não houve olhares insinuantes. Aquilo sem dúvida deixou-me muito mais à vontade. Muito naturalmente Marlon acomodou-se numa das pontas do banco e me deixou ir no meio, ao lado dela.
Eu os apresentei e o percurso foi ameno e agradável. — Então, você é a Thalya... — Principiou Marlon. — Seja muito bem vinda.
Logo ele a fez sentir-se em casa. Realmente não precisava muito para que Thalya ficasse à vontade e em poucos minutos ela já era senhora da situação.
— Você é amiga do Eduardo. — Continuou Marlon. — E portanto nossa amiga também. — Ele brincou um pouco. — Nós somos como os Mosqueteiros, sabe? “Um por todos e todos por um”. E isso não é só chavão, não! Somos um Grupo onde um vai sempre lutar pelo outro. Assim, se alguém fizer algo contra vocês, vai estar fazendo para nós também. Thalya riu diante do exagero:
— Pôxa, também não é assim! Quem iria me fazer mal? — É. De fato. Estando conosco ninguém vai te fazer mal mesmo.
Nem eu, e muito menos Thalya, entendemos direito o comentário. O voz de Marlon ficou no ar e desapareceu. Antes que alguém falasse, ele mesmo continuou, mudando de assunto.
— E o seu curso no colégio? Você está gostando? É isso mesmo que você quer? — Perguntou à Thalya.
A partir daí foi um pulo para dar vazão às conversas informais que estimularam bastante minha amiga. Ela passou a falar descontraidamente e sem rodeios. Sobre a escola, sobre a publicidade, a família, o pai, o piano, o papagaio, o coelho, a Marilyn, não parava mais de falar. Falou até do Kung Fu, que eu a ensinara a manejar o nunchaku, e que era super-legal. Acabamos contando como nos conhecemos, falamos um pouco da nossa amizade, dos nossos interesses comuns.
— Vocês formam um casal muito bonito! — Elogiou Marlon a certa altura.
Sem se encabular Thalya riu alto e comentou com voz e arzinho de quem se desculpa:
— Ah, mas eu e o Edú não somos um casal, não! Somos só amigos mesmo! Bons amigos, de verdade. Né, Edú?!
Ela me deu uma cotovelada alegremente e eu concordei, rindo também, e abraçando-a pelos ombros:
— E isso aí, maninha! Só amigos!
Mas um dos homens sentados na frente comentou, virando a cabeça para trás:
— Parece que vocês foram feitos um para o outro.
— Muita gente comenta isso, é verdade. — Explicou-se Thalya, mais séria. — Mas por enquanto... é só amizade mesmo. Uma amizade diferente, né, Eduardo? Acho que é por isso que as pessoas não entendem. — E riu de novo, bem humorada. — Ah, mas deixa prá lá. Importa que eu e ele estejamos numa boa, de resto... não faz muita diferença!
Acho que Marlon sabia que nossa amizade era meio “coloridinha” mas não fez qualquer comentário, e a conversa mudou de rumo novamente. Assim era melhor, muita especulação à nosso respeito iria me deixar confuso. Tinha sempre que explicar que Camila era a namorada. Mas todos foram super discretos.
Eu sempre me senti de certa forma atraído por Thalya e, aparentemente, era correspondido. Mas o compromisso era um passo meio fora de cogitação, não havia como dar! Nós éramos parecidos, super amigos, dávamos-nos muito bem, etc... e etc... e agora, de quebra, ainda tinha a tal história dos números.
Porém, o mais sábio era dar tempo ao tempo e deixar rolar. Simplesmente ver aonde tudo aquilo nos levaria, sem tentar interferir demais. Têm coisas que é melhor não mexer. Minha amizade com Thalya era uma destas coisas.
De repente vi que eu tinha perdido o rumo da prosa com minhas divagações. Thalya e Marlon continuavam no papo e eu só acordei quando uma lufada de vento mais forte entrou pala janela e jogou os cabelos dela contra o meu rosto. Com um gritinho espevitado ela procurou ajeitar o emaranhado. Tive que sorrir também. Ela estava tão contente!
Chegamos cedo e eu a apresentei a Zórdico, que elogiou o seu interesse em aprender e procurou fazê-la sentir-se bem. Assim como aconteceu comigo, eles estavam à espera dela naquela noite. E eu já estava animado com o fato de tê-la ali para partilhar comigo a experiência de fazer parte do Grupo. Sem dúvida agora seria muito mais divertido!
