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Capitulo VIII
Capitulo VIII

Capítulo VIII

Eu já não agüentava guardar aquilo só para mim. Resolvi contar para Thalya, afinal, quem mais???

— Escuta... — Comecei. — Tenho um negócio tremendo para te contar!

— O quê, Edú?

Tirei da mochila um monte de envelopes iguais, cartas que eu vinha recebendo havia alguns meses. Estendi uma delas com orgulho:

— Olha só para isso aqui, tá vendo o carimbo?

— São Francisco? Califórnia?! Pôxa, quem você conhece que mora lá, heim?

— Por enquanto ainda não conheço ninguém... — Abri um dos envelopes cor de creme. Tirei de dentro o conteúdo e questionei:

 Você já viu este logotipo em algum lugar?

Thalya tomou nas mãos a folha de papel amarela, grossa, que mais parecia uma espécie de “papiro”.

— Que bonitas estas letras! Parece uma escrita gótica, né?

— Mas e o logotipo, você conhece?

— Caramba! Isso aí representa um bode, eu vi em algum lugar... não é um símbolo de Magia Negra?

O Pentagrama estava bem desenhado no alto da página, em vermelho vivo, grande.

— É, é isso aí mesmo! Reparou bem no destinatário das cartas?!

— São todas para você, já vi. O que que é isso, Edú? Puxa, são mesmo bonitas estas letras! — Ela começou a ler o texto.

Esperei que terminasse.

— E então, o que você acha?

— Gostaria de saber aonde é que você arranjou isso!

— É uma história meio comprida, não contei para ninguém.

Thalya limitava-se a me olhar, esperando pelo que viria.

— Bom... durante as últimas férias, um pouco antes da gente se reencontrar na escola, eu tive muito tempo para estar na Biblioteca. Fazia tempo que não dava um role por lá, estava com um monte de coisas acumuladas que queria ler. Um dia, lá no Centro Cultural, descobri uma coleção de enciclopédias, umas doze...e comecei a dar uma olhada em vários assuntos que me interessavam. Foi aí que eu descobri um artigo da hora. Olha, eu nem sabia que esse negócio existia!

Ela só escutava.

— Era um artigo que falava de uma tal de “Church Satan”, uma espécie de igreja que cultua o diabo, ou coisa que o valha. O artigo não explicava muito, era vago, mas apresentava o atual líder mundial da associação e contava um pouco sobre as origens dela. Ah, tinha também uma lista com os nove princípios dessa tal de “Church”. Me chamaram muito a atenção... dá prá imaginar que possa haver algo como isso?!! Só que terminava por aí, não tinha mais nada para ler, nada que me acrescentasse outras informações. A não ser a localização da igreja.

— São Francisco, Califórnia!

— É. Mas não tinha o endereço mesmo. Fiquei curioso e louco para descobrir no que pensa essa gente. Afinal, nós já vimos de tudo um pouco por aí, né? Não ia fazer mal conhecer um pouco mais. Então lembrei que talvez fosse possível descobrir alguma coisa no Consulado dos Estados Unidos. E foi o que eu fiz, no dia seguinte mesmo. Bem cedinho, pintei por lá.

Lembrei-me com um sorriso do rosto e da reação das moças na recepção. Fui obrigado a deixar quase tudo o que eu trouxera com o segurança porque minha mochila estava cheia de coisas impróprias para o lugar: nunchaku, faca, canivete, corrente, estilingue. Só pude entrar com o caderno e os livros que trazia. Mas fui bem tratado e atendido na minha solicitação. Apesar de acharem o meu pedido muito estranho.”Igreja satânica, é?...”, me perguntou a mulher. E fez uma cara! Foi até engraçado!

— Mas acabei conseguindo o endereço através dos microfilmes das listas telefônicas. Levou alguns dias, eles até já estavam se acostumando comigo. Mas achei! De repente dei de cara com o logotipo e copiei o endereço. Daí foi só escrever perguntando mais sobre o assunto.

Thalya estava espantada:

— E eles te responderam! Que barato!!! — Tornou a pegar o  papel. — Isso aqui são os tais dos nove princípios que você falou, pelo que parece, não?

— São, sim! Vieram na primeira carta. Olha aqui!

— Mas está em inglês!

— Para você pode não ser problema, mas eu tive dificuldade em traduzir sozinho. Quando chegou a primeira fiquei tão fora de mim, tão eufórico que esqueci completamente do último ensaio geral para uma apresentação importantíssima! Quase fui comido vivo pelo meu Mestre e expulso do Academia! — Recordei. — Ele quase que só faltou me bater de verdade.

Thalya dava risada.

— Caramba, prá você esquecer do Kung Fu sinal que o negócio mexeu mesmo com a tua cabeça!

— E não é prá mexer?!! Mas o mais incrível é que eu pedi que me escrevessem em português e eles escreveram! Logo na segunda carta já veio direitinho!!!

Thalya começou a xeretar em tudo enquanto eu explicava em poucas palavras o conteúdo das diversas cartas.

— Pelo que me pareceu, não são propriamente uma “igreja” mas uma Sociedade que, como eles mesmos dizem, estuda o Oculto. É fascinante, faz a gente pensar. Por exemplo, religião quer dizer “re-ligar”, certo? O objetivo das religiões é religar o homem com Deus, mas se é preciso religar é porque houve o afastamento. Eles sempre fazem muitas perguntas. Depois que falaram de diversas religiões me perguntaram se eu achava que o mundo podia existir sem a religião.

— E o que você respondeu?

— Bom, eu disse que não. Que o ser humano tem essa necessidade. De ter algo em que crer. A resposta deles foi diferente: “Quem foi que disse que o homem tem que ter religião?”. Todas as religiões tentam alcançar Deus por meio de muitos rituais, sacrifícios, penitências... será que não haveria um deus que sempre esteve conosco, que nunca nos abandonou... e portanto não há necessidade de “religar”? Simplesmente pelo fato de que não houve afastamento?

Thalya ficou pensando:

— Mas será que existe esse deus?

— É! — Eu estava empolgado. — Alguém que esteve e está perto, sempre esteve, alguém para quem não seja necessário oferecer jejuns, nem seguir o caminho das torturas ou das penitências. Nem passar horas, dias inteiros em meditações intermináveis ou fazendo “boas obras”; ou peregrinações à Meca. Compreende?!

Ela fazia que sim com a cabeça, escutando.

— Isso é diferente de tudo o que eu já ouvi. Para se aproximar de Deus tem sempre que fazer alguma coisa, eu acho...

— Eles fizeram uma analogia muito interessante na última carta. Disseram que a nossa sombra está sempre conosco, em to

dos os lugares, mesmo que a gente nem se dê conta dela. Só que ela é escura por natureza. Mas, mesmo assim, sempre está perto, nunca sai de perto.

— A não ser no escuro! No escuro não tem sombra.

— Não é bem assim, você sabe que o escuro não é um escuro absoluto, existe a luz infravermelha que nós não enxergamos mas que está lá, no escuro. Portanto a nossa sombra também está presente no escuro.

— Hummm...acho que entendo o que eles querem dizer.

— Em suma, existe um outro deus, um deus “oculto”, pouco conhecido na sua essência. Que nunca deixou de estar do nosso lado e, portanto, não existe necessidade da chamada “religião” para chegarmos até ele. Chegamos a ele de alguma outra maneira...

 Parei para pensar um pouco. — Que maneira será essa? Você já ouviu falar em contato espiritual sem entrar com religião no meio?! É estranho e diferente, né?

— Concordo...

— Só que tem uma coisinha, que foi deixado bem claro logo na primeira carta: Satanismo não é para todos. É apenas para os escolhidos, para os que vão saber receber, compreender e dar valor.

— E você foi escolhido?

— Sei lá! Por enquanto eles têm me mandado as cartas, feito montes de perguntas que gasto muito tempo pensando nas respostas. Eles apresentam alguns pontos de vista diferentes, coisas que a gente não escuta por aí todo dia mas que, no fundo, acho que eu entendo.

Mas como assim?

