Eu e Camila estávamos novamente brigados, para variar. Tinha rolado um “pau” feio e eu tinha terminado outra vez.
— Não quero mais ficar com ela! Meu mundo e o dela não combinam mais! — Saí furioso, disposto a não dar as caras nunca mais.
Foi a mesma ladainha de sempre. Mas depois a caixinha de pertences logo foi enviada para minha casa: as coisas que eu havia dado a ela. Lógico que os presentes mais caros como roupas, tênis importado e algumas jóias ela nunca devolvia! Como se eu quisesse algo de volta!
Mas quem sabe dessa vez dava certo!
Estávamos separados há alguns dias e eu aliviadíssimo com a situação quando conheci a Mariana. Foi na Canion Tower, ela foi contratada para o setor de marketing e começou alguns dias depois de mim. De cara chamou a atenção do pessoal do setor dela e dos setores vizinhos.
— Esta garota aí é jeitosinha.
E era mesmo. A rapaziada apostou quem a levaria primeiro para almoçar. Mas, que nada! Ela almoçava com as moças todos os dias e recusava os convites. Eu observava, caçoando dos meus colegas.
— Vocês não estão com nada, heim?
Resolvi fazer do meu jeito. Se ela sorrisse, estava no papo. No final da manhã eu a observei passar perto de minha mesa, por trás do vidro divisório, quando foi para o outro lado do departamento com uns papéis na mão. Fiquei esperando.
Quando Mariana voltou, dei umas pancadinhas no vidro para chamar-lhe a atenção. Os setores eram todos separados daquela maneira. Ela olhou e eu coloquei sobre o vidro o convite: “Vamos almoçar hoje?”. E fiz uma careta gozada do outro lado. Mariana olhou primeiro para mim e depois para o papel. E riu. Não me deu resposta mas foi para o seu lugar.
Na hora do almoço, à caminho do elevador, só dei uma batida em cima do tampo da mesa dela:
— E aí? Vamos almoçar?! — Mas não parei e nem dei muita bola para ela. Enquanto eu esperava o elevador, Mariana apareceu.
— O seu convite foi engraçado! — Disse ela.
A partir daí ficamos amigos e em menos de uma semana ela mesma deu o ultimato. Na hora do almoço fomos dar uma espiadinha na Exposição de Arte do Espaço Cultural. Mariana me beijou e considerou que estávamos namorando. Eu não tinha dito nada sobre isso mas deixei rolar. Que menina impulsiva! Só que... haja perseguição! Não é que Mariana era mais uma daquelas crentes da Con
Congregação Cristã do Brasil?!!!
Logo fui convidado para ir à sua casa conhecer a família. Fui. Mais conversa de Bíblia! Eu já não agüentava mais, que falta de sorte! Tudo de novo. Ganhei mais umas duas Bíblias em pouco tempo. A mãe dela era daquelas mulheres de cabelo comprido e coque que só falava na “Palavra”.
— Você sabe o que Deus disse para Moisés no monte? Venha cá, venha cá... olhe só...
O Pai de Mariana também me falava da Bíblia, só que mais raramente. O seu assunto predileto era abelha. Ele era apicultor.
— Tudo bem? — Eu cumprimentava cordialmente. — Como vai o senhor?
— Tudo bem, mas olhe, rapaz! Sabe que nesta época do ano as abelhas “tais” fazem “tal” tipo de mel? — E então ele engatava no piloto automático e podia esquecer.
Não que realmente as abelhas não fossem interessantes, e o mel muito ilustrativo, mas é que eu não conseguia falar nada. Era um monólogo, ele não parava e eu também não tinha como me livrar dele, a não ser que fosse mal educado. Acabava deixando. E era abelha pra cá e abelha pra lá!
Em casa de Mariana era sempre assim, ou era Bíblia, ou era abelha. Por quanto tempo eu suportaria aquilo?!...
Certo sábado Mariana carregou-me para o Culto. Não sei como ela conseguiu fazer aquilo...! Mas o fato é que quando acordei eu já estava sentado no banco ao lado do irmão dela. Não podíamos sentar juntos porque havia uma ala masculina e outra feminina. Ele fazia parte da orquestra e carregou-me para o meio da dita cuja durante o período do Louvor. Eu me sentia patético. As músicas eram chatíssimas. Só hino!