À medida que os demais iam chegando eu e Marlon íamos fazendo com que Thalya se enturmasse:
— Temos uma nova membra no nosso Grupo!
Todos a abraçavam, sorriam, davam as boas vindas: — Que bom que você vai participar conosco!
Pouco antes da aula começar, Marlon acomodou-se ao meu lado e falou em tom casual, como quem acaba de se lembrar:
— Ah! E não se esqueça, Eduardo! Você será responsável por Thalya no sentido de ensinar-lhe o que já aprendeu. Para que ela possa acompanhar o restante das aulas, está bem? — E piscou o olho para mim. — Parece que você vai ter que fazer uso das “aulas” que deu para mim bem mais cedo do que pensava!
Ele falava de forma a me fazer perceber que, assim como ele próprio era meu mentor, eu poderia ser o de Thalya, pelo menos por enquanto.
Fiquei lisonjeado com aquele voto de confiança!
***
E foi assim que eu e minha melhor amiga nos envolvemos de cabeça com o Grupo.
Passamos a respirar aquilo de forma muito intensa. Nós nos sentíamos importantes, mais ou menos como que fazendo parte de uma sociedade secreta, tendo uma dupla personalidade, uma vida além do comum. E aquilo era super-demais!
Não foi preciso orientá-la a nada comentar acerca do Grupo com quem quer que fosse. Era algo que todos nós sentíamos, não precisa dizer. Thalya percebeu claramente que aquele lugar e o convívio com aquelas pessoas era para uns poucos privilegiados.
Realmente, pensando hoje, havia de fato uma aura de mistério que envolvia o Grupo e os seus participantes. Até mesmo para nós que fazíamos parte dele. Parecia haver algo mais no ar, alguma coisa não explícita mas que todos nós captávamos. E era essa coisa a mais no ar que nos mantinha de boca fechada. Não haveria necessidade de tanto silêncio se fôssemos pensar apenas racionalmente. Porque, afinal, não estávamos fazendo nada de mais. Apenas estudando!.............
Mas, à despeito disto, as aulas tornaram-se de fato muito mais interessantes. A presença de Thalya realmente era o que faltava naquela história toda! Agora valia mais a pena ainda aprender a nova ciência. E íamos nos aprofundando no objeto dos nossos estudos!
Eu e ela passávamos longo tempo juntos estudando. A nova doutrina começou a preencher o nosso ser como a água preenche um vaso: sem deixar nenhum lugarzinho seco, inundando tudo, todas as áreas, todos os recônditos, tudo, tudo... enchendo e enchendo. O resto já não fazia muito sentido, o que aprendíamos na escola e o que pensávamos antes acerca do mundo e das coisas.
Marlon tirava nossas dúvidas e nos dava acessoria sempre que solicitado, disposto em ensinar. Em explicar de forma diferente o que fôra dito para que compreendêssemos bem.
— Por enquanto a “água” do conhecimento ainda está sendo acumulada. Mas chegará o tempo em que vocês estarão tão cheios disso, tão preenchidos, tão repletos, que o Poder jorrará para fora naturalmente. Como a água transborda do jarro!
Nós ouvíamos com atenção e sempre ele achava um jeito de, implícita ou explicitamente, acrescentar que nós éramos muito especiais e que juntos teríamos muita força.
Apesar da atenção que Marlon dedicava à Thalya logo ficou muito claro que o compromisso especial que ele tinha comigo continuava inalterado. E que o compromisso dele era comigo. Ele deveria me treinar. E eu deveria treiná-la.
Eu a ensinava, com fluência, tudo o que aprendi antes da sua admissão. E ela aprendia com rapidez.
***
Certo final de tarde eu estava meio sentado, meio deitado num sofá, no SESC, esperando que Thalya fizesse sua jogada de xadrez. Fazia um calor danado e eu fechei os olhos, entediado com o jogo. Ela ficava analisando demais e às vezes o divertimento acabava meio truncado por causa disso.
Apoiei a cabeça nos braços, esperando com paciência. Mas ela também estava meio cheia porque, num muxoxo de desânimo, espalhou todas as peças do tabuleiro e desabou ao meu lado. Acomodou-se, preguiçosa, me empurrou de leve com o corpo:
— Ô, Edú, chega prá lá um pouco e me dá espaço, vai!
Acomodamo-nos melhor no sofá, lado a lado. Uma música vinha de longe, junto com algumas risadas e o som indistinto de conversa.
— Edú. — Começou Thalya. — Como era mesmo aquele negócio das ervas que você me explicou ontem, meio por alto?...
