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Capitulo V
Capitulo V

Capítulo VI

Mulher tem umas manias que mais cedo ou mais tarde acabam aparecendo, não tem jeito! Logo Camila começou a fazer umas caras meio tortas quando eu avisava que ia estar com meus amigos da “29”. Ainda que ela não falasse nada e me deixasse fazer como eu queria, ficava implícito o seu desagrado.

Eu tinha procurado jogar limpo mas diante daquele mau humor, simplesmente deixei de falar a verdade. E quando estava a fim de ter sossego e sair com a turma inventava uma desculpa qualquer.

— Hoje tenho que ir mais cedo, vou passar na casa da minha avó.

Ou então:

— Preciso arrumar minhas coisas, está tudo uma bagunça!

A princípio, Camila acreditava. E eu virava a noite com a turma.

Numa destas ocasiões, num sábado, depois que saí da casa dela, eu queria mais era relaxar com o meu pessoal. Namorar era muito bom. Mas em doses maciças, como às vezes acontecia... era preciso descontar depois o tempo perdido!

Acabei ficando na esquina de casa com os amigos que já fazia tempo que não conseguia encontrar. O Éder, o Bolinha, o Tistu, o Júlio e mais alguns que faziam parte da turma há menos tempo, o Cebola, o Risada, e mais uns três ou quatro ali do pedaço mesmo. Da “Rifânia”, uma Gangue vizinha simpatizante da “29”, estavam o Piga, o Miçuka e mais um ou dois. Em suma, quase quinze caras!

O ponto em que costumávamos ficar era bem estratégico porque daquela esquina nós podíamos ter visão perfeita de mais quatro. Se pintasse rolo dava para escapar em tempo. E era ali que a gente relaxava. Com garrafas de vinho, cerveja, um bom baseado e muito papo. Às vezes nós pegávamos guardanapos de papel do bar em frente para enrolar o cigarro e era super comum ficarmos por ali até altas horas. A dona do bar nem se incomodava, até dava os guardanapos de graça.

Eu não usava mais muita cocaína, era de fato muito esporádico, mas uma maconhinha não dava nem para ser considerada “droga” de verdade!

Naquela noite acho que estávamos inspirados demais. Talvez porque não nos encontrávamos naquele clima de descontração há tempos. Fumamos tanto e a bagunça foi tão grande que esquecemos de vigiar as esquinas. Vai ver algum vizinho que estava cheio com a barulheira chamou “ajuda”.

Na maior alegria da paróquia o Renê tocava violão, todo mundo cantava e ria numa gritaria mais ou menos, as garrafas já estavam quase vazias. Nós nem vimos nada, só escutamos o berro:

— MÃO NA CABEÇA!!!

E acenderam os faróis altos na nossa cara. O susto foi tão grande que quase engolimos a maconha. A “Barca” (viatura) tinha chegado apagada e na surdina. Nós estávamos muito chapados, foi difícil até saber o que estava acontecendo.

— De cara na parede! Abre essas pernas! — Os policiais desceram e foram nos encurralando em tom ameaçador.

— Pô... sujou!... — Comentamos de leve um com o outro.

Eles deram uma geral e apreenderam a droga. E lá fomos nós para a sétima DP! Aliás, a sétima DP era muito conhecida, volta e meia nós estávamos lá. Ou era por causa de briga, ou era por causa de droga. E eu que só queria um pouco de paz e sossego!

— Entra aí, moleque! — Levei um chute na bunda.

Os outros levaram uns cascudos e ficamos todos de bico. Já sabíamos que quem falasse apanhava mais ainda. Mas não deixava de ser engraçado. Toda vez que chegávamos na sétima DP parecia que tinham despejado ali um microônibus, de tanta gente! Tudo ainda era festa naquela época apesar dos percalços que a maioria já vinha enfrentando com aquela marginalidade.

Para variar era aquele delegado outra vez. Calhava de nós sempre cairmos no plantão dele. Vai ver era o dia, ou o horário. Normalmente ele tinha paciência com a gente. Falava firme mas parecia ter bom coração, dava conselhos:

— Olha, rapaziada, vocês são muito jovens ainda. Este caminho não dá em nada, vocês vão acabar presos ou com uma bala na cabeça. Procurem tomar juízo!

Ficávamos detidos algumas horas e depois nos liberavam. Mas nós já estávamos passando dos limites. Naquele dia o delegado tentou dar uma de mau:

— Caramba, vocês de novo??! O que foi dessa vez? Não aprendem mesmo, heim?... Já falei que essa vida é curta! — E esbravejando, após saber dos nossos delitos. — Todo mundo prá cela agora! JÁ!!

— Aeh, seu (...)! Bichoso!!! — Gritamos para os policiais que nos levaram “presos”.

Eles nos ignoraram totalmente. — Alguém aí conta uma história! — Gritou o Júlio. Passamos a noite assim, contando histórias e jogando palitinhos. Quando amanhecesse seríamos liberados. Mas daquela vez houve um porém:

— Não, não, não! — Dissera o nosso “amigo” delegado, irritadiço, na porta da cela. — Desta vez eu não libero ninguém sem o pai vir aqui! Já está virando muita palhaçada esse negócio de toda hora vir dormir na cadeia. Desta vez o pai de vocês vai levar bronca também! Estamos passando dos limites!

A maioria de nós era menor de idade. O máximo que podia acontecer era alguém ir parar na FEBEM. Mas era muito fácil fugir de lá, o Bolinha mesmo já tinha fugido várias vezes! Como os policiais não podiam estar armados era quase impossível impedir os levantes dos internos. Eu não me importava de ir parar na FEBEM, se fosse o caso. O problema era que eles cortavam o cabelo careca, e isso era um pavor! Eu não queria saber de ninguém cortando o meu cabelo!!!

Naquele dia os maiores de dezoito anos foram saindo por falta de flagrante (a droga sempre estava com os menores). E a pivetada foi sendo liberada à medida que os pais chegavam.

Eu fui ficando, fui ficando, fui ficando e, por fim só fiquei eu e o Cebola. Era de manhã e estava difícil de achar os meus pais. E o Cebola não tinha pai, a mãe trabalhava fora, ninguém conseguiu localizar ninguém. E nada de irem nos buscar.

— Pô. — Eu e ele nos encarávamos meio sem graça — Só sobrou a gente...

Passou a hora do almoço e neca! Eu estava fulo com aquela situação!

— Que droga!!! “Inho”, “inho”, “inho”! O delegado é veadinho! - Comecei a cantar de pura raiva. O Cebola acompanhou.

— “Inho”, “Inho”, “Inho”, delegado é veadinho!!! — Gritávamos cada vez mais alto. Todo mundo estava escutando, inclusive o delegado.

Mudei a cantilena, a plenos pulmões: — “ADO”, “ADO”, “ADO”, DELEGADO É UM VEADO! Não foi possível continuar muito tempo: — Vamos calar essa boca aí?!! — Berrou da porta do corredor o policial, com maus bofes.

O Cebola não queria arrumar mais confusão, mas eu estava cheio. Nem dei bola e continuei na mesma gritaria até que dois policiais entraram na nossa cela e nos deram um corretivo. Apanhamos um pouco, mas sem exagero.

— E fecha a matraca! — Vociferou para mim o policial, todo irritado. Eles sabiam muito bem quem era o articulador do “levante”.