— Ah... difícil explicar. Acho que tenho que te apresentar para o meu vampirinho!

— Que vampirinho?!!

— Um personagem de história em quadrinhos que criei há muito tempo. — Parei um pouco, com a mão no queixo. — Você já parou para pensar... que pode ser que o Mal não seja tão mal assim... e o Bem, não tão bom assim? É por aí, sabe? Como o meu vampirinho. É uma questão de essência, de natureza. Acho que é mais ou menos isso o que eles querem me dizer. Talvez seja só uma questão de referencial!

***

O “Mingau” foi rolando.

O “Mingau” era a domingueira do clube Palmares, uma espécie de baile aonde tudo podia acontecer. Eu costumava ir às vezes com a turma, mas raro foi o “Mingau” que terminou sem Pau. E naquele dia não ia terminar mesmo! Eu estava ali com cinqüenta caras da “29” e da “Rifânia” prá um acerto de contas muito sério. O rolo tinha sido armado por minha causa, mas a turma adversária tinha folgado primeiro e com muita covardia.

Ficamos sabendo que eles costumavam estar no “Mingau” e marcamos a desforra surpresa para aquele domingo. Enquanto não acertasse as contas era capaz de nem dormir!

Eu perambulava por ali, no salão de dança enorme, bebendo moderadamente com meus amigos. Todos tínhamos que estar sóbrios! Rodamos um pouco e não encontramos ninguém. Mas eles iam aparecer! Fomos aproveitando e só aguardando. Estava lotado!

À certa altura saí do salão e dei de cara com o bando todo! Eles estavam logo ali, perto da lanchonete, sentados em duas mesas juntas, bebendo. Fui que nem bala na direção deles, já sentindo o gosto do ódio na boca. Parei ao lado da mesa, apoiando as mãos sobre ela:

— Oi.

— Ah! — Fez um deles. — É você, seu palhaço?! Você escapou aquele dia mas hoje vai morrer!

— É? Tá bom! Vocês, pelo visto, vão ficar aqui mais um pouco, né?

Voltei para o salão. Era muito fácil arrebanhar o pessoal. Bastava um toque no ombro do primeiro acompanhado de um “tá na hora”. Quem recebia o aviso passava adiante e em poucos minutos o comando se espalhava. Todo mundo largava imediatamente o que estivesse fazendo.

Fomos chegando, cercando, e quando eles acordaram já era tarde! Armamos uma roda em volta deles. Estavam encurralados no meio que nem ratos. Eu me adiantei e dei o comando:

— São estes os caras.

O Éder ainda vociferou:

— Vocês são covardes demais!

— Vocês estão é falando muito... — Cuspiu o Márcio. —

A gente não veio aqui prá conversar.

E POFT! Enfiou o primeiro soco na cara de um deles. Foi a conta e o negócio ferveu! Um confronto de pelo menos setenta rapazes lutando pela honra não é bonito de se ver. Sobrou facada, garrafada, cadeirada. Uma delas quase me pegou em cheio na cabeça, foi por pouco! Até tiro alguém disparou. Em segundos tudo estava destruído, as mesas e as cadeiras pelo chão, uma sujeira enorme de comida, garrafas quebradas e sangue. A maioria fugiu completamente espavorida. Os que não puderam andar ficaram ali mesmo, jogados no chão. Nós dispersamos rapidamente para o salão.

Mas pintou sujeira logo. A mulher da lanchonete, que assistira à tudo de camarote, veio acompanhada dos seguranças e com o dedo em riste:

— Eu vi quem foi! — Berrava, histérica, trêmula. — Foi este, e este, e este, e aquele, aquele , aquele! — Ia apontando em meio às lágrimas.

Alguns realmente ela pegou. E para os seguranças era o que importava. Dentre eles eu mesmo, junto com o Éder, o Tistu, o Cebola, e mais alguns da “Rifânia”, o Miçuka, o Gerson e o Pantera. Era o que eles queriam, alguns bodes expiatórios.

Fomos pegos pelo cangote com maus modos. Decididamente eles sabiam como apertar um pescoço, ao menor movimento a dor era aguda. Levaram-nos que nem galinha para fora do salão!

Fomos para uma salinha bem afastada do barulhão do baile. Eles deram uma boa intimidada na gente, uns tapas, uns pontapés, uns palavrões e muitas ameaças.

— Vocês são todos marginais! Daqui vão é para o Juizado de Menores!

Mas acho que só eu ainda era menor.

— Os outros vão é prá jaula mesmo!

Acho que essa foi a minha sorte. Fui o primeiro a ser liberado. Mas o resto dos meus amigos apanhou bastante. Eles não batiam para deixar marca só que levou um bom pedaço até eles conseguirem sair de lá. Foi o divertimento da noite dos tais seguranças porque, afinal, eles nem chamaram a polícia. Ficou só na ameaça.

E era sempre assim, por isso o “Mingau” era um baile tão perigoso. Por mais que se aprontasse ali nunca acontecia nada. Nós causamos um estrago muito grande naquela noite, tanto para o patrimônio do clube como para os rapazes agredidos. Só que ficou por isso mesmo.

Com a turma rival estávamos vingados. Mas a tal da mulher dedo-duro da lanchonete... ela ficou engastalhada na goela de todo mundo. Não fosse por causa da linguaruda, ninguém teria sido pego. De sorte que a rixa agora era com ela.

Nós já não conhecíamos limite ou bom senso. Deixamos passar duas semanas para o negócio esfriar e depois fizemos uma campana durante alguns dias. Nós a seguimos e descobrimos aonde morava, observamos um pouco o movimento da casa, quantas pessoas moravam com ela, essas coisas. Depois, pela lista de endereços, levantamos o número do telefone e o distribuímos dentro da “29” e da “Rifânia”! O número dela foi parar na mão de muita gente! Aí começamos a apavorá-la dia e noite pelo telefone!

E então, começou a depredação da casa.

Na primeira vez passamos de madrugada, de carro. Viemos na maciota, com os faróis apagados, em silêncio. A um sinal fuzilamos a casa e o carro dela, descarregamos as armas arrebentando com portas, janelas, vidros, tudo. Em segundos. Se tivesse alguém na sala teria morrido.

Os telefonemas continuaram por mais alguns dias ininterruptamente. Xingamos e continuamos ameaçando: “Você vai morrer!”.

Então deixamos passar um mês em silêncio. Quando deviam estar pensando que o negócio tinha acabado, aprontamos de novo. Passamos por lá jogando bombas caseiras na casa e no jardim, diversas vezes. Outra ocasião trancamos a família dentro de casa, soldando o cadeado com durepox.

E o telefone continuava a tocar, mantendo a guerra psicológica. A “brincadeira” durou quase um ano! Toda a despesa que ela teve com os danos na casa e no carro foram considerados suficientes. Isso é o que se chama “comer a vingança fria”.

Esta história de depredação de casas era antiga, um tipo de desforra muito usado pela turma da Gangue. Se soubéssemos aonde moravam nossos inimigos o ataque vinha tão certo como a noite após o dia. Claro que o tamanho e o tipo de vingança dependia também do tamanho da afronta.

Podiam simplesmente ser as duas senhoras que moravam sozinhas e que se implicavam com o nosso barulho na rua; podia ser o homem mal educado que odiava nos ver fumando maconha na esquina da sua casa; podia ser a família de algum rival da Gangue; ou podia ser aquela mulher imbecil que ousara nos acusar. A depredação podia vir na forma de bombas de cocô, chuva de ovos, tiros no carro ou na casa.

E não havia para quem se queixar. Alguns, é verdade, a polícia pegava de vez em quando. Levavam uns cacetes e podiam até puxar uma cana por um tempo. Mas o resto da Gangue continuava solta e os companheiros traídos eram vingados. Isso queria dizer que a situação passava de mal a pior para quem dedurasse. O que fazer???...  As cadeias já estavam abarrotadas de coisas bem mais graves! E o pessoal logo estava na rua de novo. Era uma batalha perdida!