O anfitrião que trouxe a palavra naquela noite foi o futuro e “abençoado” cunhado da Mariana. Observei tudo com olhos que pesavam de sono. Os homens estavam todos de terninho! Eu queria
morrer! Que tormento. Acho que minha cara dizia tudo. Mas suportei corajosamente até o fim.
— Você não acha que as mulheres dessa Igreja já parecem umas santas? — Perguntou-me depois da pregação o futuro cunhado.
As mulheres estavam todas cobertas com um véu branco. Uma coisa de louco! Não achei o que responder.
No dia seguinte, domingo, estava marcado o “Churrasco Santo”. O pai dela, como apicultor, era dono de um pequeno sítio e estava já acertado o encontro da família e de alguns membros da Igreja. Eu estava curioso para ver qual era o divertimento deles. Fui espremido no carro ao lado de Mariana, no meio “Améns” e “Aleluias” e “Glórias a Deus” que não acabavam mais!
— Vamos buscar o irmão Filipe!
Buzinaram na frente da casa dele. Na minha cabeça parece que até o ecoar da buzina dizia “Amém”! Acho que mais uma vez estava amarrando o burro no lugar errado. Devia ter saído com a Thalya!
O trajeto foi feito em meio aos hinos: “fervor”, “ardor”, “amor”......
— Canta aí, Edu! — Mariana me cutucava. — Eu não sei a letra!
— Mas é tão fácil! Olha...”fervor”, “amor”, “ardor”! Eu só enxergava as rimas.
— Não quero cantar. — Fiquei de cara amarrada. Aquilo já estava me enchendo!
Nessa altura eu já sabia alguns pequenos feitiços que precisava por em prática. Só não pedi a Abraxas para ele fazer bater o carro porque eu estava dentro. Pensei comigo em dado momento: “O que será que Marlon faria nesta situação? Cercado de crentes?!”.
Por sorte não era longe e chegamos logo. A chácara era modesta mas agradável, e o dia estava bonito.
“Tudo bem, talvez dê para aproveitar um pouco, afinal, apesar desses crentes todos!”
Foi o meu pensamento. Mas parecia que a Igreja inteira estava lá, oh, que coisa! Os carros não paravam de chegar, abarrotados de comida no porta-malas. As mulheres começaram a arrumar tudo em diversas mesas enquanto os homens se incumbiam do churrasco. As crianças e os mais jovens reuniram-se no pequeno campo de futebol ao lado.
Mariana ia me apresentando ao restante da família e aos conhecidos. Ninguém me olhou torto por causa do cabelo aparado e uma aparência mais decente. Mas implicava-me especialmente o rapaz de cabelinho engomadinho que não parava de me encarar. Qual seria a daquele cara? Mariana esclareceu quando inquirida a respeito, procurando inocentemente me provocar um ciuminho:
— Aquele ali é o Eliseu. É que ele gosta de mim, sabe? Já faz tempo! Grande coisa que ele gostava dela, como se me fizesse muita diferença. Nem
me dei ao trabalho de responder. Mas fiquei de olho nele. Eu estava na condição de namorado, e não ele. Será que não dava para ele ir encarar outro gaiato?
Procurei me distrair mas o fato é que o tal do Eliseu começou a me irritar ao extremo. Volta e meia lá estava ele me olhando.
Convidaram-me para uma pelada. Recusei polidamente. Eu era péssimo de bola!
Ao lado de Mariana, encarapitado num galho de árvore, eu mantinha um olho nela e outro no jogo. Estavam orando antes de começar, vê se pode uma coisa dessas! E acertaram que um time era
dos “Querubins” e o outro dos “Serafins”!
— Que gostoso estar aqui, né, Edu?! — Mariana era muito carinhosa e meiga, fazia afagos no meu cabelo e na minha mão. Que pena que fosse Cristã! — Olha só este verde! Não é ótimo sair de São Paulo um pouco?
— Se é! — Eu sorri de volta e procurei não prestar atenção nos rapazes que corriam atrás da bola. Nem no Eliseu, que corria se exibindo.