Minha vontade era continuar berrando mais ainda. Só que aí era capaz de apanhar de verdade e fui obrigado a me conter. E eram quase duas da tarde! Quase doze horas de cela! Continuei

baixinho:

— “Inho”, “inho”, “inho”, delegado é veadinho! “Inho”, “inho”, “inho”, delegado é veadinho!! “Inho”, “inho”, “inho”...

Quando cansei, me dei conta que estava morrendo de vontade de ir ao banheiro. O Cebola também queria. Começamos a gritar através da grade mas a resposta foi a esperada:

— Pode fazer aí mesmo!

Impossível. Encostar em alguma coisa ali e a gente podia acabar com tétano. Por fim, depois de muita procura, nossos amigos encontraram o meu pai no bar perto de casa. E avisaram que “eu estava na cadeia, mas não tinha sido nada”.

Ele vinha bebendo cada vez mais. Não necessariamente por minha causa porque ele sempre bebeu, desde que eu era pequeno. Era um conjunto de coisas, desde os constantes desentendimentos com minha mãe até os danos financeiros causados pela perda das casas. Ele foi piorando progressivamente, não dava mais para negar o alcoolismo franco.

Minha mãe não se conformava com aquele vício que piorava a olhos vistos. Ela também não perdoava a história da perda do nosso patrimônio e estava sempre a acusá-lo.

As brigas eram cada vez piores, cheguei a ver meu pai ameaçar minha mãe com cadeiradas e ela revidar com faca, coisas desse nível! Havia manhãs em que eu saía de casa e dava com meu pai dormindo na soleira da porta. Isso acontecia todas as vezes em que ele ficava até de madrugada no bar. Quando chegava, minha mãe não abria a porta. E ele, embriagado, dormia ali mesmo.

Mas naquele dia meus amigos o acharam sóbrio. Ainda. E ele foi me buscar.

Fui chamado da cela e saí. O Cebola ficou para trás. Diante do Delegado meu pai levou uma esfrega:

— O senhor é que é o pai deste rapaz? O senhor não pretende dar educação para o seu filho, não? Por acaso quer vê-lo com um tiro na cabeça?! O senhor sabia que ele é freqüentador deste estabelecimento já faz tempo? — O Delegado estava feroz naquele dia.

Meu pai tentou argumentar:

— Não adianta falar, ele não escuta ninguém!

— O senhor tem que ter pulso firme com ele!!! Pulso firme, sabe o que é isso? Eu também tenho filho adolescente e o pai tem que segurar esses endiabrados nessa fase! - Ele apontava para mim, injuriado. - Olha só para a cara do seu filho!

Eu estava com o ombro apoiado na parede, só escutando.

- Olha a cara dele, é um marginal mesmo, não tem o que esconder! Mas se acontecer algo pior com ele o senhor também vai ser responsável por isso. Não adianta nada largar tudo ao deus-dará! - E falou, falou, falou um monte.

Meu pai, quieto, não teve o que responder. Por fim fui dispensado, e levamos também o Cebola. Meu velho foi generoso, responsabilizando-se por ele e dizendo que conhecia a família, que a mãe realmente não estava em casa, que era boa gente e etc. .. e etc. ..!

O Cebola morava algumas casas depois da minha e, antes, era até bonzinho. Mas depois que começou a andar muito comigo e com a “29” degringolou de vez. Até plantação de maconha ele tinha no quintal!

Da delegacia até em casa eu e ele tomamos o maior sermão.

— Esta é uma vida bandida, marginal! — Repetia meu pai à toda hora. - Vocês têm que parar com essa história de roubo, de bagunça, de sujeira! O caminho disso é a morte! E esta coisa de droga?!!!

— É! — Retruquei, por fim. — Mas você também bebe. Droga por droga, o álcool também é droga!

O Cebola assentia com a cabeça. Meu pai deu um berro quase fuzilando-me:

— Mas a minha droga pode!!!!!— E continuou esbravejando: — No dia em que legalizarem a maconha, a cocaína e o raio que o parta você usa quanto quiser! Pára de querer se justificar!!!

Não adiantava discutir. Era um troço complicado tudo aquilo. De quê refrescava um sermão daqueles??? Nenhum de nós tinha como voltar atrás agora. Só conhecíamos aquela vida. Certo ou errado, era o que era; ninguém muda do dia para a noite, pelo menos não sem um bom motivo! Às vezes eu tinha aquela sensação estranha, como se realmente não fosse durar muito, como se a minha vida estivesse por um fio!....

O melhor era não ligar! Escutei até em casa, sem responder. Subi, tomei um bom banho e só avisei:

— Vou encontrar a turma! — E me mandei para a rua de novo. Já tinha mesmo perdido a escola e o treino. Perdido por um, perdido por mil. Ia terminar de aproveitar.

***

Eu estava no final dos meus 16 anos e um fato era inegável: eu e a turma da Gangue estávamos cada vez mais em ponto de bala. Nós tínhamos que descarregar o que ia por dentro de qualquer jeito. Era uma necessidade evidente. Estávamos cada vez piores!

Uma outra ocasião fomos à casa do Éder escutar um disco de funk, um negócio da hora. Foi uma zona total! Bebemos fumamos, nos drogamos e por fim saímos de lá doidões, enlouquecidos.

— Vamos bater na turma da rua Maipim? — Propôs o Bolinha pingando colírio nos olhos e passando o frasquinho adiante (o colírio tirava a vermelhidão deles).

Todo mundo topou. Aquela turma vivia jogando bola ali na rua. Não sei bem quem começou com aquela história, mas volta e meia nós aparecíamos por lá, espancávamos todo mundo e não tinha mais jogo. Os caras ficaram tão calejados que bastava um de nós aparecer e eles já fugiam espavoridos.

Depois da visita à Maipim, que não foi lá essas coisas a noite vinha caindo mas nós estávamos ainda excessivamente acesos, precisando explodir. Por para fora tudo o que estava dentro da alma e que nós nem nos dávamos conta.

Andando em bando e procurando o que fazer, ainda passando de mão em mão a garrafa de vinho, falando alto, jogando longe latões de lixo, de repente demos de cara com a escola “O Reino Infantil”, não muito distante de onde estivéramos. Alguém sugeriu:

— Vamos entrar lá?

Pulamos os muros, só para “ver como era”. Arrombamos uma porta lateral e entramos nas salas de aula. O Éder teve a idéia, catando uma cadeira:

— Vamos ver quem arremessa mais longe?!

Foi como sugerir que os ratos se servissem de queijo! Passamos a arremessar longe as cadeiras imitando os atletas que  praticam arremesso de peso, com aquele giro do corpo que faz com que se tenha maior impulsão ainda.

Não nos demos por satisfeitos até que uma das cadeiras finalmente acertou a vidraça. Foi um barulho ensurdecedor mas ninguém estava nem aí. Ao invés de nos assustarmos achamos “dez” e começamos a quebrar tudo quanto era vidro na cadeirada!

Depois, só as vidraças pareceu muito pouco. Já estava tudo quebrado mas parecia pouco. Eu e Tistu começamos então a quebrar todo o resto, lousas, carteiras, objetos de todos os tipos no meio de uma arruaça infernal.

Tinha uma mangueira por ali, no corredor ao lado, e nós ensopamos tudo, molhamos tudo o que havia pela frente. Largamos a mangueira ligada, demos banho um no outro. O resto da galera entrou na bagunça. Enquanto não depredamos tudo o que vimos pela frente não nos demos por achados.

À certa altura vimos a luz de uma lanterna iluminando pelo lado de fora. Só então nos lembramos de que já estávamos ali há muito tempo. Em poucos segundos a polícia chegou e nós tivemos que fugir que nem ratos. Alguns vizinhos acabaram vendo alguns de nós, apesar de termos sumido tão rápido como o vento.