Por causa disso nossa marginalidade não conhecia limites, pelo contrário. A constante impunidade nos incentivava ainda mais. Já não roubávamos mais amendoins, quitandas ou pessoas de bem no ponto de ônibus. Passamos a roubar de tudo, cada vez mais. Agora a nova onda eram os carros. Alguns de nós tinham mesmo a manha, abriam qualquer porta, ligavam o motor rapidinho. Às vezes roubávamos o carro só para passear uma noite, e depois o largávamos. Outras vezes ia para o desmanche. Os postos de gasolina também rendiam muita grana, se desse sorte. Toca-fitas de carros vinham que nem água, um atrás do outro. Era muito fácil.

Às vezes eu assaltava sozinho mesmo. Uma vez peguei uma grana gorda de um sujeito com pinta de estrangeiro, uma grana gorda mesmo!

As drogas começaram a pesar bem mais neste contexto todo. Lógico que a velha erva era sempre bem vinda, mas só para relaxar. A mais usada agora era, sem dúvida, a cocaína. Depois que perdi o contato com o Péricles foi um passo para que eu me “corrompesse” de novo. Mas como tinha pavor de agulhas por conta disso me controlei um pouco. Quando alguns passaram a injetar fiquei só na droga aspirada mesmo.

Nós conseguíamos cocaína purinha, direto do “Cabeça” da região! Dava inclusive para revender. Aprendemos o macete de misturar a droga boa com outras substâncias para passar adiante. Quanto mais distante da origem, mais impura. Comecei a revender um pouco. Para carinhas playboys metidos a malandros. Os coitados se achavam muito espertos, comprando droga com o dinheiro-do-papai na porta dos seus colégios de rico, ou na faculdade! Mal sabiam que estavam cheirando talco e farinha!

Apesar disso eu procurava me cuidar. De heroína não gostei. O efeito era muito louco, dava alucinação demais e demorava para passar.

Amigos meus vieram a viciar-se prá valer e aquilo era deprimente... às vezes eu os via em plena crise de abstinência, tremendo, doidos varridos. O Márcio e o Bolinha eram os que mais precisavam. Nesse ponto faziam o que quer que fosse para conseguir drogas. Havia outros na mesma situação e alguns já tinham até matado. Embora eu tivesse um ódio cego circulando nas veias eu não queria chegar naquele estágio. Era sem retorno. Ter que matar por causa de droga... isso não!

Conscientemente, nunca matei. Mas nas nossas pancadarias cada vez piores confesso que me deixei levar pelo espírito de violência. Descarreguei a arma muitas vezes, mas não mirava ninguém em especial. Atirava na direção deles com fúria, exatamente como os outros, mas não tinha realmente intenção de acertar.

Apenas uma vez perdi o controle de tal forma que encostei o 38 na cabeça de um sujeito e disparei! (Nessa altura eu já tinha um 38). Disparei duas vezes e a arma não funcionou! Mais tarde acabei atribuindo esse fato a Deus embora eu nada soubesse sobre estas coisas. Talvez minha vida tivesse seguido outro curso se tivesse realmente matado alguém daquela maneira.

O que não impediu que eu mesmo levasse um tiro, certa ocasião. Foi no meio de uma confusão monstruosa que aconteceu num clube de bilhar: alguém encostou sem querer o taco na traseira de alguém. As bolas começaram a voar e o quebra-quebra foi atrás.

A sensação que tive foi a de ter levado uma pedrada. Mas quando fui olhar melhor o braço depois, vi que não parava de sangrar e parecia haver alguma coisa lá dentro. Era uma bala! Tive muita sorte. Primeiro porque pegou no braço, depois porque era uma bobeirinha calibre 22.

Ainda que procurasse me conter em relação à arma de fogo, as demais eu usava mesmo! Faca, estilete, nunchaku, corrente, soco-inglês.....houve vezes em que enfiei o soco-inglês até mesmo no rosto dos meus adversários. Sentia aquilo entrando praticamente no osso, tinha que fazer força para puxá-lo de volta.

Até chave de fenda virou arma; se fosse bem afiada na ponta era a melhor coisa se o objetivo fosse só “riscar” alguém. A corrente com cadeado também nunca dispensava. Podia decidir uma luta sem matar o adversário. E no meu caso o nunchaku revelou-se outro elemento muito eficaz. Independente de haver ou não briga, eu sempre o tinha comigo.

E a faca, velha companheira, aprendi a usar sem dó desde muito cedo. De preferência na lateral do pescoço ou no abdome, girando-a antes de retirá-la do corpo, porque assim o estrago era maior. E esfaqueava mesmo. Sem alma. Sem culpa.

É estranho...

Relembrando hoje fica difícil dizer porque eu tinha tanta raiva! Eu tinha raiva de tudo e todos. Um olhar era o suficiente, uma palavra torta, um gesto. Às vezes nem era intencional mas desencadeava em mim uma reação totalmente fora de proporções...! Me envolvi em situações terríveis, de uma violência quase louca.

E aquela sensação de “nada a perder”, que me acompanhava sempre. Viver... morrer... era quase o mesmo! Por isso não me intimidava. Era uma sensação ímpar aquela coisa de “não ter nada a perder”.....! Lembro-me que entrava em ignição uma “coisa” dentro de mim, uma fúria tão cega que eu batia, batia, batia, não parava de bater até ver meu oponente estendido no chão.

Eu não era simplesmente um “sujeito esquentado”, ou, na pior das hipóteses, um “cara agressivo”. Era mais do que isso. Era até insano. Eu me tornei violento... violento de verdade! Com 17 anos as pessoas conheciam meu nome no bairro. Mas eu estava tão distante do significado daquele apelido “Catatau”!

***

E foi alguém assim, exatamente assim... que foi abordado por Marlon no Centro Cultural. Era até difícil de acreditar. Por que cargas d'água um homem como ele deixaria de lado os afazeres para vir atrás... justamente de mim???!!!

A causa deveria ser muito grande. Ou então, ele era mais louco do que eu.

Fato é que aquele encontro transformaria minha vida para sempre. Por mais que eu soubesse que era um caminho sem volta... não imaginava realmente que espécie de caminho era aquele.

 

***

 

Na terça-feira eu estava num misto de curiosidade e anseio em relação à reunião. Aquilo tudo era tão novo e tão empolgante que passei os dias pensando e repensando a respeito.

Nada comentei com Thalya. Nem em casa. E muito menos com Camila. Eu não sabia bem o que iria encontrar mas, por enquanto, aquilo era só meu. Saí a pé um pouco antes das nove horas da noite, andando devagar. Vestia minhas roupas de sempre, jeans e camiseta, nada de especial.

Mas eu me sentia especial... e aquela era uma sensação totalmente nova para mim! Eu era importante, Marlon me havia feito experimentar isso. Não duvidava de que ele viria mesmo me buscar.

Fazia calor e havia lua no céu. O trânsito da avenida era o mesmo de sempre mas eu nem conseguia reparar naquilo. Os carros e os coletivos passavam diante de mim, na barulheira costumeira, mas minha mente apenas fazia força para adivinhar o que viria. O desconhecido que eu buscara durante tanto tempo? Como seria o tal grupo, afinal de contas?! E que segredos me seriam desvendados?!!!

Não senti o tempo passar. Mas o diplomata de vidros escuros que subia a avenida chamou minha atenção.

Sabia que era ele. O carro encostou no pátio da igreja e vi que Marlon não estava sozinho: havia mais dois homens com ele, um dirigia e o outro ocupava o assento dianteiro. Marlon estava atrás e abriu a porta para que eu entrasse, com o sorriso estampado no rosto.

— Olá, olá! Ainda bem que você é tão pontual quanto eu. Eu também sorri em resposta, acomodando-me ao lado dele: — Detesto me atrasar seja lá para o que for!

— Esta é uma bela qualidade muito pouco cultivada... aliás, já quase esquecida!

Lentamente o enorme veículo pôs-se em movimento. No íntimo eu me sentia como alguém que estava prestes a começar uma aventura.