As tias de Mariana passavam por nós a toda hora, sempre olhando para cima. Às vezes ficavam paradas um pouco mais longe, mas sempre de antena em nós. E pareciam sempre cochichar, esquecidas que eu poderia perceber a indiscrição. E tão esquecidas estavam que volta e meia literalmente ficavam falando e falando, quase bradando, voltadas na nossa direção. E de repente parece que caíam em si, e acenavam. Me parecia um comportamento muito estranho e eu procurava fazer de conta que não estava percebendo.
Mas num dado momento achei graça. Uma delas acenava-me tão insistentemente que achei pouco delicado da minha parte ignorar. E com um sorriso e um gesto de cabeça, acenei de volta.
— Tchau!
Mariana me deu um tapinha de leve no braço:
— Eduardo! Não faz isso!
— Ué? Por quê? Ela está me dando tchau faz tempo!
— Não é tchau! Elas estão intercedendo!!
— Orando, é o que você quer dizer, não é? E precisa ficar chacoalhando a mão desse jeito na minha direção?!
Mariana estava séria e explicou:
— Não é “chacoalhar” a mão! É que ela está revestida do Poder do Espírito e a mão treme mesmo.
Acho que não consegui controlar muito bem a expressão do rosto.
— Poder do Espírito, é? Tá bom, então. Nem dei mais corda. Eram um bando de loucos, coitados...! Os sanatórios devem estar cheios de poder, então.
— Mas é isso, sim!
A bola correu para baixo da árvore e o Eliseu veio correndo pegar. Eu já não conseguia ouvir o que Mariana me dizia sobre o Espírito. Segui Eliseu com os olhos e comecei a sentir aquela raiva cada vez maior crescendo dentro de mim. Era tanta, tanta raiva que já nem era raiva. Era ódio mesmo. Aquele ódio cego, descomunal, indescritível! Comecei a sentir os olhos muito quentes, cheios de sangue.
Eu queria causar algum estrago e isso era tudo em que eu conseguia pensar. Queria ver ele passar algum vexame na frente de todos! Queria causar um pouquinho de dor, nada de muito grave, quem sabe um machucadozinho, talvez?...
Tinha mesmo que ver se aqueles pequenos Feitiços que aprendera funcionavam. Discretamente eu fiz o sinal do Pentagrama no ar e o empurrei na sua direção, pronunciei baixo o encantamento em aramaico. Foi aí que escutei, vindo de longe:
— Eduardo? Edu?! — Mariana me chamava olhando com ar esquisito para mim. — Tudo bem com você?
— Tudo. Tudo bem, por quê?
Ela estava visivelmente emocionada, quase em lágrimas, e sorria de felicidade:
— Meu bem, você entrou em transe. Eu te chamava e você não respondia. E você falou em línguas!
— Ah...é?... — Me fiz de morto, sem compreender direito. Será que eu tinha mesmo voado?
— É o Poder do Espírito Santo sobre você! As orações foram atendidas! Você sem dúvida deve ter aceitado Jesus ontem no Culto e hoje o Pentecostes desceu sobre a sua vida! Oh, eu estou tão feliz!!! — E me abraçava com força. — Vamos! Quero contar essa benção para todos. Como Deus é maravilhoso!
Eu ignorei o que ela dizia, ainda sentindo ódio e só queria ver o que aconteceria. Parece que Abraxas esperou que eu tornasse a voltar os olhos para o jogo. Foi a conta para ver o Eliseu tomar um tombão, após colidir com outro rapaz. Até aí, nada de mais. Mas um terceiro que vinha correndo atrás deu-lhe um chute na boca ao invés de na bola. Coincidência ou não, lá estava o sangue espirrando, pingando pelos lábios, como eu desejara.
Não houve nada de muito irrecuperável, mas o transtorno comeu uma parte do seu dia e dos demais. Voltando do Pronto-Socorro explicou que tinha quebrado dois dentes e levado uns pontos na parte interna da mucosa bucal.
Passado o susto, Mariana não desistiu e fez a festa a seu modo, arrastando-me junto com ela e contando as “novas” aos parentes e amigos:
— Ele foi batizado no Espírito Santo e falou em línguas! Eu vi! Novamente foi “Glória a Deus”, “Amém” e “Aleluia” demais para o meu gosto.
Saí dali disposto a por um paradeiro naquilo de uma vez por todas. Não ia dar para continuar com
Mariana embora ela fosse uma moça muito bacana. Eu já estava saturado dessas coisas em casa de Camila, e ia agora trocar o roto pelo rasgado??? Antevi a tortura: ser arrastado para a Igreja todo final de semana e ser obrigado a conviver com aquela gente eternamente! Impensável!