— Sabemos quem foi! — Disse a mãe do Netinho.

Ficamos sabendo quem ela acusou porque as intimações foram chegando, inclusive em minha casa. Aliás, elas chegavam mesmo. Mas normalmente eu passava a mão antes que meus pais tomassem ciência. Rasgava e ficava tudo por isso mesmo. Nunca vinha segunda via!

Só que nessa ocasião eles viram antes de mim. Dei uma enrolada nos meus pais, disse que havia sido um engano e nem dei bola para a intimação. Continuei na minha vida de marginalidade.

O nosso sonho era crescer como uma Máfia! Conhecíamos os bandidos de verdade do bairro, gente realmente procurada pela polícia. Às vezes saía alguma história deles no jornal e nós ficávamos muito lisonjeados com aquilo. Tinha um cara que eu vivia escutando falar sobre ele, o Rumba, um bandido completamente tresloucado.

Um dia tive o privilégio de conhecê-lo. Ele andava armado até os dentes, naquele dia estava com duas pistolas e vinha pedalando uma bicicleta. Mas era tão magricelo que eu pensei comigo: “Este é o temido?!”. E eu tentava associar as histórias ouvidas à figura que tinha diante de mim. Eu sabia que eram verdadeiras!

Conversamos um pouco, ele prometeu roubar-me uma bicicleta de presente. Encontrei-o algumas vezes depois disso, ele sempre me cumprimentava, lembrava de mim. Ficamos até meio “colegas”. Mais tarde ele viria a morrer num tiroteio com a polícia. Levou mais de vinte tiros. Saiu até no programo do “Gil Gomes”.

Infelizmente eu estaria envolvido nessa história...

***

Se a Gangue era um motivo claro de atrito com Camila, o Kung Fu logo demonstrou ser mais um possível motivo. Novamente não era nada muito declarado da parte dela, mas como eu estava cada vez mais ocupado com treinos e aulas, ficou muito óbvio que, definitivamente, Camila não apreciava nada daquilo.

Mas aí já era demais!

Gostando ou não, ela ia ter que aprender que eu não era um boneco que ela montava e desmontava conforme lhe conviesse melhor, por puro capricho. A melhor coisa da vida é fazer aquilo que se gosta! E eu amava o Kung Fu!

Se eu procurava dar tudo o que agradava a ela, passeios, presentes, ela não poderia fazer o mesmo?!... O quê mais ela queria??? Como era difícil entender a mulherada!!!

E dito e feito, o Kung Fu tornou-se um Capítulo à parte. As boas oportunidades para mim começaram a aparecer naturalmente. Camila não tinha o direito de se intrometer nas minhas conquistas.

Começou com a saída do Péricles, infelizmente. Ele teve que se ausentar da Academia por causa de um problema de família, e foi de viagem para outro estado. Ia ficar fora uns cinco ou seis meses. Nessa altura eu estava no terceiro estágio do Union First (o estilo completo tinha 5 estágios), e o próprio Mestre Yung me abordou. Sim, ele mesmo, o que trouxera o estilo ao Brasil e que dava aulas na Liberdade.

De vez em quando ele aparecia por lá, assistia os treinos, supervisionava o andamento dos alunos e do próprio Péricles, seu discípulo. Naturalmente que ele via minha dedicação e aproveitamento. Eu era o braço direito da Academia.

— Você tem condições de assumir as aulas até que o Péricles volte?

UAU!!!

Eu tinha mesmo muita facilidade para dar aulas. Era algo nato. Havia vezes em que eu dava quase todo o treino sozinho e o Péricles só vinha no final, adiantava a técnica, corrigia. O Mestre Yung sabia disso, e não reprovava. Mas queria ouvir da minha boca que eu estava disposto a encarar o rojão de assumir a turma. Não vacilei.

— Assumo. É claro que assumo. — Aquela era uma confiança tremenda!

— Só tem um porém. - Ressaltou ele. — Eu não admito que você ensine qualquer outro estilo dentro dessa aula. Union First é Union First. Wing Chun é Wing Chun.

— Entendi.

Ficou combinado assim. Tive que fazer malabarismos nessa época para dar conta do recado. À tarde eu já trabalhava meio período e o serviço “atrapalhava”. Eu era um dos vendedores daquela antiga rede de lojas, a Sears.

Então ia cedo para o colégio, depois voava para o serviço à tarde. Depois era só aula, aula, aula, aula na Academia. Union First para o curso de Union First, Wing Chun para o curso de Wing Chun. Procurei concentrar todas as aulas nos mesmos dias para poder ter uma ou outra noite livre. Afinal, precisava ter tempo para os amigos. E um pouco para Camila! Às vezes até cabulava o colégio de manhã para treinar mais. Sábado de manhã eu também tinha que treinar.

Enfim, consegui dar as aulas de Kung Fu durante alguns meses. Mantive o compromisso com o curso de Union First e Wing Chun até onde realmente me foi possível. No entanto chegou o tempo em que eu já não tinha mais o que ensinar caso não me dedicasse ao meu próprio aprendizado. O Péricles e o Ageu definitivamente não retornaram mais. Então tive que me afastar daquela Academia, já não havia muito mais para mim ali. Foi mais do que compreensível o meu desligamento.

Pouco antes disso achei um espacinho do dia para começar a prática de um novo estilo, o Ton Long, numa conceituada Academia. Realmente era impossível conciliar tudo. E eu queria ter tempo para me dedicar integralmente.

A essência da minha vida era o Kung Fu, de forma que eu treinava inclusive durante o serviço na Sears. O lugar do estoque de mercadorias era ideal! E tinha lá meus amigos espalha-brasa que estavam sempre aprontando também. Um dia eu estava com eles treinando chutes em pacotes imensos de fraldas, elas voavam e espalhavam para todos os lados. O treino acabou mas continuamos destruindo as fraldas e correndo um atrás do outro como doidos, com uns revólveres de flechinhas, atirando sem parar.

Alguém acabou caindo em cima de uma das estantes imensas. Elas eram enfileiradinhas que nem dominó, caiu uma e ela foi derrubando todas as outras. Parecia que tinha caído uma bomba dentro do estoque. Levaram semanas para por em ordem. Nossa sorte foi que não fomos descobertos.

De vez em quando eu dava uns “chutes” no trabalho e fugia para a nova Academia. Mas tinha que fazer a coisa bem feita porque não era interessante ficar sem o emprego. Eu ganhava muita grana! Não porque o salário de vendedor fosse grande coisa, mas por causa dos altos rolos que aprontava por lá. O dinheiro que eu roubava mensalmente era três vezes o meu salário.

Passava adiante montes de brinquedos para meus amigos da “29”, principalmente na época do Natal e Fim de Ano quando o movimento era muito grande, difícil de controlar as vendas. Eu embrulhava autoramas, jogos caríssimos da moda, vídeo games e eles simplesmente iam pegar. No meio do tumulto saíam carregados de tudo quanto era coisa. Revender dava grana.

E quanto aos fregueses, se consentissem em comprar sem nota fiscal eu fazia a mercadoria pela metade do preço, às vezes até por um terço do preço. E embolsava a grana. Também dava para desviar dinheiro do caixa. Era muito fácil, o sistema era falho. Só iam perceber muito depois, na contabilidade, mas aí., já era!

