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Capitulo VII
Capitulo VII

 

Em questão de cinco ou dez minutos, batidas na porta. Era Thalya, que resolvera subir também, alegando cansaço. Uma ou­tra moça a trouxera para o seu quarto. E como ela já sabia o cami­nho do meu...

Eu estava aliviado por poder estar ali em cima. Ainda sen­tia uma estranha sensação na boca do estômago, uma leve tremedeira por dentro, um calafrio que percorria a espinha e que, por vezes, até chacoalhava o corpo. Era incontrolável. Volta e meia eu me estremecia todo, cheio daquele nervosismo tênue, daquele misto esquisito de medo e prazer. Prazer porque eu era o privilegiado, o escolhido, o favorecido. Ainda que eu não soubes­se o que isto realmente significava na prática.

Mas minha cabeça estava em parafuso. Eu não sabia como ia digerir aquela Cerimônia!...

Até que foi bom ver Thalya parada ali na minha frente. Poderíamos conversar um pouco. Nem me passou pela cabeça sugerir que talvez fosse hora de dormir, ou coisas assim. No fun­do só queria ter certeza de que tudo o que eu vira tinha sido real mesmo. Isto é...se tinha realmente acontecido! Se não tinha sido um truque, ou efeito das drogas... ou se a tal criança não era um boneco, quem sabe?.......

Embora no íntimo eu soubesse as respostas, precisava con­versar, trocar uma idéia. Talvez eu quisesse me apegar àquela som­bra de esperança: tinha sido apenas uma alucinação coletiva. Por­que realmente não era possível que eu tivesse visto tudo aquilo!

— Que bom que você está aqui. — Disse à Thalya tão logo a vi parada na soleira da porta.

Ela espichou os olhos. Estava ligeiramente agitada.

— Seu quarto é bonito... grande!

Parecia não haver nada melhor a dizer.

Reparei de cara no pequeno curativo que ela tinha na mão esquerda, no mesmo lugar aonde eu próprio tinha um. Nem me lembro quem colocou o curativo em mim. Não fiz comentários.

— E o que é que você queria me contar? — Instiguei.

Mas Thalya esquivou-se, sorrindo.

— Ué? E por acaso você não tem nada para contar também?

— Eu tenho, sim. Você viu tudo aquilo!

— Tudo aquilo... o quê?

Eu não queria falar nada que a induzisse na resposta.

— Bom, você não viu nada de diferente?!! — Insisti.

Parecia um jogo. Tanto eu quanto ela esperávamos que o outro desse o primeiro passo e falasse sobre o que tinha visto. Eu sei o que ela sentia porque eu próprio estava amedrontado. E meu receio era dizer: “Você viu aquele monstro, aquele demônio?”, e receber como resposta uma negativa seguida do comentário: “Que demônio?! Você viajou, é?”

Por isso não me dei por achado:

— Mas você não viu aquilo!

— E o que é que você viu?! — Rebateu ela já meio impaciente.

— Ué, acho que vi a mesma coisa que você!

— Pois então, mas o que é que foi?

— Bom... você estava lá o tempo todo?

—Tava.

— E estava consciente?...

—Tava.

— Caramba... então você viu! Ora!!

— E se eu vi, foi a mesma coisa que você viu, Eduardo!

Por incrível que pareça o jogo de empurra perdurou por mais alguns minutos, mas não era porque estivéssemos fazendo graça. Então, intimamente decidi que realmente não era ainda o momento apropriado. Estávamos ambos muito tensos. Observei o semblante pálido de Thalya e resolvi encurtar o assunto.

— Bom, entra aí um pouco, vai. Deixa isso prá lá! Outra hora a gente conversa. — E encostei a porta do quarto assim que ela entrou.

Thalya pareceu um pouco mais confortável.

— Bonito o seu quarto! — Retomou ela, mais senhora de si. E observando melhor: — Por que é que o seu quarto tem essas velas aqui e o meu não tem?

Eu olhei, e as velas ainda estavam acesas.

— Ah, é? O seu não tem vela?

— Não, não! O meu não tem vela. O seu tem...

— É... interessante, né? São velas bonitas.

Parecia uma conversa de loucos. Ficamos mudos outra vez, lado a lado, pela primeira vez sem saber o que fazer. Eu não con­seguia encontrar nada inteligente para dizer, nada que disfarçasse um pouco o temor, nada que dissipasse aquela sensação torporosa, inquieta, angustiante.

Então, num sorriso nervoso, apontei a cama:

— Sabe? O meu colchão é tão macio! Olha só como ele é fofo! — E me atirei sobre a cama num salto.

De imediato ela correu e atirou-se também ao meu lado.

— Será que a gente consegue dar um salto mortal aqui, Edú?

— Acho que sim. Você quer tentar?

— Oba! Esse seu colchão é fantástico!

Ao que parece a cama dela não era tão privilegiada assim. E ficamos ali brincando, pulando, agitando as vestes negras, amarrotando os lençóis. E rindo loucamente! Um riso nervoso, compulsivo, incontrolável. Maravilhoso!

Depois daquele “desabafo” eu mostrei a ela o resto dos detalhes do quarto e o banheiro. Resolvi tirar o manto que àquela altura estava bem pouco confortável. Vesti minha calça e Thalya apropriou-se de minha camisa e meias.

Ajeitamo-nos na cama lado a lado; dei uma coberta para ela e peguei outra para mim. Recostados, ficamos olhando pela janela, para o dia que clareava, para os raios vermelhos que surgi­am bem ao longe. Ninguém tinha sono.

Mais relaxados, agora precisávamos conversar de verdade. Minha mente ia a mil por hora.