Quando contei à Thalya o meu final de semana ela comentou:
— Nossa, cara, eu não sei como é que você suporta isso! Se fechar a área vira hospício, e se cobrir, vira circo!
Ela tinha razão. Terminei o namoro imediatamente, naquela semana mesmo. Ironicamente foi no Dia dos Namorados, e Mariana tinha até me comprado um presente. Mas fui irredutível! Ela chorou e chorou, não entendeu minha pressa em terminar o que parecia estar indo tão bem.
Procurou-me algumas vezes depois disso, no Parque perto de casa. Eu havia montado um grupo de vizinhos que treinava Kung Fu comigo todos os sábados.
Mas eu não lhe dei muita trela e Mariana acabou por desistir. Deixei bem claro que estava mesmo tudo acabado.
E Camila, por sua vez, voltou a me procurar insistentemente jurando de pés juntos que tudo seria diferente. E reatamos. Era tão difícil eu ter certeza se gostava mesmo dela ou não...
Tirando o percalço com Mariana, que depois passou a me evitar acintosamente, estava me dando bem e satisfeito com o serviço na Canion Tower. Ainda que eu continuasse a ser meramente um auxiliar administrativo. Mas as minhas responsabilidades cresceram e passei a fazer tudo o que havia dito que fazia no outro emprego, e que na realidade era mentira.
Como não fosse nada que exigisse muito, eu me dei bem e logo fui também designado para auxiliar um rapaz que trabalhava no setor de câmbio, o Marcos. Ele era Técnico de Câmbio e estava
sobrecarregado devido às férias de um colega.
Quando iniciei o serviço soube da existência de uma vaga de assistente administrativo não preenchida.
Me informei melhor e lembrei da Thalya:
— Posso indicar uma amiga para a vaga?
A resposta foi afirmativa. Liguei para o posto de gasolina na mesma hora:
— Thalya, vê se você vem almoçar comigo hoje! Tenho uma surpresa. A voz de Thalya soava estridente do outro lado:
— O quê?! Nossa, que barulho tá aqui hoje! Surpresa? Que surpresa?!
— Vem que você fica sabendo!
— Ah, Edu, dá uma dica! — Gritou ela.
Desencostei o fone do ouvido:
— Caramba, esse telefone funciona bem, heim? Tô te aguardando, OK?— Falou!! — Gritou Thalya de novo antes de desligar. Mais tarde eu desci para almoçar com a mochila nas costas. Normalmente ela vinha vazia e voltava cheia. Era tudo tão estratégico! O refeitório da Canion Tower era uma coisa como eu nunca tinha visto e eu comia para valer. Não contente com isso, ainda levava tudo o que me interessava, enchendo a mochila com iogurtes, frutas, refrigerantes em lata e o que mais pudesse carregar. Afinal, as refeições não eram descontadas do meu salário!
Thalya atrasou e fiquei cheio de esperar. Fui comer sozinho e abarrotar a mochila como de costume.
Estava já sentando à mesa quando meu amigo de setor, o Fábio, entrou refeitório adentro com a “figurinha”! Lá vinha Thalya com o macacão do posto, com boné sobre seus cabelos amarrados, tênis manchados de graxa e cheirando gasolina! Bem disposta a chocar todo aquele que cruzasse com ela.
Não quis acreditar:
— Mas, Thalya! Por que você não trocou de roupa?!!
O Fábio só olhava, sem dizer palavra, impressionado pela beleza dela apesar da indumentária pouco convidativa. Todo o refeitório também notou a presença de minha estranha convidada.
— Ah, cara, que que tem?! — Thalya deu de ombros lançando-me o sorriso mais maravilhoso do mundo.
Pensando bem... grande coisa mesmo!
— Tá bom, vá! Senta aí e come alguma coisa, se quiser mais tem na minha mochila. Nem vou te perguntar como você me encontrou aqui!
Thalya nem precisou se servir. Havia o bastante para três em minha bandeja. E ela nem mesmo comeu muito, só um iogurte e duas maçãs.
Expliquei do que se tratava. Thalya sequer olhou para os lados.