0 vidro estava aberto do lado de Marlon, o vento entrava ainda ligeiramente morno. Ele passou a mão pelos cabelos num gesto casual, enquanto me apresentava aos demais.

— Este é o meu amigo Eduardo. — Disse Marlon.

Os dois homens foram solícitos, mas de poucas palavras. Não me recordo de seus nomes. Eram bem pouco comuns. Eles nada disseram durante todo o trajeto de forma que me esqueci deles completamente. Chamou-me a atenção que ninguém me olhou feio ou pareceu demonstrar qualquer desagrado por causa da minha indumentária.

Minha atenção estava toda voltada para Marlon. Acomodei-me melhor enquanto eu e ele trocávamos algumas amenidades, coisas do protocolo da boa conduta. O tempo, o trânsito, a semana. Mas o carro era confortável, com bancos de couro, super silencioso e eu logo estava à vontade. Tão à vontade que não hesitei em perguntar:

— O que é isso aí no seu colo? — Eu olhava para o que me pareceram ser algumas gravuras.

Ele abriu a pasta, sem incomodar-se com meus olhos compridos. Nossa recente amizade já parecia permitir aquilo. — São símbolos. — Respondeu Marlon. — Símbolos?! — Me estiquei para ver melhor. Seus olhos pareciam sorrir mas eram também profundos ao perguntar:

— Quer vê-los?

As gravuras eram grandes e coloridas. Alguns eu conhecia, outros nunca tinha visto. Havia de tudo um pouco: Signos do Zodíaco, a Cruz de Nero, o emblema do Nazismo, um Pentagrama, dentre muitos outros.

Naturalmente ele começou a falar:

— Os símbolos são uma coisa interessante, não sei se você já parou para pensar. Carregam tanta informação por trás deles, não? — Ele parecia estar escolhendo um bom exemplo. E perguntou de cara: — De onde “nascem” os símbolos e por que eles existem?

— Bom... eu poderia dizer... que um símbolo é uma “expressão resumida” de alguma coisa maior?

— Mais ou menos. Por exemplo, vamos falar do que conhecemos bem. Você é homem, eu também. Todo homem cria na sua imaginação a imagem da mulher perfeita. Não é assim? — Só!

— E como seria ela? — Ele novamente sorriu, antes de continuar. — Que tal uma mulher bela, elegante, fina, bem vestida...? Com um misto de qualidades agradáveis: amiga, carinhosa, meiga... mas também ousada, sensual, atrevida. Com aquele sorriso de menina mas um toque de mulher, cheia de mistério. Discreta em público... e muito indiscreta a sós. Cheia de força, de talentos natos, surpreendente!

— Boa essa mulher aí. É o que todo mundo quer! Mas é óbvio que não existe, né, cara? Ninguém é tão perfeita assim!

— Concordo com você. Do lado feminino acontece a mesma coisa: lá vem a história do príncipe encantado! Que chega, muda a vida dela, acolhe, dá segurança; é o pai, o amigo e o amante ao mesmo tempo. Mas você mesmo já disse. Não existe a “ Miss Mulher-Perfeita” e nem o “Sr. Homem-Perfeito”. O que descrevi aqui — E com o que todo mundo sonha — é apenas... um símbolo!

— Bom, e daí?

— Você disse bem quando conceituou o símbolo como o “resumo de algo maior”. É verdade, de certa forma. Mas, em última análise, os símbolos são representações idealizadas da vontade humana, são expressões palpáveis do desejo mais profundo do ser humano. Não gostamos de nada muito “etéreo”, precisamos de coisas mais substanciais para representar o que queremos. Isso são os símbolos. Ainda que não sejam reais naquilo que representam, é uma tradução de como gostaríamos que fosse!

— Mas... — Refleti um pouco. — Nesse caso do parceiro ideal você tem razão, eu concordo que é estereotipado e irreal. Mas eu acho que não dá para generalizar e dizer que todo símbolo é falso na sua essência, que é apenas expressão idealizada de algo. Há símbolos que representam exatamente a realidade.

— Ah! E você poderia me dar um exemplo?

— Um exemplo....?

Da janela ao meu lado passávamos justamente diante de uma igreja grande, católica, cheia de vitrais. Marlon aproveitou o ensejo da pergunta e apontou com o queixo:

— Olha lá, uma Igreja! — Ele pareceu usar o exemplo casualmente. — A cruz é um símbolo também, não é?

Voltei os olhos de relance para as escadarias da Igreja que logo ficou para trás.

— É. É um símbolo do Cristianismo.

— Correto, mas não somente isso. O que a cruz representa, de fato? Dizer “um símbolo do Cristianismo” é muito vago. Até aí, há outros. — Ele fez uma pausa, escolhendo as palavras. Eu só escutava. — Voltemos um pouco na história. Na época dos Césares Romanos a cruz era um instrumento de tortura, a pena capital máxima para crimes dos mais terríveis, geralmente crimes políticos. Particularmente na época de Tibério ela foi muito destinada a todo aquele que ousasse opor-se ao governo de Roma. A morte na cruz era lenta e dolorosa. O objetivo não era somente matar, mas torturar. Assim, na sua origem, creio poder dizer que a cruz era um símbolo do poder Romano; um símbolo de poder, dor e disciplina. Um símbolo de morte.

Marlon desviou os olhos para a janela novamente e concluiu:

 Em contrapartida, como você mesmo já lembrou: para o cristão a cruz tem outro significado. Já não representa morte, mas vida, não é assim? Representa a vida conquistada por Cristo através da sua morte. A partir deste evento o símbolo da morte transforma-se em símbolo da Vida. Mas...adiantemos-nos mais alguns séculos na história. Aonde chegamos? Você deve saber tão bem quanto eu o que aconteceu na época das Cruzadas e da Inquisição. Os cristãos, em nome da vida, levaram milhares à morte. E a cruz, que para eles era símbolo de vida foi virada de ponta cabeça. Assim invertida, a cruz é símbolo da espada. E a espada, por sua vez, novamente é sinônimo de força, poder... e morte. Veja que paradigma!

— Hum. Não havia pensado dessa maneira. Mas faz sentido.

— Houve uma inversão de valores no Cristianismo que levou também a uma inversão simbólica da cruz. E novamente temos aí os conceitos de vida e de morte fundindo-se, mesclando-se.

Fiquei quieto, pensativo. Mas Marlon não dispensou a pergunta:

 E então? Que diria você? A cruz simboliza Vida ou Morte?

— Bom... — Respondi devagar, pesando as palavras. — Diante do que você colocou, só dá prá dizer que...”depende”!

Ele riu mostrando uma fileira de dentes bem alinhados.

— É uma boa resposta! Bem em cima do muro e, portanto, politicamente correta. Mas esqueça o meio-termo. Responda com sinceridade!

— Não estou em cima do muro. Você há de convir comigo que “depende” mesmo!

Era o que ele parecia querer ouvir.

— Você compreendeu bem. O símbolo não é realidade em si mesmo, e por si mesmo. Não é absoluto. Depende do ponto de vista, do referencial, do tempo, da história. Como no caso da cruz. Os símbolos só são realidade dentro da imaginação humana e o mesmo símbolo pode ter diferentes significados e, em casos extremos, até mesmo significados opostos!

Era divertido filosofar com aquele homem tão inteligente. A resposta e a argumentação me pareceram convincentes de forma que balancei a cabeça em assentimento. Mesmo assim ainda questionei:

— Mas será possível, Marlon? Não haverá nem um símbolo que signifique exatamente aquilo que representa?

— Pense por você mesmo, Eduardo! Há uma infinidade deles para serem escolhidos e analisados. Quer ver um bem palpável? A nossa própria Bandeira do Brasil! Verde: plenitude, abundância, e vida; amarelo: ouro, riqueza, prosperidade; azul: paz; uma faixa branca: limpeza e pureza! E os dizeres “Ordem e Progresso! Isso é realidade? E a expressão do nosso país? Não é, mas representa aquilo que gostaríamos que fosse. Reflete o desejo mais profundo daqueles que criaram o símbolo. Mas é idealizado.

Fulguras, ó Brasil, florão da América”!