Eu me espreguicei, perguntando:
— Diz aí o que você entendeu e eu tiro suas dúvidas. Qualquer coisa a gente apela para o Marlon!
— Então... você me explicou sobre as Artes Mágicas. Falou de cartomancia, quiromancia e numerologia... — Deu uma risadinha, remexendo-se. — Fiz o meu mapa e o seu, sozinha. Dá mesmo tudo igualzinho, é incrível! Somos mesmo almas gêmeas, Edú!
Eu assenti com a cabeça sem muita ênfase:
— Seja lá o que for que isso signifique! — Respondi.
Ela nem aí, continuou com a pergunta:
— Mas eu aprendi tudo. A quiromancia consiste na leitura das linhas das mãos. As mãos direita e esquerda contêm informações complementares, isto é, uma parte da história está na direita e outra parte na esquerda. A cartomancia é a técnica através da qual as cartas podem alcançar detalhes do passado e presente, além de dar alguns dados sobre o futuro. Pode ser usado o baralho comum ou o taro. E a última Arte Mágica que você falou, meio de passagem, por isso não peguei bem, foi aquele negócio das ervas.
— Huuum...
— As pessoas acreditam por aí que certas ervas, e certas misturas de ervas, são alucinógenas. Mas isso não é verdade, né? Não são alucinações de fato. E aí acho que não escutei bem a explicação.
— Ora, é fácil! — Retruquei. — Veja bem, as pessoas em geral acham que o contato com aquelas ervas produz “algo” que chamam de alucinação. Mas é o que eu já te expliquei sobre o conceito de retirar o véu”: não é que estamos alucinando, delirando... é que nossos olhos estão sendo abertos para contemplar um mundo além do mundo que conhecemos. As Artes Mágicas fazem isso, ampliam as nossas possibilidades, retiram o bloqueio mental. Se nosso cérebro for estimulado de uma maneira diferente — e é isso o que as ervas podem fazer — ele pode decodificar um maior número de informações captadas pelos olhos e traduzi-las em imagens que, de início, são “estratosféricas”. Mas que com o tempo aprendemos a lidar com elas!
Thalya ficou séria, pensou um pouco e por fim comentou:
— Isso é meio jogo duro de engolir, heim?...Você não acha?
— Eles vão ter que provar... já disseram isso. Deixa só eu concluir: o Zórdico explicou que as receitas das misturas de ervas, estas “poções mágicas”, vulgarmente falando, vêm desde os tempos dos Druidas e dos Celtas.
— Druidas eram aqueles Sacerdotes do País de Gales, nos séculos V e VI, né?
— Isso! Há livros que falam a respeito de diversas receitas com ervas, e são antiqüíssimos. Sabe-se que quando misturadas nas devidas proporções e da forma certa, ampliam potencialidades naturais!
— É aquela história dos neuro-transmissores cerebrais, né?
— Isso. A aspiração dos vapores das ervas que, em suma, são substâncias químicas, levam a reações no sistema nervoso central que aumentam as nossas capacidades. Mas foi o exemplo que Marlon usou que me ajudou a compreender melhor, presta atenção, tem mais ou menos a ver com o que eu disse sobre a visão: o nosso olho “enxerga” dentro de uma faixa limitada que vai do infravermelho ao ultravioleta. Tudo aquilo que está fora desse comprimento de onda nós não conseguimos ver. A nossa audição é semelhante, você sabe que o ultra-som, por exemplo, é inaudível para nós, mas alguns animais podem escutar. Só que... — E eu ergui o dedo indicador diante do nariz dela, num gesto bem humorado. — Isso é assim porque nós só usamos uma pequena parte do potencial do nosso cérebro! Quem é que garante que o olho humano realmente só enxerga dentro desse comprimento de onda?!! Quem garante que o ouvido também não pode ir além dos limites conhecidos como “normais”?! Afinal, o cérebro nunca foi estimulado e usado ao máximo!
— Certo.....— Thalya olhava para o teto alto, procurando reter bem as idéias.