***

O Ton Long — ou estilo do Gafanhoto — era leve, suave, e exigia muita flexibilidade e agilidade. As posturas eram muito baixas. Mas a beleza dos “Shiatzes” (seqüências de movimentos) me encantava. Cresci muito rápido por causa da ótima base que eu já tinha.

O Ton Long tem oito estágios. Minha bagagem prévia me fez caminhar muito mais depressa do que os outros, a maioria iniciantes no Kung Fu. Eu treinava como um alucinado. Havia “Shiatzes” que os alunos levavam um mês para aprender. Mas eu, com facilidade em assimilar os movimentos, às vezes gastava um ou dois dias para aprender a mesma coisa.

E em mais ou menos um ano eu cheguei ao quarto estágio. Até aí tinha sido mais fácil. Depois complicou, e passei a levar praticamente o mesmo tempo que os demais. Pois quem chegava neste ponto estava mesmo a fim de treinar, tinha jeito para o esporte, e já estava familiarizado com o estilo.

Foi no Ton Long que comecei a aprender o manejo de muitas armas. Nos oito estágios do estilo aprende-se um básico de 107 armas. Depois é possível especializar-se naquilo em que se tem maior destreza. No meu caso, o forte sempre foi o nunchaku. Aprimorei-me muito. Também era bom no bastão longo, na lana, nos sabres e jogava shurikien com facilidade.

Nessa época fui incentivado pelos meus Professores a terminar o Wing Chun. Faltava apenas o último dos três estágios para que eu me formasse. Resolvi então matricular-me na “Associação de Divulgação Nacional de Kung Fu” para dar continuidade ao estilo, paralelamente ao Ton Long. O que eu ganhava dava para pagar a mensalidade.

A “ADINK” era a mais conceituada Associação de Kung Fu da época. Os alunos da ADINK eram sempre os melhores, os que se destacavam em Torneios, Apresentações e Campeonatos. Fiz a ficha, mencionei os meus Mestres e o estágio no qual me encontrava. Fui submetido a um teste prático e pude continuar quase que exatamente do ponto aonde tinha parado. Minha única deficiência era o Mudjong.

O Mudjong é um espécie de boneco de madeira usado para treinamento de golpes a curta distância e eu deveria ter aprendido 30 movimentos até o final do segundo estágio. Mas na outra Academia não tinha Mudjong. Diante do bom andamento em tudo o mais aquilo não foi problema. Ficou acertado que aquela deficiência seria suprida e eu aprenderia no último estágio todos os 108 movimentos.

Bom, estar na ADINK era o máximo!!! Todo mundo era bom, os alunos todos, e mais ainda os Professores. A maioria deles estava cheia de títulos e conquistas. Logo fiz amizade com todo mundo. Vivia atrás dos Mestres porque   estava sempre fuçando em tudo que pudesse aprender.

Agora imagine se eu podia por tudo isso a perder só porque Camila não gostava de Arte Marcial e nem se interessava por coisa alguma!!!

***

E foi assim.

Hoje percebo que, no início, boa parte de minha expectativa em relação ao namoro foi fruto de minha própria fantasia. Apesar de ser ainda um adolescente eu tinha lá comigo o protótipo da mulher ideal. E assim, inconscientemente, transferi para ela uma série de expectativas, a realidade mesclada com os meus desejos.

Só que o dia-a-dia se encarrega naturalmente de “moldar” estas imagens pré-concebidas. Leva um tempinho, mas acontece! E se começa a ver que nem tudo são flores.

Ficou claro que Camila não topava a “29” e que achava a Arte Marcial uma total perda de tempo. Aquilo foi um pouco de água na minha cabeça, mas nem por isso deixei de considerá-la, e muito. Ela tinha qualidades essenciais e que eu não queria desperdiçar. Era uma moça que não se encontra em cada esquina. Isso me fez investir no relacionamento e procurar contornar as diferenças. Era inegável que eu estava envolvido por ela.

O que mais me atraía era o seu jeito discreto de ser. Camila me respeitava. Era algo natural, que não precisava de imposição ou indiretas, fazia parte do seu caráter. Vagamente ela tinha comentado comigo sobre seu desejo de ser “mulher de um homem só”. Aquela história deu uma mexida com a minha cabeça. Isso era tão inédito!

Quando íamos ao cinema, mesmo nas poucas vezes em que isso aconteceu ainda antes do namoro, se havia alguma cena... um pouco mais picante...ela desviava o olhar, abaixava o rosto. Aquela decididamente não era uma conduta normal!

— Pôxa — Eu ficava pensando. — Isso é diferente!

Eu me sentia respeitado por causa de atitudes assim. Camila me passava uma sensação de fidelidade absoluta. E aquilo me atraía.

Quanto à ela.....difícil dizer!

No começo senti que não era correspondido na mesma intensidade. Para Camila o nosso relacionamento era apenas um “namorico”. Ela mesma veio a me dizer isto mais tarde, que tinha iniciado o relacionamento só para ver “no que ia dar”. Mas depois dos primeiros meses, apesar das desigualdades, começamos enfim a nos adaptar e os sentimentos dela também mudaram. Camila começou de fato a gostar de mim, tornou-se mais amiga, mais carinhosa. E começou a fazer questão real da minha companhia.

Mas reconheço que eu não era nenhuma pérola. Estava muito, muito longe de ser alguém fácil de lidar! Meus defeitos com certeza eram piores do que os dela.

Se havia alguma discussão eu emburrava e ia embora, largava-a na mão, era “tchau” mesmo. Sumia. Ela que vinha atrás depois, me abraçava, procurava consertar os desentendimentos.

Outro aspecto era aquele meu temperamento agressivo. Ela viveu comigo muitos momentos de sufoco, pois sua presença não era suficiente para moderar minhas atitudes explosivas. O número de vezes em que saímos para passear e conseguimos estar de volta sem que eu tivesse armado alguma confusão podia ser contado nos dedos! Coitada!...

Como nenhum de nós tinha carro eu e Camila sempre andávamos de ônibus. Ônibus, (e cinema), era só questão de esperar. Não dava outra: confusão, confusão e mais confusão!

Certa ocasião Camila e eu íamos não sei onde, o ônibus estava cheio quando entramos e ela sentou-se no único banco vazio. Ao lado de um sujeito. Eu fiquei de pé ali mesmo. De repente o dito cujo resolve virar para trás e, para poder olhar bem (o quê, eu não sei), apoiou a mão no banco. Dentro de ônibus todas as mãos ficam muito “bobas” e nessa de se apoiar ele encostou na nádega dela. Como se precisasse de apoio para olhar prá trás!

Durante alguns segundos eu só o encarei. Ele percebeu e perdeu o rebolado. Sem jeito, abaixou a bola e olhou para a janela.

Educadamente eu pedi:

— Camila, levanta daí um pouco, tá?

Ela me olhou meio amedrontada ao erguer-se do banco:

— Você não vai fazer nada, né?

— Imagine... — Respondi, com um meneio de cabeça.

Sem mais palavras tomei apoio nos suportes de ferro dos bancos e, num impulso, dei um coice com os dois pés na cabeça do sujeito. Foi tão violento que ela partiu o vidro da janela. A cara dele foi parar fora do ônibus, pendurada na janela.

Empurrei a Camila para frente:

— Vamos descer no próximo ponto.

Todos dentro do ônibus permaneceram mudos, ninguém deu um pio. Camila me lançava olhares cheios de medo, quase sem compreender. Eu nem me virei para trás a fim de ver o que tinha acontecido. Em segundos o motorista parou e nós descemos. Tomei uma rua paralela e me enfiei de novo com ela no primeiro ônibus que passou, para ganhar distância.