— Tem razão...

— Ainda há pouco nós falamos em homens e mulheres perfeitos. Daí é um pulo para falarmos do Matrimônio. Quer ver mais um exemplo? Qual é o símbolo do casamento? — Marlon tocou de leve em seu próprio anular, piscando o olho para mim a título de incentivo.

— A aliança. — Respondi.

— Certo. A aliança de ouro, pura, preciosa, um aro sem começo ou fim. Que simboliza algo eterno. Como o casamento e o amor “deveriam” ser! E já que falamos em ouro... sabia que o ouro puro não pode ser moldado? Para ser forjada, a aliança precisa —digamos assim — de “impurezas”. Precisa de outras substâncias que, associadas à pureza do ouro, tornam a aliança perfeita. Mas se o Puro precisa do Impuro para se tornar um... se para ser perfeita a “pureza” precisa do que chamamos de “impureza”... será que podemos entender como absolutos estes conceitos??? — Ele me olhava com seriedade. — Mas por outro lado o “Impuro” também é relativo. Seria uma espécie de “mal necessário”, dá prá entender? Sem o qual o “Puro” não poderia subsistir.

— Compreendo. Você me convenceu, mas aonde quer chegar com a sua argumentação?!

— Novamente você tem aí um símbolo que depende do referencial. Não é uma verdade em si mesmo! — Ele retomou com um tom mais informal. — Sabia que a diferença entre o ouro e o chumbo é de apenas um próton na sua estrutura molecular? Você deve saber, como estudante de química. Veja só que interessante...o chumbo, pesado, denso, opaco... e o ouro... puro, brilhante, precioso, agradável à vista. Essa diferença tão pouco expressiva, tão sutil, tão ínfima como um próton fez toda a diferençai Assim é com os homens também. Há pessoas pesadas e densas como o chumbo, mas quando se lhes acrescenta o átomo do conhecimento podem tornar-se puras e preciosas como o ouro. Antigamente os alquimistas fizeram de tudo para tentar produzir ouro a partir de outras substâncias. Eles não conseguiram. Mas nós... nós descobrimos... a diferença capaz de causar toda a transformação! Eu praticamente deglutia as palavras de Marlon, incapaz de discordar. A diferença... o Oculto... seria isto?! Subitamente ele retomou o assunto da aliança, mas como se apenas divagasse a respeito:

— Quanto ao símbolo do aro de ouro: o círculo é eterno, perpétuo. Você consegue compreender a Eternidade, Eduardo? —Ele não esperou resposta. — Como defini-la, entendê-la? Nós, seres finitos?! A aliança representa o Amor Eterno. Mas será que o amor é mesmo eterno? E já que estamos falando de símbolos e caímos nessa coisa de amor... Deus é o Símbolo do Amor. Não é? — Acho que sim. — Respondi. — Pelo menos é como aprendemos.

 Sim, é o que vocês aprendem. Mas lembre-se do que eu disse a respeito do próton do Conhecimento. Nunca se esqueça disso. Do convite ao Conhecimento. Quer analisar mais um “Símbolo”?

Assenti em resposta com a cabeça.

— Vamos pegar um exemplo de amor um pouquinho mais palpável à princípio. Me responda: seu pai ama você?

A pergunta me surpreendeu um pouco. Havia tanto o que pensar acerca do meu pai e de mim mesmo. Dei levemente de ombros:

— Bom... ama. Acho que ama. Todo pai deve amar o filho, não??!!

— Mas como seu pai é um ser finito, temporal, o amor dele por você dura enquanto ele durar, não é? Ou enquanto você durar. O amor dele por você está ligado ao “tempo de existência”, seu e dele.

Marlon prosseguiu por ver que eu concordava com a colocação.

— Deus também se intitula “Pai”. Mas ao contrário do seu pai carnal, que não durará para sempre, Deus é Eterno. Eu pergunto: será que o Amor Dele por você também é infinito?

— Como assim? Não compreendi bem.

— Quero dizer que se Deus é Infinito — ou Eterno — Ele o amará eternamente... ou somente enquanto você durar?

Demorei um pouco a responder.

— Não sei. Acho que ele me amará sempre... enquanto eu viver! Pelo menos teoricamente falando. Afinal, este é o papel Dele, penso eu, pois faz parte da própria definição de Deus. “Deus é Amor”...

— E você pode garantir que a vida termina com a morte? Você simplesmente deixa de existir quando morre?

Ele não me deu tempo de responder e lançou outra pergunta:

— Será que o Amor de Deus atua após a morte? 7

Marlon novamente fez uma pausa, coçando de leve a ponta do queixo. Ele não respondeu a pergunta, apenas continuou:

— E há que se considerar um elemento a mais nessa história de Amor de Deus. Ele dá muito valor para algo que definiu como pecado. Deus mesmo diz que o pecado separa de Si o homem. — O semblante dele assumiu um arzinho ligeiramente caçoísta. — Em outras palavras... o pecado anula o Amor? Quero dizer, a própria Bíblia afirma que “o salário do pecado é a morte”. Afinal, pergunto eu: que Amor é este? É incondicional realmente, ou condicional? Me parece que o Amor de Deus não está ligado ao tempo de existência da sua vida, nem da Dele, mas às atitudes dos homens! Apenas aquele que “perseverar até o fim será salvo”. Deus simboliza Amor... Paternidade. Mas isso é real ?! Será que é isso mesmo, ou, talvez, estes símbolos tenham sido criados pelos homens, na sua ânsia de alcançarem Deus? Você aprendeu algo a respeito dos símbolos e saberá chegar à conclusões lógicas por você mesmo.

Marlon continuou :

— Além do que, olhemos para as bases do Cristianismo moderno. Temos duas linhas aí, Luterana e Calvinista. A primeira afirma que a Salvação se perde. A segunda diz que Salvação é eterna. Você há de convir que nem eles entram em acordo. Que pensar disso tudo? Se a própria religião se divide, como pode ser forte??

Acho que a expressão do meu rosto revelava que eu estava um pouco confuso. Ele encerrou o assunto sem esperar respostas, parecendo preferir que eu digerisse um pouco aquela conversa. Eram idéias novas para mim, coisas em que eu não tinha ainda pensado. Pelo menos, não daquela forma. Simplesmente finalizou com um comentário sucinto.

— Pense a respeito... nem sempre os símbolos são o que parecem ser. São realidade apenas na imaginação daqueles que crêem neles. Não podem ser encarados como absolutos. — O tom de sua voz mudou, tornando-se um pouco mais altiva. — Mas o grupo e as pessoas que você vai conhecer, nessa sua viagem rumo ao Oculto, são diferentes. Nós não acreditamos que você precisa estar em condições especiais para ter o seu valor. O externo não tem maior importância do que a essência. Imagine só se você estivesse perdido numa ilha à procura de alimento e, de repente, encontrasse um coco. Só que você nunca viu um na vida! Você pega, sente, cheira; é um negócio duro e áspero, com fiapos marrons grosseiros. Não tem cheiro nem textura bons ao paladar. Só que dentro dele existe aquela água boa e a polpa comestível. No entanto, diante da aparência do coco... você o jogaria fora e continuaria a busca.

Acabei rindo diante do exemplo, compreendendo o que ele queria dizer. Marlon complementou::

— Você não teria dado valor ao que encontrou porque não estava nas condições em que você esperava! — Ele olhou para mim e falou em tom levemente brincalhão. — Você é um coco, Eduardo!

Foi a única vez que os dois passageiros da frente se manifestaram dando risadas com a comparação. O ambiente tornou-se mais descontraído e Marlon concluiu:

— Você é especial. Nós não estamos interessados na casca, mas no que você tem dentro. Você é como uma pequena semente que pode tornar-se uma grande árvore. Só precisa ser regado da maneira certa, no tempo certo. E com a água certa!

Era tudo tão novo que não parecia realidade. Teria eu realmente o valor que estavam me atribuindo? Era estranho... pela primeira vez eu não estava sendo questionado, julgado ou tratado com preconceito por causa do meu cabelo, roupas ou jeito de falar! Eles pareciam me aceitar integralmente. Pareciam realmente “poder ver além da casca”.