— É isso aí! Quem garante que nós estamos de fato utilizando a nossa visão na totalidade? As substâncias químicas liberadas pela ervas, em contato com os nossos neuro-transmissores, levam ao despertar da “energia dormente”. Isso se expressa através de um maior recrutamento de neurônios, isto “abriria” os nossos olhos para ver o que o olho humano não potencializado é incapaz de ver; aumentaríamos a nossa capacidade auditiva, ouvindo sons e vozes que normalmente não se escutam. Poderíamos contemplar, cheirar, sentir seres que estão à volta, ou em dimensões paralelas, mas que normalmente não percebemos. As ervas teriam uma espécie de poder de “destruir” temporariamente a nossa fonte consciente, abrindo espaço para contemplação de um mundo espiritual. Agiriam como um “meio” para esse determinado fim. Quer ver um exemplo palpável que ajuda a gente a entender melhor? Antes de existir a TV só podíamos ver o mundo à nossa volta, nosso bairro, nossa cidade, o que estava por perto, não é? Depois da TV, que decodifica em som e imagem as ondas de rádio, podemos ver um mundo mais amplo. Só que ainda dentro de uma limitação territorial. Mas depois do advento do satélite pudemos Ter acesso às “imagens via satélite”, ou seja, isso nos permitiu ver e ouvir o mundo inteiro! Caíram as barreiras! Entendeu?
Thalya continuava se remexendo ao meu lado, me incomodando com sua inquietação. Lançou um sorriso brejeiro:
— Pôxa, Edúúú! Você está falando cada vez mais difícil! — Olhou firme para mim. — Mas sabe que fica bem esse seu jeitão meio intelectual de falar?! Combina tão bem com esse seu cabelo, esse seu jeans...
— Não amola, Thalya.
Ela estendeu a mão para ajeitar melhor meu cabelo em desalinho.
— Mas é sério. E eu gosto do seu estilo! Mas é capaz de você acabar mudando prá valer no futuro!
— O visual, você diz? Por enquanto, sem chance! Einstein já dizia: “Pior seria se a farinha fosse inferior ao saco que a reveste”!
— Quando você mudar, cuidado para não ficar careta demais, heim? — Observou ela dando-me um beijinho no rosto. — Vamos comprar sorvete?!! Está um calor! Senão daqui a pouco a gente vai morrer de tédio aqui!
Saímos os dois, esquecidos por uns instantes do Grupo, da doutrina e da nova ciência. Éramos o que éramos, apenas dois curiosos e irrequietos jovens.
***
— Pôxa, eu já disse que hoje não dá, Camila! Que dificuldade de entender o óbvio! Está ouvindo? Eu já disse: hoje não dá Procura respeitar, caramba! — Desliguei o telefone meio irado.
Era uma quinta-feira e nós estávamos dispensados da aula para poder estudar para as provas finais. Era já dezembro e o quarto ano estava por um fio. Acostumada às regalias de ter quem a ajudasse a entender a matéria, Camila não queria abrir mão de mim naquela noite. Mas era impossível, eu não faria caso de ajudá-la se não fosse dia da reunião do Grupo. E eu já não estava mais nem aí com as provas, eu tinha um novo método infalível de estudo!
Por sinal, perder a reunião seria terrível porque havíamos começado a parte prática. Faltar era inconcebível!
— O acúmulo de conhecimentos novos fez com que vocês se esvaziassem dos antigos. Agora que efetivamente compreendemos e atingimos um estágio de “recipientes vazios”, vamos começar a encher-nos com as coisas novas que eu disse que viriam. Vamos conhecer de fato a nova realidade! Estão preparados? — Dissera Zórdico.
Eu não poderia desprezar aquele convite inestimável!
E já não era novidade que Camila e eu já não estávamos nos dando tão bem assim. Ela me sufocava, me tolhia, vivia impondo regras, fazendo cobranças. Nunca estava realmente satisfeita! Quando estávamos juntos, a maior parte das vezes eu me sentia completamente “podado”. Evitava até olhar para os lados porque Camila também era muito ciumenta, muito possessiva.
Vivíamos brigando.
Até que veio o dia em que terminei para valer. Já estava cansado dela. Foi terrível! Ela não desgrudou de mim! Vinha até minha casa, chorava, ameaçava matar-se. Minha mãe, com dó, fazia com que ela entrasse, me pedia para conversar com ela. A mãe de Camila acabou telefonando para “saber o que estava havendo”. E minha mãe vivia atrás me buzinando:
— Volta, Eduardo. Vocês foram feitos um para o outro.
Fiquei com dó. E acabamos retomando o namoro.
Mas depois disso, em várias outras ocasiões nós demos “um tempo”. E eu, irritado, desaparecia por uns dois ou três dias, e ela não conseguia me encontrar.