— Se você disser que sim, já te indico já! Topa fazer a entrevista? — Perguntei por fim.
— Mas nem! Por que você não me avisou antes, heim, Edu? Agora eu tenho que voltar até o posto.
— Você já devia ter vindo arrumada, né, Thalya? Quem mandou inventar? Mas tudo bem, corre lá, se arruma e vem para a entrevista.
— Legal! — Thalya apoiou os cotovelos na mesa para terminar de comer a maçã.
Resumo da ópera: Thalya fez mesmo a entrevista. Mas não naquele dia, sexta. Foi na segunda-feira à tarde. E na quarta-feira pela manhã estava trabalhando comigo, no mesmo setor.
Tanto eu quanto ela estávamos esfuziantes de alegria!
Consegui por fim contar as novidades ao Marlon. Ele estava muito defasado das notícias, pois agora não apenas eu, mas Thalya também estava trabalhando no Canion Tower.
— Marlon, adivinhe de novo! — Exclamei.
— Tem a ver com o Canion Tower. — Respondeu Marlon sem rodeio.
— Pois é. Thalya também está lá!
— Isso é ótimo! Afinal de contas vocês tem que estar juntos, certo? Eu olhei com certo espanto para ele.
— Temos que estar juntos...? Bom, isso se refere ao contexto da Irmandade, não?
— Não apenas. Vocês têm mais Poder unidos, filho. Eu já cansei de falar isso! Vocês se completam.
— Bom...e você não está contente que nós entramos? Ele riu com a pergunta:
— Mas é claro que estou contente! E é claro que vocês dois iam entrar! Não era lá que você queria trabalhar?
— É, queria...
— Pois então... lá você está! E não se esqueça. Você e Tassa devem estar juntos.
Não compreendi bem. Estava meio atordoado. Marlon já sabia de novo... então...? Não pude ficar quieto dessa vez.
— Você conhece alguém lá? — Perguntei, enfático, mas senti estar fazendo a pergunta errada.
Ele balançou a cabeça:
— Rillian...você é filho do dono-do-mundo! E tem uma Entidade poderosíssima ao seu lado. Você acha que ele não pode manipular pessoas? Quem são estas bostinhas humanas perto dele? Você é filho do Fogo! Bota isso na sua cabeça!
Fiquei pensativo. Marlon havia feito um "abre-portas" para nós. Usando para isso a força dos demônios. Que coisa.
***
Só aí realmente me dei conta do que ocorrera. Fora rápido demais... tantos concorrentes... foi questão de dias tanto para mim como para ela! Eu falei sobre o Canion Tower e dias depois... estava lá! Um pouquinho mais...e também Thalya! Que coisa... que coisa!
Durante os primeiros dois meses eu fiz o meu serviço rotineiro pela manhã e à tarde dei suporte ao Marcos no setor de câmbio, mesmo depois que o tal colega retornou das férias. Eu já tinha uma noção daquele assunto devido a meu curso técnico em Administração e realmente me interessei bastante. E procurei sinceramente aprender como funcionava o trâmite cambial.
O Marcos era bastante acessível, respondia com paciência a todas as minhas perguntas e sempre que sobrava tempo ensinava-me tudo o que eu queria saber.
Ao cabo dos dois meses ele adoeceu e teve que ficar em casa vários dias. Trinta dias em licença médica. Teve sarampo. O Gerente do setor, que já estava habituado comigo zanzando ali diariamente sugeriu, meio em caráter emergencial, que minha chefia me cedesse "emprestado" durante aquele período a fim de cobrir o buraco. Como não houve objeções, logo fui procurado pelo Gerente do Câmbio para oficializar o pedido:
— Eduardo, você tem aprendido bastante o trabalho por aqui. Daria pra quebrar nosso galho por uns dias até ajeitarmos esta situação?
Concordei com bom ânimo:
— Com certeza posso não fazer o melhor, mas farei o melhor que posso. Pode deixar, não haverá problemas, eu estou bem familiarizado com a rotina. O senhor não se arrependerá! — Para variar, supervalorizei meu trabalho, me vendi com classe!
Toda segurança que eu apresentava exteriormente não era lá o perfeito reflexo da realidade. De fato eu aprendera muito naquele período. Todo o substrato que necessitava eu o tinha bem à mão, e ainda contava pontos a meu favor o fato de "correr atrás" do conhecimento. E a oportunidade que surgiu em tão pouco tempo era absolutamente imperdível!