Camila estava perplexa. Observava-me de soslaio e, vendo meu semblante pouco convidativo, não fez qualquer pergunta. Só no final do dia arriscou:

— Mas o quê que aconteceu, Eduardo??! Por que você fez aquilo com o cara?!! Vai ver você matou ele e ...

— Não! — Respondi categoricamente e ainda de mau humor. — Ele não morreu, não! Essa gente tem a cabeça dura. E ele veio e raspou a mão na sua bunda, você ficou quieta!

— Pôxa, Eduardo, acho que foi sem querer!

— Sem querer coisa nenhuma, você é que é muito inocente! Foi de propósito. E pelo sim, pelo não, tomou!

Uma outra vez nós descemos no ponto perto da casa dela, Camila na frente e eu atrás. Assim que ela passou um homem que estava ali parado esticou o pescoço para dar uma cheirada nela. Eu vi muito bem, foi ostensivo. Eu desci e dei-lhe uma ombrada generosa acompanhada de um monte de palavrões:

— Porque você não vai cheirar (...)!???

Camila apressou o passo assim que viu que eu estava armando rolo. O cara estava com um cano de escapamento na mão e partiu prá ignorância, tão furioso ficou. Veio prá cima de mim. Eu já esperava de mão na arma. Tirei o revólver e dei dois tiros para o alto. Ele ficou branco de tanto susto, saiu espavorido. Uns três ou quatro que estavam no ponto também, fugiram completamente em pânico. E eu sumi o mais depressa que pude, aproveitando que Camila já estava longe.

Em cinema era outro problema. Parecia sina, mas perto de nós sempre tinha aquele tipo de gente que não pretende calar a boca. Eu tentava me controlar ao máximo, mas de repente acabava estourando de uma vez. Um dia catei um rapazola pelo cabelo e encostei o canivete aberto na garganta dele.

— Cala essa boca senão você volta furado para casa! — E dei-lhe um safanão tão grande que ele voou de cara no banco da frente e ficou mudo. O resto do bandinho irrequieto que estava com ele também. Depois de alguns minutos sorrateiramente foram sentar-se lá na frente.

Restaurante às vezes também era um problema. Uma vez fui com Camila jantar num lugar bastante agradável, bem freqüentado, familiar. Mas o garçom não nos deu a atenção que merecíamos para um lugar como aquele. Reparou que eu era um garoto cabeludo e mal vestido, e normalmente as pessoas julgam pela aparência.

Eu não queria encrencar, de verdade! Deixei passar o pouco caso do garçom porque estava de muito bom humor. Aquela grana tinha vindo muito fácil. Eu, o Éder e o Márcio assaltamos um “veadinho” que mexeu com a gente no ponto de ônibus. Ele vinha num tremendo cairão e vimos na hora que o cara tinha dinheiro à rodo. Eu e meus amigos trocamos uns olhares rápidos e entramos no carro dele, aparentemente dispostos a tomar o chopinho que nos foi oferecido. Foi questão de minutos e o Éder encostou o cano na cabeça dele. Realmente ele tinha grana. Deu uma boa quantia para cada um.

Eu e Camila comemos muito bem e gastamos uma nota no jantar.

Quando veio a conta observei que haviam sido cobrados dois “couverts”. Só que na mesa ao lado um senhor sozinho recebera a mesmíssima quantidade de “couvert”. Logo não havíamos consumido dois, mas um apenas. Apesar da cara de ovo do garçom que nos atendera, paguei sem questionar os muito pouco merecidos dez por cento. Mas só um “couvert”.

Levantamos e fomos saindo quando o garçom veio todo apressado atrás de nós.

— Você esqueceu de pagar um “couvert”! — Veio dizendo sem maiores preâmbulos.

— Não esqueci, não. — Respondi. — A quantidade servida foi idêntica à da mesa ao lado, que só tinha uma pessoa. Portanto, pago pelo que comi. Vocês só serviram um, pago só um!

O gerente já veio se aproximando e questionando no mesmo tom estúpido. Então me enfezei. Arranquei a pastinha aonde estava o meu dinheiro da mão do garçom:

— Pois agora não só não pago o “couvert”, como também não pago dez por cento. Isso não é maneira de tratar um freguês, eu já fui mal atendido que chegue neste lugar! — Retruquei já elevando o tom de voz e retirando a quantia correspondente aos dez por cento.

Camila caminhou apressada na frente, prevendo a confusão.

— Nós vamos chamar é a polícia!!!

O gerente ficou furioso e o garçom ameaçou de me bater. Nem bem ele deu um passo e saquei a arma da cintura, de maneira que só eles a vissem e não todo o restante do restaurante que já desviava o olhar na nossa direção. Diante da arma o garçom deu meia volta e o gerente se enfiou que nem um rato atrás do balcão.

— E querem saber do que mais?! — Urrei para que ouvissem bem. — Podem chamar a polícia com razão agora, porque não vou pagar é coisa nenhuma!!!

Peguei todo o dinheiro de volta, joguei longe a pastinha e saí louco da vida. Na raiva virei de ponta cabeça uma mesa com pratos, copos, talheres e tudo o mais, no maior estrondo. Perto da porta tinha um belíssimo aquário, enorme. Pensei em atirar nele para causar mais estrago, mas fiquei com dó dos peixes.

Nem bem me vi na rua tratei de sumir rapidinho. Eu sabia que Camila já devia estar à caminho de casa porque era esse o combinado: se pintasse confusão ela deveria me deixar e voltar sozinha para casa. Eu a encontraria lá assim que pudesse. Ela já estava se acostumando com a coisa!

Camila também vivia se assustando com os meus amigos da “29”. Ela conhecia um ou outro de vista, mas o grupo era grande demais. Um dia eu estava distraído olhando uma loja de videogames quando ela me puxou assustada, segurava o meu braço, cochichando:

— Edú, aqueles caras vão assaltar a gente, eu tenho certeza! !! Estão olhando muito para cá.

Mas não era assalto, não! De repente, ao me virar o Éder e o Júlio me pularam nas costas, gritando:

— Aeh, Catatau! Continua andando assim distraído que você já era, meu irmão! E se a gente fosse inimigo?!!

Normalmente eu estava super-atento mas a turma tinha esta mania boba de um querer pegar o outro “pelas costas”. Só para poder contar depois:

— É...hoje o Catatau estaria morto...

Camila só olhava. Ainda assim nosso relacionamento podia ser considerado legal. Com um pouco de boa vontade mútua acho que dava para chegar a algo... de valor! Sei que ela se esforçou. E pode até parecer que não, mas eu também.

***

Eu havia de ter melhorado namorando com Camila. Pelo menos, teoricamente falando. Afinal eu estava convivendo com uma família de cristãos e até “freqüentava” a Igreja, ainda que o Culto não fosse a melhor coisa do mundo.

Mas havia algumas coisas legais na convivência com eles. Parecia que eram mesmo diferentes. Tocavam discos de Louvor em casa (não do “Cantor Cristão”, eram grupos de música Evangélica mais aceitáveis aos meus ouvidos). Também oravam para comer, procuravam me tratar bem.

Eu havia ganho as Bíblias e até comecei a dar uma lidinha, uma folheada aqui e ali. Afinal eu gostava de ler. E juntou com a minha curiosidade em ir atrás de tudo quanto era seita, e denominação, e religião. Talvez valesse a pena dar uma xeretada na Bíblia que falavam tanto, faziam tanta questão.