Camila até acabou se acostumando com a situação. Mas cada vez mais era um relacionamento virtual, nosso namoro era , só para constar. Mais por pena do que por amor. Porque Camila era tão dependente de mim...! Eu ficava pensando: “O que vai ser dela?”. Minha vontade era estar livre mas minha consciência não me permitia. Parecia que eu tinha criado um senso de responsabilidade em relação à ela, caso contrário de jeito nenhum ia levar adiante uma situação como aquela.
E como em momento algum Marlon falou qualquer coisa, apesar de Thalya ser minha alma gêmea... fui levando.
Thalya também não ligava, na verdade nunca ligou muito. Pelo menos da boca para fora. O fato de eu estar namorando sempre foi o de menos. Quase sempre ela se insinuava para mim. Eu barrava muita coisa em respeito à Camila. Mas no caso de estarmos de “namoro terminado” eu ficava com Thalya, e de consciência um pouco mais limpa correspondia aos avanços dela. Que me era muito mais agradável.
Se pudesse assumir algo de verdade com Thalya seria diferente. Pena...! Mas naquela fase de minha vida era cômodo, principalmente porque ninguém me cobrava nada.
***
Aquela noite, pela primeira vez Zórdico realmente propôs algo diferente. E voltou às origens do curso.
— Vocês devem estar lembrados da primeira aula, não?
Algumas cabeças balançaram dizendo que sim, inclusive a minha. A de Thalya ficou parada e ela somente sorriu para Zórdico. Afinal, ela não estivera na primeira aula.
— Eu havia dito nesta ocasião que para enchermos nossas xícaras com chá primeiro teríamos que esvaziá-las. Recordam-se? Recordam-se do convite para esvaziarmos nossas mentes do conhecimento previamente adquirido?
Dessa vez todos concordaram com ênfase.
— Pois bem. — Continuou ele. — Vamos voltar um pouco a este começo? Vamos tentar hoje um exercício prático que nos capacite a isto? A “esvaziar” nossas mentes?
Alguém questionou, como sempre:
— Vamos esvaziar a mente... e realmente preenchê-la com algo diferente?
Zórdico ergueu a mão, demorando um pouco na resposta. Pensamos até que nem responderia. Mas por fim ele disse, com calma:
— Quando você está esvaziando a sua xícara não deve ainda pensar no que virá depois. Espere que o primeiro processo se complete. Primeiro, esvaziamos... depois, tornamos a encher... depois, provamos... não é assim? Não é esta a seqüência lógica? Não vamos, portanto, atropelar cada uma destas fases. Por hora vamos esvaziar, apenas isso, esvaziar realmente! Mais tarde vocês serão preenchidos.
Após esta pequena introdução ele levantou-se da nossa costumeira mesa:
— Vamos falar menos e praticar mais. — Voltou-se para nós. — Estão prontos?
O pessoal todo remexeu-se e senti um burburinho, um farfalhar de roupas, murmúrios de excitação incontidos. Embora tivéssemos sido “domados” no desejo de fazer muitas perguntas, a curiosidade e a expectativa pairavam no ar.
Todos nos erguemos da mesa e seguimos Zórdico. Ele deslizou rapidamente até uma ala do salão que nós não conhecíamos, fora do ambiente da Biblioteca, do outro lado da escada que dava acesso ao porão.
Para surpresa geral havia ali uma porta meio escondida, de entrada pouco iluminada e que estava trancada à chave. Zórdico abriu a porta de madeira pesada com calma. Eu estava logo atrás dele de forma que, tão logo a porta girou nas dobradiças, fui um dos primeiros a enxergar a cortina branca que vedava a visão. Zórdico afastou a cortina para que todos nós entrássemos na nova sala.
A princípio, confesso, o que vi me surpreendeu um pouco. Fomos entrando em silêncio, um a um, no recinto amplo e totalmente pintado de azul claro. Não havia qualquer móvel e o chão era recoberto por um carpete azul no mesmo tom das paredes. Sobre ele, em intervalos espaçados, almofadões azuis e brancos.
Zórdico fechou a porta novamente e deixou cair a cortina branca, que a fez desaparecer. Não havia janelas nem qualquer outra saída. Era um lugar estranho, iluminado por pequeninas luminárias azuis que saiam de buraquinhos no teto. Não ofuscava a vista e dava um efeito muito interessante no ambiente. Mas era bonito também! Aquela intensidade azulada que emanava de tudo à nossa volta transmitia uma sensação de paz.
O ar estava agradavelmente fresco, bem diferente do ar abafado da rua, em pleno início de verão. Impregnando suavemente a atmosfera, um perfume doce que eu não sabia de onde podia vir, porque não vi nada queimando em lugar nenhum. Não parecia haver entrada para aquele aroma.