— Você não conhece ainda o seu potencial, Eduardo. — Ele até parecia ter lido meus pensamentos.

Não houve tempo de dizer palavra.

— Ah! — Marlon apontou com a mão. — Chegamos!

E eu que sequer sabia onde estava! Tão absorto estivera na conversa que não reparei no caminho.

Olhei para os muros altíssimos, de pedras grandes, acinzentado. Havia um portão pesado, de ferro preto, ladeado por duas estátuas. Dois leões sentados. Na frente estavam inscritas duas iniciais. E uma câmera filmava todos os que se aproximavam.

***

O portão abriu e o carro percorreu a alameda. Apesar da pouca luz pude vislumbrar os jardins ao redor, cheios de árvores, quase um bosque! Descemos todos juntos diante do que eu poderia chamar de palacete. A casa era absolutamente imensa! Fachada ampla em estilo clássico, colunas laterais, janelões, pelo menos uns três andares.

Eu não sabia o quê dizer diante daquilo. Uma escadaria de mármore nos levou à porta da frente. Reparei nela, de madeira escura disposta em tábuas verticais. Mas a maçaneta, ou o que eu poderia chamar de maçaneta, eram duas enormes estruturas de bronze em formato de olho de gato.

Marlon foi abrindo a porta sem maiores preâmbulos e entramos numa espécie de hall ao mesmo tempo em que um homem bem vestido aparecia para nos receber amistosamente.

Parecia pouca coisa mais jovem do que meu amigo se bem que as têmporas já fossem um pouco grisalhas. O cabelo era bem curto e o cavanhaque muito bem aparado. Era magro, de estatura mediana. Veio sorrindo, muito cortês e amável. Abraçou o Marlon rapidamente mas com força, e logo se dirigiu a mim. .

Eu continuava com a infalível mochila às costas e quando ele me abraçou também acho que todos ouviram o tilintar das bolas de gude:

— Que bom que você veio! Estávamos esperando por você! — Disse ele.

Marlon fez as apresentações convencionais e recebi as boas vindas:

— O meu nome é Zórdico. — Continuou o homem à minha frente. — Logo mais teremos oportunidade de nos conhecermos melhor!

Marlon tocou em meu ombro com carinho e me chamou pela primeira vez num termo que seria freqüente a partir de então:

— Filho...você pode nos aguardar aqui um pouco?

Apenas fiz que sim com a cabeça. Eles saíram e me deixaram só. Meus olhos rodavam à volta sem parar.

O hall comunicava-se com um recinto amplo, bonito e muito elegante, uma espécie de sala ou, mais provavelmente, numa mansão como aquela, não mais do que uma “ante-sala”. Duas escadas largas, uma do lado direito e outra do lado esquerdo acabavam juntando-se lá em cima numa espécie de mezanino. Nas paredes dois quadros enormes: eram pinturas de duas crianças chorando, um menino e uma menina, um de frente para o outro em paredes opostas.

Mas o que realmente me encantou foi o chão, coberto por um tapete branco tão felpudo que meus pés quase deixavam pegadas nele. Caminhei sobre ele até uma cristaleira de madeira escura, encostada à uma das paredes. Era linda, de vidros tão limpos que pareciam de cristal. Deviam ser mesmo! Dentro havia muitos objetos estranhos. E bonitos. Provavelmente de ouro e prata, a julgar pelo brilho. Encostei de leve no vidro e, para minha surpresa, estava aberto! Mas não ousei tocar em nada, respeitosamente. Fiquei ali um tempo, observando-os.

Depois acabei por sentar-me no felpudo tapete para esperar por Marlon e os outros. Distraído, minha mão escorregava por entre os pelos do tapete e meus olhos percorriam novamente o recinto. Estava tudo tão silencioso...

Do tapete minha mão subiu à cabeça e me pus a desembaraçar os cabelos, num gesto casual. Sem querer mergulhei de novo numa viagem introspectiva, relembrando o recente encontro com Marlon e tudo o que ele me dissera. Mas não houve tempo: fui puxado à realidade outra vez, atraído pelo ruído dos passos e das vozes. Eram Marlon e Zórdico.

— Vamos descer? — Convidou Marlon. — Está na hora!

Levantei-me de pronto com uma expressão que escapou na hora:

— Vamos nessa, cara! — Caí em mim. — Pôxa, desculpe aí a gíria! É o costume.

Nem Marlon nem Zórdico pareceram se importar. Saímos por uma porta lateral e adentramos outro recinto. Neste, atrás de uma porta estreita, vislumbrei uma escadaria acarpetada de vermelho. Marlon explicou:

— As reuniões são feitas no porão.

O carpete abafava o ruído dos nossos passos. A escada era ladeada por um corrimão de madeira grossa e escura, e a iluminação vinha de pequenas lamparinas dispostas em fileiras nas paredes. Meus olhos observavam tudo com assombro, sem perder nenhum detalhe.

“Onde já se viu um porão assim luxuoso? Comparado com o lá de casa...”

De repente a escadaria terminou numa curva para a direita. O corrimão tinha neste ponto a imagem esculpida de um deus inca ou asteca. Fiz questão de deslizar minha mão sobre ela ao mesmo tempo em que estiquei o pescoço. Havia ali um Portal tremendamente amplo, com um arco gótico que se elevava acima de nossas cabeças, e que dava acesso a um belo aposento. Tudo era muito luxuoso.

“Que coisa impressionante!”. Eu estava boquiaberto.

Ali seria uma espécie de Biblioteca, ou algo que o valha, com estantes repletas de livros. O salão era grande, muito bem iluminado e decorado. Na parede da frente havia um espelho enorme que logo me chamou a atenção, bonito, com moldura trabalhada. Os sofás estavam arrumados confortavelmente nos cantos, repletos de almofadas felpudas e coloridas.

Apesar do calor da noite o ambiente era fresco, agradável, e um leve perfume adocicado permeava o ar.

Havia mais gente no salão. Estavam todos conversando e fui sendo apresentado por Marlon. Ele também ia sendo saudado pelos presentes.

O ambiente me pareceu aconchegante. Fui muito bem recebido com sorrisos, abraços, apertos de mão e algo que eu poderia classificar de “calor humano”. O número de homens era maior do que o de mulheres e todos pareciam mais velhos do que eu, beirando a faixa média de 25 a 28 anos, talvez.

As pessoas estavam bem vestidas e pareciam cultas, inteligentes. E eram mesmo! Vim a descobrir que o tal grupo era extremamente seleto; havia quem fosse médico, ou engenheiro, ou advogado, ou empresário...

Mas era contagiante a simpatia e a descontração de todos. Desde o início senti-me muito à vontade. O único “marginal” era eu. Tinha um outro rapaz mais ou menos no mesmo estilo, desleixado, cabeludo, mas tanto ele quanto eu fomos tratados muito bem. Tão diferente do que eu estava acostumado!

Ao todo éramos em vinte e uma pessoas.

Fomos nos acomodando na enorme mesa de centro à medida que as apresentações iam findando. Acomodei-me ao lado de Marlon. E Zórdico tomou lugar à cabeceira. Em breve viria a saber que a maioria das palestras eram dadas por ele. Percebi que algumas pessoas já estavam familiarizadas com o local e as reuniões mas, a maioria, como eu, estava acabando de chegar.

O burburinho foi cessando quando Zórdico deu a entender que iria iniciar a reunião. Todos se calaram e nossos olhos fixaram-se nele. E ele, por sua vez, sorriu abertamente apresentando-se como Professor.

— Estejam à vontade. — Incentivou ele. — E sejam bem vindos à “Escola”!

Com os braços comodamente apoiados sobre a mesa passou a falar calmamente enquanto seus olhos corriam de rosto em rosto.