Mas, aos poucos... comecei a ver melhor os “bastidores” da família. Difícil dizer o que começou a pegar primeiro. Foi uma sucessão de pequenos fatos.

O pai dela era um homem que, via-se, tinha muitos problemas. Apresentava sempre um olhar distante, falava pouco e era extremamente abrutalhado. Difícil acreditar que um homem como aquele pudesse conseguir alguma coisa da vida. Mas apesar disso a casa onde moravam era grande e boa, os móveis estavam novos e tinham excelente qualidade. Pensei comigo mesmo:

— Pôxa...Deus abençoa mesmo!

Soube que seu Augusto tinha trabalhado numa Empresa mas como ele não queria ser subalterno de ninguém, saíra para abrir seu próprio negócio. Tinha agora uma firma e, pelo que Camila me havia contado, fazia serviços de despachante.

Seu Augusto tinha pensado que ganharia muito dinheiro com aquilo mas comecei a perceber que não era bem o que acontecia. Às vezes estava tudo bem, às vezes faltava até para a comida. E isso já vinha de longa data. Lembrei-me das ocasiões em que Camila não tinha um centavo, e de como era freqüente ela estar com fome na escola.

Comecei a me questionar como eles faziam para pagar o aluguel e as contas. Tudo bem que caía maná lá na Bíblia, mas este é o mundo real!

Logo descobri que o maná caía mesmo, mas não era do céu. Camila me contou: a casa fora cedida por uma prima rica, na condição de que eles cuidassem da avó. Os móveis elegantes também vinham da mesma parenta, que os trocava todos os anos. Até a TV, o som, a geladeira, os eletrodomésticos, as camas, tudo era oferta desta tal prima. Ela era casada com um físico nuclear bem sucedido, e diretora de um abastado Colégio Cristão. Por causa disto seu Augusto estava há quase vinte anos sem pagar aluguel. Nem impostos.

A princípio nada de mais, afinal se os cristãos não se ajudarem entre si, que será?

Mas comecei a achar tudo muito estranho. A única obrigação de seu Augusto era pagar as contas e dar um mínimo de condições à família. Mas ao longo dos meses fui vendo cada uma.....!  Quase tudo o desabonou demais como cristão. Tinha um caráter que deixava muito a desejar.

Como dinheiro era sempre o problema, Seu Augusto chegou a falsificar cheques da irmã mais velha de Camila, a Kelly, e sujou o nome dela na praça. Comprou um presente de casamento para o Pastor Sérgio com um cheque do próprio filho dizendo que iria cobri-lo, tão logo recebesse. Mas vi com meus próprios olhos o nome do Pastor indo a protesto também. Até eu, mais tarde, viria a experimentar golpes monetários dele. Era quase um estelionatário!

A mãe de Camila, Dona Carmem, era boa. Procurava esforçar-se ao máximo para contornar os períodos de vacas magras. Tinha uma incrível criatividade na cozinha.

Uma vez só havia ovos e eu a vi fazer um omelete todo diferente, com queijo, que parecia uma pizza. Mas tinha dias em que eu chegava e realmente não havia nada para comer. Nada mesmo. Nem ovo. Os cachorros emagreciam a olhos vistos, viravam pele e osso. Muitas vezes eu próprio comprei ração. Ficava com dó de vê-los tão mal, eles não tinham culpa!

Fui conhecendo aos poucos a família toda de Camila, e nessa cruzei com as duas irmãs de Dona Carminha, Tia Malva e Tia Rita. As três não se davam de jeito nenhum, literalmente se odiavam. Eu achava difícil conciliar aquela atitude extrema com o que me ensinavam acerca da Bíblia e de Jesus.

Dona Carminha falava muito da Bíblia, literalmente enganchava um assunto no outro. Às vezes eu tinha até medo de fazer qualquer pergunta que pudesse estimular o assunto!

Mas pior do que tudo era o Pastor. Ele sempre me pareceu um falso desde o início. Quando percebi que nem ele e nem ninguém mais orava antes das refeições, vi confirmar-se diante dos meus olhos o que já sentia no íntimo: agora eu era da casa e portanto estavam dispensadas as “formalidades”. Mas como ele hospedava muita gente notei que, quando havia alguém “de fora”, voltavam a orar até para tomar uma xícara de café!

“Que belo jogo para a assistência!!!”, refleti.

Outra coisa que me chamou a atenção negativamente foi assistir ao “namoro e noivado” do Pastor. Eu ficava constrangido perto deles, tão grande era o “amasso”! Na frente da família, da mãe, das irmãs e de quem quisesse ter saco de ficar por perto. Eu, que não era Pastor e não tinha nenhum nome a zelar, não fazia diante dos outros o que ele fazia com aquela namorada. Para mim era nojento. Tem coisas que só ficam bem entre quatro paredes!

Mas sinceramente o conceito foi a zero um dia em que ele teve a brilhante idéia de comentar, no meio do almoço, acerca da sua última “proeza”. Tinha visto um filhote de gato dormindo no jardim e soltara os dobermanns em cima do pobre animalzinho, para “ver o que acontecia”. Naturalmente que o gatinho foi estraçalhado e aquilo para ele era muito engraçado, a julgar pelas risadas e o ar de satisfação. E ele dava aulas para crianças na Escola Dominical!

Não me contive:

— O que será que os seus alunos de Bíblia vão achar deste seu ato tão cheio de amor e carinho?!

Já a Kelly me irritava profundamente. Assim como todos deixaram de fingir e logo começaram a mostrar “a outra face”, ela também não foi exceção. Tinha inveja clara de Camila e de mim. Aonde nós estivéssemos e ela achava um jeito de vir incomodar. E era incomodar mesmo, ela queria ser chata!

Se estávamos conversando no quarto ela aparecia com a intenção de arrumar as roupas, afinal o quarto era dela também! E tirava tudo do guarda-roupa para começar a colocar de novo. Se a gente saía e ia para a sala, ela inventava que a arrumação ficava para depois e vinha ver TV. Íamos para a cozinha, e Kelly atrás, visivelmente disposta a encher o saco:

— Vou fazer um bolo!

Se a escolha fosse o jardim não dava outra, logo ela estava por lá também. Era muito irritante! Parecia louca.

Aparentemente o único propósito da sua existência era ajuntar dinheiro para viajar e gastar tudo!

Naquela época ela já era bem uns dez anos mais velha do que Camila e namorava um cara que nem bem olhei e vi que era um tremendo cafajeste. (Diga-se de passagem que eu sabia reconhecer um). Nem bem chegava na casa dela e já se espalhava no sofá todo folgado, com a camisa aberta, fumando.

— Nossa... esse cara é um pilantra!

E era. Ele teve a manha de marcar o noivado e não aparecer! Isso eu assisti com meus próprios olhos. A família toda se preparou para o grande dia, fizeram docinhos, salgadinhos, a mãe dela comprou flores para oferecer à mãe dele... e neca! O sujeito não deu as caras, largou todo mundo a ver navios, nem deu satisfação. Isso aconteceu três vezes e nem assim ela largava mão do tal Bóris! Na última vez ele até chegou a ir. Sentou, comeu. E por fim perguntaram:

— Bom, cadê a aliança?

— Opa!.... Esqueci! — Respondeu com a maior cara lavada. —Vou buscar e já venho.

Saiu e não voltou mais! E ainda largou a mãe dele lá. A coitada não sabia aonde enfiar a cara.