Zórdico quebrou o silêncio:
— Por favor, acomodem-se como quiserem!
Percebi que Marlon, antes de ajeitar-se sobre um dos almofadões, falou rapidamente qualquer coisa com Zórdico e, depois, aproximando-se de mim, orientou que eu e Thalya nos sentássemos próximos um do outro. costa-a-costa, de forma que nos apoiássemos mutuamente.
Sentamos nos almofadões muito fofos, confortáveis, de um tecido frio e sedoso como cetim. Apenas eu e ela fomos colocados “juntos”, por assim dizer. Acomodados todos, Zórdico percorreu os olhos pela sala e sorriu, observando-nos. Vagueava o olhar por cada rosto, com ar incentivador:
— Muito bem — Murmurou, sentando-se também em posição de lótus. — Esta é a posição mais adequada porque assim todos os nossos chakras ficam alinhados. A energia de cada um fluirá melhor.
Marlon comentou também, com voz tranquilizadora:
— Não se preocupem com nada e fiquem bem à vontade. Imaginem que vocês são como folhas levadas pela correnteza. Somente permitam-se flutuar ao sabor dela. Se vocês se prenderem aos galhos e troncos da margem... nunca irão de fato contemplar o oceano. Conhecer a sua beleza, a sua força, a sua presença indescritível! — Marlon falou para todos mas os seus olhos estavam voltados para mim.
Ninguém fez menção de falar ou de perguntar nada, no que consistia a experiência ou o que devíamos fazer. Todos nos deixávamos...levar! Uns poucos apenas ainda mantinham um certo ar de análise, percorrendo a sala com os olhos e intimamente indagando-se: “Que será?”. Mas não creio que alguém sentisse medo, até mesmo um pequeno receio que fosse. As semanas anteriores nos haviam preparado para aquilo. E todos queriam aprender.
Zórdico retomou:
— Fechem os olhos, então. Relaxem! Eu fechei os meus e a partir daí tudo o mais deixou de ter importância. A única coisa que sentia era o calor das costas de Thalya contra as minhas, mas em dado momento até aquela sensação deixou de existir.
Uma música suave inundou aos poucos o recinto. Aumentou de intensidade lentamente até atingir um platô e permaneceu assim. Não sei de onde ela vinha porque também não havia qualquer saída de caixas de som. Não me preocupei com aquilo naquele momento. A música parecia vir de todos os lados ao mesmo tempo e envolveu o meu corpo com o seu fluir.
Me concentrei na melodia. Bonita. Depois de um tempo Zórdico tornou a falar, pausadamente, conduzindo o Grupo. O seu tom de voz era calmo, porém firme.
— Eu sei como é difícil para vocês concentrarem-se no “Vazio” — Inspirou fundo. — O Vazio não faz parte da vida de vocês; estamos acostumados e fomos treinados a preencher toda e qualquer espécie de vazio. Às vezes o Vazio é preenchido com atividades que não levam a nada...filosofias vãs, idéias tolas... às vezes com meias-verdades... verdades relativas... ou até mesmo... uma infinidade de outras coisas. Desde que vocês nasceram, nunca pararam para contemplar... o Vazio!
Ele fez uma pausa novamente. Eu escutava a música e meditava naquelas afirmações.
— Parem um pouco... vejam como é gostoso respirar, apenas. Sentir o ar entrar... e sair dos pulmões... normalmente fazemos isso tão apressadamente que nem percebemos. Experimentem também, aos poucos, perceber as batidas do seu coração... não é algo magnífico?
Comecei a sentir minha respiração tornar-se mais lenta e cadenciada, mais profunda. Podia claramente sentir meu coração pulsar. Forte... forte... forte...
— De onde será que vem a força do coração para continuar batendo... e batendo...?! Normalmente também não pensamos nisso. Nem percebemos. Continuem relaxando, sentindo o fluir da energia vital dentro dos seus corpos. Fazendo mover o ar nos pulmões, expelindo o sangue do coração...
Ele fazia pausas a intervalos de tempo, mas logo retomava a cadência.
Vamos aprender a mergulhar no Vazio. Porque o Vazio... faz parte de tudo! Permeia tudo! Por menor que seja a distância entre dois corpos, entre dois átomos até... no meio deles sempre haverá um espaço... um “vazio”. Ele está no meio de tudo o que existe, faz parte do Universo. Entrando em harmonia com o Vazio vocês estarão entrando em harmonia com o próprio Universo... que é perfeito... tão completo... tão belo... como versos de poesia! Fazendo parte do Vazio... vocês serão “um com os versos”... farão parte do Universo!