— Vocês são um grupo de pessoas muito privilegiadas: este lugar não é para qualquer um. Ao longo dos estudos que vamos começar a desenvolver hoje cada um aprenderá a contemplar a realidade com novos olhos. Tudo será visto através de um novo prisma... à medida que o Oculto começar a ser desvendado a vocês. E não somente o mundo que nos cerca será novo, mas cada um virá a descobrir o Oculto dentro de si mesmo. E virão à tona novos potenciais. Naturalmente que isso acontecerá com cada um a seu tempo e à sua maneira, porque a revelação também depende de esforços e interesse individuais!

Ele limpou a garganta e passou a explicar em detalhes o que era definido como “o Oculto”. Era o que Marlon já me havia dito no Centro Cultural:

— A título de definição: “Oculto” é tudo o que ainda não foi revelado. Com certeza o estudo do Oculto e as fantásticas descobertas que virão através disto serão um desafio à inteligência de vocês. Mais uma vez, é óbvio o motivo pelo qual a maioria das pessoas permanece a vida toda alheia a tal conhecimento. Ele não é para todos. Não podemos alcançá-lo pura e simplesmente pelo nosso próprio esforço. Faz-se necessário que ele seja revelado a nós. Mas o principal, e é o que vamos fazer aqui, uma vez que fomos escolhidos para ter acesso à revelação, é não aceitar fatos apenas por aceitar. Aceitar o que não se entende — ou não se explica — é  pura ignorância! Aceitar apenas porque nos disseram que “é assim” não é suficiente.

Zórdico olhou com firmeza para nós enquanto acomodava-se melhor na cadeira de espaldar alto. Cruzou as mãos à frente e continuou:

— Acredita-se, por exemplo, que o Homem foi feito do pó da terra. Que o mundo foi criado em sete dias. Acredita-se que choveu tanto que houve uma inundação a ponto de destruir completamente a civilização da época. Em contrapartida, outros crêem no evolucionismo das espécies e na Teoria Darwinista. Apesar de que a macro-evolução ainda não teve a sua confirmação. Tanto os primeiros como os segundos crêem... a despeito de confirmações plenamente palpáveis. Eu pergunto a vocês: que dizer acerca da vida em outros planetas, ou da vida após a morte? Que pensar sobre Universos paralelos? Sobre os grandes mistérios do nosso mundo? Há muita coisa sem explicação. Isto, pelo menos, é um fato! — Fez ele com um meneio de cabeça e um sorriso leve à guisa de descontração. — Como já disseram por aí, “Há mais entre céu e terra...”. Vocês conhecem o resto.

Ele calou-se por um pouco.

— Vã filosofia... — Repetiu lentamente. — De fato. De fato algumas teorias são vãs. E correta e louvável a busca pelo conhecimento, mas acontece que criamos teorias na tentativa de explicar as nossas dúvidas. Às vezes, estas teorias não passam de pura tolice. Vãs, é o que são! O problema não é a busca das respostas. Mas o fato de criarmos uma resposta que, embora nos satisfaça, infelizmente nem sempre é a tradução da realidade.

Nós escutávamos. Ele repetiu a pergunta inicial:

— Torno a indagar: devemos aceitar fatos não explicáveis, incompreensíveis, sem pensar??. Ou ainda... já que pensamos e buscamos... devemos aceitar as ficções criadas e, na ânsia de conhecermos a Verdade, introjetarmos isto dentro de nós, o falso pelo verdadeiro? Por pura necessidade de amenizar a angústia da procura de respostas? Vejam bem, não estou dizendo que este é um processo consciente! Na maior parte das vezes talvez seja inconsciente mesmo. Mas a questão que eu coloco hoje é a seguinte: o que é ficção e o que é realidade?! Será que muito do que aceitamos hoje como sendo Verdade... não é mera ficção?

Zórdico inspirou fundo:

— Vou lhes dar um exemplo que torne a coisa mais palpável, algo simples e concreto. Antigamente o Homem observou que o sol nascia de um lado e se punha do outro. Pois bem... de veria haver uma explicação para aquilo! Lógico! A Terra era o centro do Universo e o sol girava ao redor dela. Pronto! Tudo se encaixa, e aí está o cerne da Teoria Geocêntrica. Sabemos, no entanto, que não levou muito tempo para que Galileu Galilei provasse o contrário, a Verdade. Se isso não acontecesse até hoje a Teoria Geocêntrica seria aceita! Muitas coisas hoje em dia seguem o mesmo curso: ficção encarada como verdade. Fiquem sabendo de uma coisa: muito do que vocês acreditam hoje não é tão verdade quanto parece.

Um clima estranho pairava no ar. Talvez Zórdico tivesse razão! Alguém esboçou um questionamento:

— Mas nem tudo é passível de ser explicado. A Humanidade formula hipóteses para tentar encontrar a Verdade. Algumas coisas já foram descobertas, outras estão a caminho. O erro faz parte deste processo.

— Você está certo. Em parte! — Zórdico virou o corpo na direção dele. — O que está em jogo é outra coisa. Claro que o erro faz parte, e há muitas coisas que o homem não pode ainda explicar. Só que o ponto aonde quero chegar é o seguinte: “Inventar” é diferente de “Descobrir”. Concorda? Quando “inventamos”, criamos a ficção. Quando “descobrimos”, encontramos a Verdade. Há quem goste da invenção. Muitas vezes ela é mais cômoda. Mas há quem goste da Verdade. E eu creio que vocês estão aqui porque têm interesse na segunda opção. Temos somente um probleminha a ser resolvido. Um problema que apenas os que querem saber a verdade encontram: nem sempre temos consciência de quando estamos frente à ficção... e quando estamos frente à realidade.

Ele ergueu-se do seu lugar e apanhou uma espécie de bandeja na prateleira ao lado. Sobre a bandeja havia um objeto esguio e alto, coberto por um pano de tecido escuro. Zórdico colocou a bandeja sobre a mesa e tocou o braço da moça à sua esquerda:

— O que tem aqui? — Perguntou.

Ela olhou e respondeu:

— Bom, não sei, parece algo como uma jarra ou um copo bem alto, talvez.

— Por quê?

— Pela forma. Parece algo assim. Mesmo porque está sobre uma bandeja. Poderia também ser uma garrafa. É... parece mais uma garrafa!

Zórdico repetiu a pergunta para mais um ou dois, que deram sugestões, concordando ou não com a moça. Eu observava com olhos grandes. Zórdico tirou o pano sem mais perguntas. Sob ele havia um objeto parecido com um pequenino edifício, uma espécie de castelinho de brinquedo. Nada a ver com o que havíamos pensado.

— O exemplo é rudimentar mas creio que podemos passar adiante. — Limitou-se a comentar. — Vamos falar um pouco do nosso objeto real de estudos, o Oculto. Quero que todos consigam perceber a diferença. — Tornou a cobrir o castelinho com o pano. — Temos aqui uma dúvida, uma incógnita, algo que nos estimula a formular hipóteses. “O que haverá debaixo do pano?” Uma garrafa, uma jarra, um copo? Estas são as nossas teorias. Mas, deixando-as de lado, vamos ver a Verdade, vamos descobrir!

 Retirou novamente o pano, olhando para nós. — Percebem? Este objeto estava oculto e foi revelado. Parecia uma garrafa... era até uma hipótese plausível. Mas agora conhecemos a Verdade, ao descobrirmos o Oculto. É fácil perceber a diferença. O Oculto não é fantasia, algo criado pela imaginação humana. É a revelação de algo que existe verdadeiramente. O Oculto só está oculto enquanto ainda não o descobrimos, mas é reflexo da Verdade. Como alguns de vocês já devem ter escutado, ao conhecer o Oculto vocês conhecerão a Verdade. E a Verdade irá libertá-los do cativeiro da ignorância.

Alguém tomou a perguntar. Todos desviamos os olhos para ele:

— Mas quem garante que de fato encontraremos a Verdade?

Zórdico foi curto na resposta:

— É cedo para responder à sua pergunta. Adianto apenas que tudo o que você aprender aqui será provado racionalmente por “A + B”. No entanto, se você parar para pensar, porque a teoria de Galileu de repente deixou de ser tão questionada? Simplesmente porque era a Verdade. E ponto final. Não havia mais o que discutir uma vez que se percebeu esse fato. Contra fatos... não há argumentos!