Havia outros Técnicos de Câmbio, uns vinte mais ou menos. No entanto todos eles estavam ocupado demais com suas próprias rotinas, de modo que não podiam incorporar mais carga de trabalho ao que já faziam. Então, lá estava eu! Sozinho de verdade.
Carreguei minha mochila para minha "nova mesa". Ainda que por pouco tempo, é verdade, mas enquanto eu estivesse ali... o lugar era meu e pronto! Inspirei fundo, lançando um olhar para as pilhas
de papéis à minha frente.
— OK... vejamos! — Comecei a remexer nas coisas um tanto ou quanto nervosamente. — Não deve ser tão terrível assim. Faz até que um bom tempinho que tenho acompanhado toda esta coisa. O chefe confiou em mim e sabe que farei um bom trabalho. Caso contrário, não estaria aqui!
Tomei a calculadora financeira, uma HP-12C, e a caneta nas mãos. Afundei-me na mesa para tomar pela primeira vez minhas próprias decisões. Até o meio da manhã tudo correu sem novidades. Mas depois apareceu uma questão um pouco mais delicada.
— Nossa... — Minha mente rodopiava velozmente diante das conclusões a que fui chegando. — Será que estas taxas estão certas mesmo? Devo despachar isto para a CACEX...ou não? Pelos meus cálculos e análises, faria assim... assim... e assim...! Acho que isso é o melhor. — Eu rabiscava incessantemente no bloco de anotações à minha frente. — Mas seria tão bom poder conferir com alguém!
Ergui os olhos. Nem adiantava pedir qualquer orientação aos outros Técnicos, disso eu sabia bem. Todos estavam de nariz virado para mim. A maioria achava que era um tanto ou quanto cedo para eu estar sentado ali. Bem, não tinha sido idéia minha. E eu não queria perguntar nada ao Gerente logo no primeiro dia!
"Aceitei o desafio... e eu vou me sair muito, muito bem
E o primeiro passo para isso era não confiar em nenhuma dica deles. Eu sabia que a melhor maneira do serviço deles sobressair era fazer o meu ir de mau a pior. Só que eu tinha alguém melhor com quem contar!
Levantei-me da mesa e fui ao banheiro, único local onde haveria um mínimo de privacidade. Entrei dentro da cabine, fechei-a bem. Ajoelhei-me em posição za-zen sobre a tampa do vaso. E pedi ajuda.
— Olha, eu não sei o que fazer, Abraxas! — Murmurei em um tom baixo quase inaudível aos ouvidos humanos, mas muito audível aos ouvidos dele. — Você existe desde antes que o mundo fosse mundo, a sua sabedoria é incomparável! Então o que é este serviço, estas exportações e importações, estes negócios para você? É nada! Me ensine, meu amigo, me ensine, Abraxas! Diga-me o que devo fazer exatamente. Aumente minha capacidade, minha inteligência e meu raciocínio. Usa meu corpo se for necessário, mas ajuda-me!
Esperei um pouco, de olhos fechados, mas não senti qualquer indício da presença dele. Insisti um pouco ainda, mas nada ocorreu.
"Esse Abraxas é meio de lua! Custava dar um pouco de atenção?!", pensei comigo mesmo, ao escutar barulho de gente no banheiro. Abri a cabine e retornei ao setor.
Diante de minha principal dúvida, resolvi arriscar e perguntar ao Técnico sentado na mesinha ao lado da minha. Mas realmente era a velha história da "panelinha".
— Deixa aí que daqui a pouco eu vejo. — Respondeu o rapaz. — Eu preciso finalizar uma negociação importante antes do meio-dia!
Não deixei. Ele que fosse para o Inferno!
Havia uma moça, a Malú, que desde o início me pareceu mais confiável. Ela escutou minha pergunta e procurou ajudar-me, demonstrando solicitude e boa vontade:
— Olha, Eduardo. — Disse-me ela após ter se inteirado melhor da questão.
— Você pensou bem e acho que você poderia fazer assim mesmo... mas que tal...
— E deu-me algumas dicas.