Era um jogo de palavras, eu sabia. Mas fazia sentido. E nos ajudava a captar o cerne das coisas que não se explicam facilmente com palavras.
Ele falou mais um pouco ainda neste sentido e então começou a dar as diretrizes de como devíamos proceder:
— Imaginem uma Tela em branco diante de vocês. Dispersem todas as outras imagens da mente e concentrem-se somente nesta Tela. Fixem seus olhos nela. Já que não temos capacidade de contemplar o Vazio pura e simplesmente, vamos começar com a Tela.
Novamente uma pausa.
— É difícil manter apenas a Tela na mente. Vocês terão um pouco de dificuldade a princípio... outras imagens aparecerão... não se esforcem para afugentá-las. Apenas deixem o pensamento fluir, sem escolher imagens, sem retê-las...e lancem-nas sobre a Tela branca.
Eu me acomodei melhor, sem abrir os olhos. Senti Thalya remexer-se levemente também. Diversas imagens começaram a vir em minha mente, a esmo, coisas do consciente, do dia-a-dia, pessoas conhecidas. Eu escutava a música e procurava manter a Tela à minha frente. O restante vinha por si, aleatório.
— Não contenham o que vier à mente. — Escutei Zórdico dizer novamente. — Permitam o fluir do pensamento... é assim que suas mentes começarão a esvaziar-se. Este é o processo. Relaxem... haverá um momento em que a Tela realmente ficará em branco. É sinal de que o que havia no consciente realmente esvaiu-se...! A partir daí, o inconsciente deverá começar a aparecer, imagens com significado menos palpável... pelo menos a princípio. — Zórdico continuava progressivamente dando as diretrizes do que deveria ocorrer. — Concentrem-se na música... enquanto ouvem, imaginem que vocês estão simplesmente “jorrando” informações e imagens sobre a Tela. E lembrem-se... não as conduzam! Respirem de forma suave... e agradável...respirem calmamente...
Zórdico calou-se definitivamente.
Eu me perdi dentro de mim mesmo sentindo o vai-e-vem profundo do ar entrando e saindo dos pulmões, acompanhando o vai-e-vem do pensamento. As imagens vinham confusas e atropeladas de início, sem lógica ou coerência, sobrepondo-se umas às outras... o Kung Fu... fatos corriqueiros... pessoas... lembranças.... lugares.... era como estar sonhando acordado!
A melodia continuava sempre na mesma cadência, suave... eu não conhecia música o suficiente para dizer que tipo de instrumentos produziam aquele som. Mas eu diria que era algo como mantras. O ar fresco e perfumado às vezes voltava à minha consciência mas eu logo me esquecia dele.
Esqueci de Zórdico, Thalya e até Marlon. Perdi a noção de tudo, difícil dizer quanto tempo permanecemos ali...trinta, quarenta minutos?!... Até meu corpo parecia meio amortecido, imóvel naquela posição. Mas depois também esqueci do incômodo, esqueci do meu corpo... esqueci — parece — de mim mesmo!
E finalmente parece que minha mente “esgotou”. Parecia não haver mais o que lançar na Tela. Foi natural. Simplesmente esvaziou, como Zórdico dissera. Quando me dei pela coisa a Tela já nem era Tela, havia ali um branco geral e completo.
De repente era como se eu também fizesse parte daquele branco todo, ele me envolvia por todos os lados. Uma sensação de viajar dentro de uma nuvem... uma nuvem densa... branca... branca... quase poderia tocá-la, uma névoa fria...
Nessa altura escutei de novo a voz de Zórdico, de repente, calma, tranqüila. Não me assustei apesar de já fazer muito tempo que ele não falava.
— Creio que todos vocês já devem estar permeando o Vazio. Caminhando por ele. Tudo deve estar branco ao seu redor. Não questionem isso... apenas sintam-no! Percebam... sua respiração está mais leve... seu coração bate completamente cadenciado... e você pode sentir esse Vazio à sua volta. Agora você está em harmonia com ele. Sinta-o. Aproveite este momento...