Eu não conhecia realmente os princípios da Bíblia, mas instintivamente ficava difícil acreditar que o Deus a quem cultuavam pudesse estar aprovando uma união como aquela. Enfim... não era da minha conta, a vida era dela. Mas se fosse só isso...

— Eu vou me casar com ele sem noivar mesmo! — Decidiu por fim a Kelly.

Ficou então acertado que eles iam casar e morar num quartinho na casa da mãe dele. A própria Kelly comprou todos os móveis de quarto com o dinheiro dela. Quando o Bóris viu que o negócio era prá valer, deu o ultimato.

— Eu não vou casar, não! — E veio a confissão que para mim era óbvia desde o início. — É que eu tenho outra.

Todo mundo ficou sabendo que ele tinha outra, inclusive os pais dela, mas Kelly topava ser a amante. Era o que ela tinha sido desde o início mesmo, e ia continuar sendo.

E o irmão mais velho, o Sálvio, que era casado, vivia apertadíssimo com problemas freqüentes de dinheiro.

Diante de tudo o que eu estava vendo comecei a achar que Deus não abençoava tanto assim. A desestrutura familiar era completa. Minha família era até que boazinha quando comparada à de Camila. Mas nas datas especiais, eles mantinham as aparências e tentavam fazer a política da boa vizinhança. Tudo acabava girando em torno da avó e o objetivo era evitar que ela se decepcionasse. Mas só. Não era porque realmente eles achassem que fosse melhor conviver bem, do que mal.

Fiquei um pouco decepcionado no começo. Era tudo fachada, uma falsidade só. Mas depois não liguei mais.

***

Quando comecei o quarto ano de Química resolvi matricular-me também no curso técnico de Administração de Empresas, à noite. Fiquei sabendo que poderia eliminar várias matérias básicas que já tinha feito, e condensar o curso de tal maneira que o concluísse em dois anos ou um pouco mais. Era vantagem. Se pegasse bem firme no começo tudo daria certo porque o quarto ano da Química era bem tranqüilo, com menos carga horária justamente para incentivar os estágios.

E eu decididamente estava cheio do curso de Química, bem certo de que não queria nada com aquilo. Tratei realmente de ir atrás de outra coisa.

Naquela noite, no dia da matrícula, eu estava preenchendo a minha ficha debruçado sobre o balcão quando senti alguém me beijar na nuca, por trás. Voltei-me. Era Thalya!

Ela se pendurou no meu pescoço, pulou em cima de mim, me abraçou com força.

— Oi, Edúúúú!!!

Feliz reencontro. Descobrimos que estávamos agora na mesma escola, e até fazendo algumas matérias em comum. Formada no colegial convencional Thalya matriculou-se no primeiro ano do curso de Publicidade. E teria diversas matérias junto com a minha turma!

Saímos dali e fomos direto para uma pastelaria ali pertinho. Conversamos até cansar, preenchendo aquela lacuna de mais de um ano e retomando a amizade exatamente no ponto em que parou, como se nunca houvéssemos nos afastado. E tudo realmente acabou voltando ao que era. Ou quase.

Eu expliquei que estava namorando há cerca de um ano e pouquinho, e para bom entendedor meia palavra basta. Pelo menos deveria bastar.

— Nem bem virei as costas e você arrumou outra, heim? —Thalya dava risadinhas maldosas.

— Você sabe que nunca fomos namorados!

Mas naquela noite mesmo, mais tarde, Thalya deu uma de “desentendida”. Não fizemos nada tão terrível assim, mas eu não pretendia repetir a dose se tinha intenção de continuar com Camila. E eu tinha intenção de continuar, sim, porque minha opinião com relação à Thalya não tinha mudado. Eu jamais poderia confiar nela.

E não seria justo com Camila!

Mas como era difícil resistir àquela loira! Thalya era provocante demais e estava mais linda do que nunca. Só que eu ainda estava a fim da minha namorada. Deixei claro, nas entrelinhas, que o deslize não ia se repetir.

***

Era uma sexta-feira à noite. Tirei o protetor do rosto primeiro. O suor escorria em bicas. Olhando de relance para o espelho reparei que meu rosto estava mais vermelho que de costume e meu cabelo, preso num rabo-de-cavalo, estava grudado e ensopado. Voltei-me para o Paulo, um negrão taludo que também jogava longe o capacete e o protetor de boca, não em melhor estado do que eu. Visivelmente cansado passou a retirar os protetores peitorais. Eu fiz o mesmo. Encaramo-nos mutuamente:

— Bom... — Fizemos os dois ao mesmo tempo.

Aquilo quebrou o clima ligeiramente tenso. Sorri abertamente para ele e estendi a mão.

— Toca aí, cara! Valeu!

Ele apertou com força minha mão puxando-me perto para dar uns tapas amigáveis nas costas.

— Não vai acostumando, não! Mas vamos decretar empate desta vez, OK? — Falou ele estendendo o dedo próximo ao meu rosto.

— Qualé que é, meu irmão? Você tem que comer muito feijão prá me vencer, cara! — Retruquei eu, já fazendo a reverência e saindo do tatame.

— Você é que tem que comer feijão!

Continuamos conversando a caminho do vestiário. A ADINK já estava praticamente vazia. Somente o rapaz da secretaria parecia ainda atrapalhado com algumas pastas, mas também preparava-se para dar o dia por encerrado.

— Tchau, tchau! — As duas mocinhas da recepção acenaram para nós, já de mochilas às costas.

Respondi com um abano da mão esquerda, nem respondi. Estava cansado demais. Fazia já um tempo que eu e o Paulo estávamos combinando um combate “até a morte”. Ou seja, até alguém pedir arrego! Resolvemos por em pratos limpos a “rixazinha” amistosa e acabamos encarando aquela logo depois do treino da noite.

Lutamos ferozmente durante mais de quarenta minutos. E como nenhum de nós desistisse, optamos pelo empate quando a exaustão começou a ser demais. O clima de competição por vezes era salutar e estimulante. Eu costumava dizer aos meus alunos:

— Minha vida é o Kung Fu. Vou lutar até o último dia da minha vida. Melhor seria se eu pudesse morrer lutando. Sem dúvida, taí uma grande honra.

E eu acreditava no que dizia.

Não passou muito mais tempo e logo minha dedicação e empenho foram coroados com mais uma conquista. Numa certa altura um Professor de fora da ADINK veio dar um curso de nunchaku. O nunchaku não era uma das armas clássicas do Wing Chun e por isso a maioria não tinha bom domínio dela, principalmente quem se dedicava somente àquele estilo.

Mas eu tinha. Tinha um domínio tremendo! Não só por causa dos outros estilos que praticava mas também porque muita coisa eu aprendia sozinho. Assistia aos filmes de Arte Marcial reproduzindo vezes sem conta os movimentos, quadro-a-quadro, até aprender os mais diversos truques diretamente com Bruce Lee e Jackie Chan. Depois acabei comprando também um livro de nunchaku. E treinava diuturnamente.

Mesmo assim fui fazer o curso na intenção de me aprimorar ainda mais. O Professor era bom mas, ironicamente, não tanto quanto eu. Ele foi sincero em observar:

— Não sei o que você está fazendo aqui! Você é que devia estar dando o curso! — Brincava ele.

Eu apreciava aquele desprendimento. Às vezes, durante as seqüências livres, ele reparava em algum movimento que eu fazia e ele não conhecia.

— EI! Espera aí! Como é que você faz isso?!