Ainda assim eu estava na dúvida se realmente era o melhor. Acatei em parte o que ela sugeriu e o resto resolvi por mim mesmo da maneira que julguei mais conveniente. Aquilo tudo envolvia milhões...! Um erro poderia ser crasso.
Tudo pronto e eu ia já despachar para o boy os documentos, quando escutei claro como água cristalina:
— Não faça deste jeito. — E Abraxas falou-me pouco mais de meia dúzia de palavras, orientando-me no que deveria investir e qual importação liberar.
Ele não fez nem como eu queria e nem como Malú dissera. Mas não questionei mais nada, nem sabia o que estava fazendo, mas resolvi o problema conforme Abraxas dissera. Depois encaminhei ao Gerente para colher sua assinatura:
— Você pode dar uma olhada nestes papéis? — Coloquei os documentos na mesa dele. — Já estão prontos!
Ele olhou, olhou... e não dizia nada! Dei uma vacilada. Embora soubesse que aquele que tinha falado comigo existe desde antes da fundação do mundo, e que para ele aquilo era brincadeira de criança... senti uma sensação ruim na boca do estômago.
"Ai, ai, ai. Será?!"
— Deixa isto aqui um pouco. — Falou o Gerente. — Vou analisar melhor, depois falo com você.
Voltei para minha mesa um pouco tenso. Será que eu tinha feito alguma besteira???!!
De soslaio eu olhava para ele, através dos vidros. Percebi que ele continuava olhando para os
papéis... depois olhava para mim... aí para os papéis de novo... tomou a calculadora financeira, fez contas... levantou, levou os documentos para outro Gerente, discutiram a respeito... aí os dois começaram a fazer contas... depois levantaram...
— Ihhh...acho que fiz algo que não devia! — Resmunguei.
Fiquei esperando. Meia hora. Não tinha o que fazer, até que o Gerente voltou e com um meneio de cabeça, perguntou-me:
— Escuta... de onde você tirou esta idéia?
— Que idéia?
— Bem, isto aqui que você fez! Sabe que nós não tínhamos pensado nisso? Está perfeito! Esta operação vai trazer um ótimo lucro, talvez milhões!!! Nossa, é fantástico! Tremendo! Parabéns, muito bom mesmo, Eduardo! Você tem grande habilidade, que faculdade você faz? — Ele não parava de me elogiar, batendo no meu ombro, algo até fora de proporção. Nem parecia verdade. — Como você descobriu isto?
— Intuição. Acho que foi só intuição.
— É muito bom ter você aqui. Depois vamos conversar mais.
E eu só pensei comigo mesmo: "Desde que ele não me faça nenhuma pergunta muito técnica..."
Todo cheio de mesuras e sorrisos, o Gerente tomou a caneta e assinou os papéis. Parecia que tinha implantado dentes postiços, tão feliz estava com a solução que eu havia apresentado. A partir daí houve um estopim. E o serviço fluiu realmente.
Abraxas orientou-me audivelmente mais umas três ou quatro vezes, mas depois o serviço tornou-
se fácil e, como gostasse daquilo, estudei e aprendi muito. Eu gostava de estudar quando o assunto me interessava. Sempre gostei! Aquilo não era dificuldade nenhuma.
Procurei aprender também com meus colegas que, nessa altura, diplomaticamente deixaram de ser grosseiros. Havia mais de uma maneira de atingir o mesmo fim, por isso cada um desenvolvia uma rotina individual de trabalho que melhor se adaptasse aos problemas. E meu prestígio perante a Gerência cresceu tanto que alguns Técnicos até queriam aprender comigo!
Eu deslizava como sabão quando não era capaz de resolver uma parada. Quando a dúvida era pertinente e não urgente, levava ao conhecimento de Marlon, que me orientava como proceder. Aquilo valeu muito. Mais do que um curso de Faculdade pois aprendi na prática, no dia-a-dia. Quando comecei de fato a dominar completamente a rotina procurava sentar com meus colegas e captar seus problemas e dificuldades nos processos. E novamente levava as dúvidas para Marlon, às vezes até para Zórdico.
Isso foi um ótimo estímulo para mim, consistia num desafio! Venci muitos obstáculos e resolvi muitas questões, claro, com ajuda de Abraxas, Marlon e Zórdico! E como aprendi!
Acabei por ganhar a simpatia e respeito de meus colegas e de meus superiores.
***