Senti uma sensação grande de tranqüilidade e paz enquanto me via mergulhado naquela mistura ímpar de sensações até então desconhecidas. Parecia que eu havia descarregado uma espécie de tensão e estava mergulhado num outro mundo. Era até estranho... estava leve, fluido, solto. Parecia que levitava. Nesse momento não me lembro de mais nada além daquela sensação de estar mergulhado na nuvem, não havia mais cheiro, ou música, ou sons... apenas o branco que me envolvia. Era gostoso...!
Após algum tempo mais em silêncio, finalmente Zórdico pediu que lentamente fôssemos abrindo os olhos, e aquela primeira experiência findou ali, consistindo apenas no ato de nos esvaziarmos e atingirmos aquela espécie de estado letárgico, profundo, quase como uma meditação.
Zórdico deu oportunidade para que compartilhássemos uns com os outros a experiência. As sensações relatadas foram semelhantes para todos, variando com pequenas nuances, mas todos garantiram ter experimentado muito claramente aquela sensação de leveza e de flutuar em algo como algodão frio.
Numa próxima tentativa tudo ocorreu de forma semelhante até aquele ponto quando parecíamos mergulhados no Vazio. Só que aí, ao invés de abrirmos os olhos, Zórdico deu uma continuidade diferente:
— Vocês já sentiram sua respiração... já sentiram as batidas do seu coração... — Começou ele, sem aviso prévio. — Agora...abram bem os seus ouvidos. Procurem ouvir a voz do seu inconsciente... a voz do seu “Eu”. Procurem ouvir o que está por trás desse Vazio. Esperei um tempo, procurando pressentir o que viria. De início... nada!
Apenas a letargia física, a nuvem branca, o levitar. Eu me sentia no meio de um nevoeiro muito denso, tão denso que a impressão era que, se eu esticasse a mão, ela desapareceria da minha vista perdida no meio dele. O chão parecia não existir, parecia “fofo” como uma substância amorfa... gelatinosa... me imaginei caminhando por ali, mas dava até medo de caminhar.
Mas........ agucei os meus sentidos! Tive a nítida impressão de escutar uma espécie de sussurro. Não chegava a ser uma voz audível, não Mas era clara, óbvia, um sussurrar baixinho, leve, como que vindo de todos os lados ao mesmo tempo...alguma coisa como...”Continue caminhando, não tenha medo”. A voz continuava, parecia ter lido meus pensamentos. Ou melhor, leu mesmo porque era o meu próprio “Eu” falando! “Caminhe...caminhe, não tenha medo...”.
Na hora foi muito real. Mas eu me questionei tremendamente depois, até mesmo com Marlon. Seria algo subliminar na música? Seria uma espécie de efeito hipnótico qualquer?
Mais tarde, conversando com Thalya, admirados ficamos pois ela disse ter escutado algo semelhante vindo do meio da névoa, algo como: “Estamos com você. Você não está sozinha.”
Outros colegas de Grupo foram também unânimes em comentar que tiveram a mesma experiência, isto é, escutaram o mesmo tipo de palavras encorajadoras. Todos escutaram algo, sem exceção. Foi fantástico! Ia além das leis da probabilidade ou do acaso. Deveria mesmo ter acontecido alguma coisa. Isso porque estávamos apenas começando as experiências!
Zórdico explicou que naquele estado de meditação tínhamos um acesso mais aguçado ao nosso inconsciente. Um acesso diferente, que não seria atingido sem esse prévio estado de letargia, o estado “alfa”. Essa voz do inconsciente é o que vulgarmente as pessoas chamam de “sexto sentido”. Aquela velha história do “algo me dizia” ou “alguma coisa me falou que...”
— Sabe? — Comentou Marlon depois. — Todo mundo já teve essa sensação além da razão, uma espécie de “feeling”! Que todo mundo sabe que tem, em maior ou menor grau. Pois bem... agora isto está ao alcance. Você já sabe como acessar este sexto sentido, como escutá-lo. Com a prática vai fazer cada vez melhor. Não se trata mais daquela coisa vaga de ter “pressentimentos” ou “intuições”. Agora você pode ter contato com estas informações de forma mais pura e mais aguçada! A voz do seu inconsciente é sábia, é perfeita, mas o seu consciente barra o que provém destas profundezas do ser. O consciente é pura razão e lógica. Mas o inconsciente está repleto de sensibilidade. Sempre sabe o que deve ser feito, sempre tem a resposta certa para todas as coisas. Porque nem sempre a lógica é a resposta correta! Lembra-se das suas provas na escola? A informação estava toda no inconsciente.
Essa foi uma das primeiras descobertas práticas que de fato fascinaram o Grupo. Saímos todos cheios de sorrisos naquela noite.
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