Eu mostrava. Trocamos muita figurinha durante aquele período. E os outros alunos repararam. Quando o tal curso acabou, após um mês, a história já tinha repercutido e apareceu mais gente interessada em aprender nunchaku. Os próprios alunos foram à secretaria da ADINK pedir autorização para que eu mesmo pudesse dar um novo curso.

O Professor responsável pelo primeiro curso tinha me dado nota máxima no diploma e me elogiado bastante perante os meu Mestres. Considerou-me perfeitamente habilitado para ensinar nunchaku embora não fosse ainda Professor. A ADINK era absolutamente rigorosa nestes aspectos burocráticos e hierárquicos, mas diante daquilo o Mestre responsável aprovou o curso.

Eu me dava muito bem com todos. Apenas um achou de implicar comigo, um Professor de nome Ricardo. Ele não gostava de mim, e era recíproco.

— Essa história de você dar aula não está certo. Você não é Professor!

— Se você puder manejar nunchaku melhor do que eu o lugar é seu. — Retruquei sem papas na língua. — Vá reclamar com quem aprovou o meu currículo!

E isso ele não podia fazer, de sorte que acabei ficando com um horário fixo todos os sábados pela manhã. Três horas de treino. Na verdade o curso não era só de nunchaku. Passei a dar “Armas”, e o tempo preestabelecido foi de três meses. Ensinava nunchaku, bastão longo e bastão curto.

Os alunos da primeira turma adoraram. Diante do bom resultado o curso acabou tornando-se vitalício. Havia filas de espera, pois só matriculavam-se trinta de cada vez. Logicamente o lucro para a ADINK era tremendo porque os alunos pagavam à parte; e volta e meia a Academia subia ainda mais o preço. Quanto a mim, me rendia uma grana extra muito boa.

Mais tarde, conforme me destacava nas aulas, às vezes era escalado para substituir algum Professor. Geralmente nos sábados à tarde. Não era sacrifício nenhum, pelo contrário. Eu sempre treinava como se fosse a última coisa que eu pudesse fazer na vida. Não raro vinha lá com meu programa todo escritinho meticulosamente em um papel. E enquanto eu não acabasse não saía da Academia. Não cumprir o treino era um desastre inominável!!! Por exemplo, às vezes eu tinha que treinar perna: 300 chutes semicirculares com cada perna no saco de pancada, com caneleiras de 2 quilos em cada uma. E fazia. Quando tirava as caneleiras não podia nem andar. Sempre fui meio exagerado!...

Camila começou a gostar menos ainda daquela “moda”. Não aceitava que eu gastasse todo o meu sábado com aquilo e só pudesse estar com ela à noite. Mas para obter algum resultado era preciso muita disciplina. E isso de fato nunca me faltou, pelo menos em se tratando do Kung Fu.

***

Uma vez por semana eram convidados preletores para dar palestras teóricas aos alunos e numa destas ocasiões quem estava lá para falar? Nada mais, nada menos do que meu primeiro Mestre de Wing Chun, o Ageu!

Foi um feliz reencontro, nos abraçamos e fomos tomar um refrigerante na lanchonete da Academia depois da Palestra.

— Você cresceu, heim, Eduardo? Está muito bem! Com uma forma física muito boa. Estou muito satisfeito em ver o progresso do meu antigo aluno. Quando vai fazer o exame na Federação?

— Logo, logo! Não vejo a hora. O exame da ADINK já está marcado. — Antes de ser selecionado para fazer o exame de faixa preta na Federação era preciso ser aprovado pela própria ADINK. Não podia me inscrever ao meu bel-prazer, apenas meu Professor poderia fazê-lo.

— Desde o início eu vi que você ia longe. Que bom que você não desistiu! E a velha Academia?

— Ah, passou, né? Não estava mais dando tempo. Agora estou aqui e na W.Wei, treinando Ton Long!

— E uma Academia quase tão conceituada como a ADINK.

— Você sabe que eu passava sempre em frente à ela? Estava sempre cheio de gente. Um dia resolvi entrar para dar uma espiada no treino deles. Acredita que foi justo num dia em que os caras estavam fazendo um “treino fechado”, e eu não pude entrar?! Fiquei fissurado prá ver. Voltei, conversei com o Mestre e resolvi começar. Precisa diversificar, né, Ageu? Senão a gente se limita muito numa coisa só. Eu ia estagnar, ia deixar de progredir. Logo, logo vou fazer teste me candidatando para ser instrutor de Ton Long!

— Estou voltando à ativa aqui em São Paulo. Vou dar aulas aqui! Venha ser meu aluno de novo até você se formar. Vai ser uma honra!

E fui mesmo. Tinha muita consideração por tudo o que o Ageu já tinha feito por mim.

Logo chegou o exame para ver se poderia candidatar-me ao Teste na Federação. Fui bem, a maioria considerou-me apto. O único voto contra foi o do Professor Ricardo, que continuava não indo com a minha cara por causa do curso de armas. Mas o voto dele não valeu de nada.

Até lhe disse isso, mais tarde, esquecido propositalmente dos meus bons ensejos de ser um “Mestre”:

— Como você pode ver, a sua palavra e cocô de vaca é a mesma coisa!

Ele me odiava! Mas teve que calar a boca.

***

No dia do exame eu estava bem preparado e confiante. Começaram com o teste teórico, que achei fácil.

Depois veio o teste físico, no qual também não houve dificuldades, apesar de muito intenso. O teste técnico foi o mais difícil. Lutei muito. Mesmo com os protetores podia-se sentir o impacto forte dos golpes. O Wing Chun por si só já era um estilo violento. Levei e bati muito. Foi uma pancadaria só.

Cheguei em casa moído, mas feliz. O resultado seria mandado direto para a ADINK e eu acreditava ter me saído bem. No dia seguinte os hematomas começaram a aparecer por todo o corpo, não havia como escondê-los. Eu mesmo preparava um ungüento à base de ervas que tinha aprendido com os meus Mestres. Podia parecer força de sugestão mas aliviava bastante a dor.

Meu pai era o mais revoltado com o meu estado: — Você está parecendo um dálmata! — Reclamou, observando-me colocar ungüento nos hematomas piores e enfaixá-los.

— Estou acostumado. — Respondi. — Não tem nada de mais! Faz parte.

E quando chegou o resultado fiquei muito satisfeito! Minhas notas foram boas e haveria uma pequena cerimônia na Federação para a entrega das faixas.

O exame tinha sido fechado, mas a cerimônia não. Mesmo assim ninguém de minha família foi. Camila também não se deu ao trabalho. Eu não receberia aplausos deles por aquela conquista. Não tinha o menor valor.

Recebi a faixa preta e a graduação de “Professor em Wing Chun”. Além do registro na Federação, a cada um de nós foi dado também um pingente com um nome chinês inscrito nele. Agora nós entrávamos para a genealogia daquele estilo, fazíamos parte da família que dera origem ao Wing Chun. Nosso novo nome era o que estava no pingente.

O próximo passo seria tornar-me Professor efetivo da ADINK. Aquilo seria muito bom para mim. De fato foi o que aconteceu, rapidamente. O fato de ter o registro e o título não queria dizer que automaticamente eu já era Professor da Academia. Foi preciso submeter-me à uma nova prova física e técnica específica para os candidatos a Professor.

Um dos dias mais alegres de minha vida até então foi quando recebi a aprovação. Agora eu poderia ensinar Wing Chun de verdade! E como eu já era conhecido e respeitado por causa do curso de armas, meu horário lotou. Comecei a ganhar um dinheiro melhor ainda nesta época.

***