Voltou-se novamente ao grupo e deu seqüência.

— Apenas a título de complementação analisemos ainda um outro exemplo. O da “Garrafa” é simples, usei só para que visualizassem o mecanismo básico do erro. Vamos falar de algo bem mais conhecido. Tomemos por base a Bíblia. Eu poderia usar outro Livro como exemplo, mas eu creio que a Bíblia é mais familiar a todos. É um dos Livros mais lidos em todo o mundo, sabiam disso? Um verdadeiro best-seller. — Ele parou para perguntar. — Concordam?

Como a resposta fosse afirmativa, Zórdico continuou:

— Entende-se que a Bíblia foi inspirada por Deus e reflete a Verdade de Deus. Portanto, é perfeita. O assunto central deste Livro tão lido é justamente este: revelar ao homem a Verdade e a vontade de Deus. Cremos nisso, não? No entanto já desde as bases do Cristianismo percebemos duas linhas que caminham lado a lado, a Luterana e a Calvinista.

Agucei ainda mais os ouvidos pois Marlon conversara comigo sobre aquilo há pouco.

— Cada ramificação que surgiu depois dogmatizou um pouco a Verdade, de forma que nos defrontamos com dezenas de interpretações paralelas. Ou melhor: com base no mesmo Livro, a Bíblia, chegamos a diversas verdades paralelas. De forma que fica praticamente evidente que ela não é um absoluto, pois não há concordância universal. Tudo depende do referencial, da ramificação, da linha adotada. Mas vamos tentar descartar a Religião em si. Vamos partir do pressuposto de que os homens deturparam a mensagem básica da Bíblia ao criar a Religião. Esqueçamos as seitas e voltemos à premissa inicial: a Bíblia foi realmente inspirada por Deus e reflete a Verdade de Deus. Passemos a analisar algumas das Verdades Bíblicas tendo em mãos apenas o nosso próprio entendimento, dissociado da chamada Religião.

Ele apoiou os cotovelos sobre a mesa, inclinando o corpo para frente. Inspirou fundo antes de recomeçar o discurso. Meus olhos estavam grudados nele, bem como os dos demais. Esqueci-me até da presença de Marlon.

— “Toda árvore dá o seu fruto a seu tempo”. Esta é uma Verdade Bíblica. Vamos analisá-la à luz da própria Bíblia uma vez que ela mesma se explica. Há um outro trecho aonde o relato diz que Jesus teve fome e procurou figos em uma figueira. Diz a Palavra que “Ele nada achou, porque não era tempo de figos”. Que ocorre então? Jesus amaldiçoa a figueira e ela morre. Ora... vamos e venhamos. Que tipo de Amor é este, condicionado ao fruto? Se a árvore tivesse figos não haveria palavra de maldição e morte, mas de benção. Será que este Amor pode ser classificado como condicional ou incondicional?! Por que antecipar o fruto? “Não era tempo de figos”, diz a Bíblia, mas ainda assim a figueira foi amaldiçoada!

Zórdico tamborilou de leve os dedos sobre a mesa e continuou sem esperar reação do grupo:

— Diz a Bíblia também que o Amor “é paciente, tudo espera, tudo suporta não busca os próprios interesses”, e etc.e tal. Está lá, escrito em I Coríntios. Mas houve paciência neste ato??? Será que seu pai carnal agiria assim com você? Digamos que você está ainda cursando a faculdade, estudando, e seu pai te avisa que você deve começar a ajudar financeiramente em casa. Só que você não tem emprego, nem salário. E estudante. Não é ainda época de dar este tipo de fruto. Que diria seu pai? “Ah! Pois é assim? Então suma daqui! Morra!”. Duvido que qualquer pai em sã consciência fizesse isto. Mas parece que o Pai das luzes tem seu Amor ligado ao ser algo, ou fazer algo. Se você está de acordo, é abençoado. Se não...! Deus somente o abençoa quando você faz o que ele quer!

— Bom... — Interrompeu a mesma pessoa da última vez. —Mas a figueira é só uma árvore. Não é um bom exemplo. Talvez não houvesse a sentença de morte se Jesus estivesse lidando com um ser humano. Deve haver alguma explicação lógica para o fato.

— Você quer uma explicação lógica? Quer, talvez, mais um exemplo? Veja em Deuteronômio 28. Deus diz que se o seu povo for obediente e seguir os mandamentos e os decretos e os ensinamentos será “bendito ao entrar e ao sair”. Mas, se não for feito como Ele quer, nenhuma menção de amor ou misericórdia.

Antes, a sentença: “Serás maldito ao entrar e ao sair”, dentre outras promessas bondosas e agradáveis. Em outra palavras... morra! Eu poderia continuar com os exemplos mas eu quero que vocês cheguem às suas conclusões por vocês mesmos. Deus se intitula “Amor”, mas Ele mesmo age contrariamente à sua definição de Amor. Não disse há pouco que o Amor “é paciente, benigno, tudo espera, tudo sofre, tudo suporta, jamais acaba”? Como pode ser a Palavra de Deus tão contraditória num aspecto tão fundamental como este? Que dizer de outros aspectos menos fundamentais?

Zórdico recostou-se novamente na cadeira fazendo uma pausa mais longa. Ninguém abriu a boca.

— A religião é dividida... a Palavra aparentemente é contraditória. Foi o próprio Cristo que disse que “Um reino dividido não prospera”. É difícil compreender a Sabedoria deste Deus. E, no entanto... a Humanidade crê! Será que estamos crendo na Verdade? Ou será que o homem finito, ao tentar compreender a Eternidade de Deus, acabou criando explicações que atenuassem a angústia por respostas?

Creio que já estávamos confusos o suficiente. O que é realidade verdadeiramente e o que é realidade fictícia, pura fantasia?!...

— Pensem a respeito. Ao longo destes estudos vocês conhecerão uma outra fonte de amor. Pode até ir de encontro àquilo em que vocês sempre acreditaram, que foi ensinado como sendo “o certo”. Mas virá o tempo em que todos serão capazes de entender. Sei que por hora ainda é um pouco cedo! — Zórdico sorriu jovialmente. — Mas vocês, que foram selecionados, têm um grande mérito por si só: são inteligentes. Por isso estão aqui. Saibam de uma coisa com certeza, saiam daqui hoje com esta convicção. O conhecimento trará poder a vocês! A inteligência, a essência, a fora vocês já têm. Vamos simplesmente acrescentar poder à esta força através do conhecimento e da revelação da Verdade. Homens e mulheres que passam por esse aprendizado tornam-se poderosos. Em retirando-se o véu da enganação, da ignorância, da hipocrisia...  vocês serão capazes de movimentar a natureza e desencadear os poderes do Universo.

Alguns olhares passaram de curiosos a levemente incrédulos. Observei olhadelas discretas lançadas uns aos outros diante da afirmação feita por Zórdico.

E ele, incrivelmente, pareceu ler os pensamentos do grupo. Acrescentou, em tom casual mas enfático ao mesmo tempo:

— O tempo e os estudos vão mostrar a vocês. — Ergueu o braço num gesto esquisito e um pouco brusco.

Imediatamente, acaso ou não, todos nós ouvimos um som leve, um “puff” atrás de nós. Procurando de onde viera o ruído vimos o fogo da lareira aceso. Estranho.... eu não havia reparado naquele fogo antes......?!

Ninguém fez pergunta alguma, comentário algum. Voltamos a cabeça na direção de Zórdico, que continuou no mesmo tom e na mesma cadência como se nada houvesse ocorrido. Parecia ter provado algo diante de nós que dispensava palavras.

Teria mesmo ocorrido???!!..........

***

 

 

mos ali me punha o resto da semana meditando. E aguardando na maior expectativa o próximo encontro.

Olhei em derredor. A maioria já estava sentada à volta da mesa, conversando e rindo em pares ou trios, aproveitando para conhecerem-se mutuamente. Quando Zórdico apareceu, calmo mas altivo, sorrindo um