— Taí! Está fazendo falta uma bebida, um vinho, qualquer coisa! — Comecei eu, cruzando os braços em baixo da cabeça e olhando para Thalya toda encolhida sob as cobertas.

— É. Lá embaixo deve ter!

— Pois é, mas se a gente for lá embaixo o pessoal vai insistir para a gente participar daquela festa, e eu não quero.

— Tudo bem. Vamos só ficar aqui e conversar um pouco, tá?

— Tá. — Olhei novamente na direção da janela. — Puxa... a noite já passou.

— É. Foi tão rápido.

— Você tinha idéia de que a gente ia passar por tudo isso?

Ela demorou um tantinho para responder:

— Não tinha muita idéia, não.

— Que Castelo tão grande esse... nunca ia imaginar que acon­tecesse uma coisa dessas por aqui! Né?

Thalya tinha os olhos longe.

— E que porão tão... tão largo! Como tinha gente!

— E aqueles negócios da Inquisição? Você viu aquilo?

— Vi, pôxa...cada coisa, né?

— Você viu aquele aparelho, assim e assim? Sabia que aquele que é a “donzela de ferro”?

— É, eu vi! E tinha uma guilhotina também.

— E algemas para dedos, você viu?

— Ah, isso eu não vi. Tinha uns que eu não sabia para que serviam...

— É, nem eu.

Ficamos um tempo comentando a respeito dos tais instru­mentos. Por fim eu disse:

— Bom, você ficou ao meu lado até uma certa hora...mas depois você desceu de lá de cima?! O que que aconteceu? Aonde você foi?

— Foi mesmo, a Rúbia me chamou e descemos do altar. Fomos para um canto do salão... onde tinha um Pentagrama dese­nhado no chão, só que pequeno. Ali, sabe...? Perto do altar, só que embaixo, ao lado da parede; tinha bastante espaço, uma ala bem boa ali. De qualquer forma, não tinha visão para saber o que se passava com você lá em cima. Depois, nem pensei mais nisso, a Rúbia foi muito simpática comigo, e havia junto mais três mulhe­res que nos acompanhavam. Nós sentamos sobre ele... sabe, sobre as pontas do Pentagrama. Eu fiquei na ponta que correspondia à barba do bode. Como o Pentagrama era pequeno ficamos bem próximas uma da outra, formando um pequeno círculo. Demos as mãos e ficamos em posição de Lótus. Aí elas começaram a cantar uns mantras. Pediram para que eu simplesmente repetisse. — Ela respirou fundo. — E eu repeti. As palavras eram difíceis. Disseram então para eu fechar os olhos e só sentir! Foi então que comecei a sentir umas pequenas descargas elétricas, sabe? Como uns choquinhos pelo corpo que começavam pelas mãos, bem brando, suave... e depois iam aumentando. — Ela explicou melhor: — Como se estivesse passando uma corrente elétrica pelo meu corpo!

Eu assenti com a cabeça:

— Sei como é que é. Mas e daí, Thalya?

— Bom, a Rúbia estava com um anel no dedo anular esquer­do dela. Eu lembro bem, pois já havia reparado nele; tinha um símbolo no anel, um triângulo invertido. Aí ela encostou o anel na minha testa, aqui, no meio dos olhos e falou algumas palavras que não entendi. E pediu que eu repetisse também. Deram-me algo para beber num cálice. Era grosso, cor vermelho escuro. Acho que devia ter sangue misturado ali...e todas beberam depois de mim, na mesma taça! E cada uma, após beber, erguia a taça no ar, acima da cabeça, como se estivessem oferecendo um brinde a alguém. E sempre, todo o tempo, elas cantavam os mantras!

— Você teve que fazer também uma espécie de renúncia do Cristianismo? — Adiantei-me, curioso.

— Isso! Fiz, sim. Você também deve ter feito, né?

Acenei afirmativamente com a cabeça. Ela prosseguiu:

— Foi interessante... a Rúbia dizia uma frase e eu repetia. Tão logo eu acabava, as outras bradavam em coro a mesma coisa. A seguir Rúbia tornava a repetir a mesma frase de renúncia, só que em aramaico. E assim frase a frase, até o fim! Então, depois desta renúncia ela me perguntou se eu tinha certeza do fato de estar ali porque... como eu deveria saber...”este é um caminho sem volta”, disse-me ela. — Thalya emudeceu brevemente e deu de ombros. — Bom, nós já sabíamos disso! “Um caminho sem vol­ta...”, disse ela, “mas um caminho de liberdade plena, de alegria verdadeira” e etc. .. etc. .. tudo aquilo que nós já ouvimos muitas vezes. Mas o mais estranho foi depois disso. A Rúbia fez uns gestos com os braços, sei lá, foi meio rápido. Alguma coisa como umas sinalizações. Falou umas coisas e terminou cruzando os bra­ços sobre o peito com força. Ficou assim, de cabeça baixa, como se estivesse esperando, ou se concentrando. Pude perceber que a sua respiração começou a ficar mais e mais forte, mais pesada... e quando ela falou... não era mais a voz dela. Era uma voz masculi­na, grave! E os olhos ficaram diferentes quando olharam prá mim, mas não consegui ver bem, estava com o capuz muito puxado sobre o rosto. Aí ela, ou ele, falou encorajadoramente: “Não tema, minha filha. Seja bem vinda, você está na minha casa agora.” Disse também algo a respeito das alianças. Mencionou aquela que nos foi dada, dizendo que eu não me esquecesse do seu signi­ficado. Mas que agora a aliança era dupla porque nós dois, eu e ele, também estávamos unidos a partir daquele momento.

Thalya ergueu o rosto e olhou brevemente para os meus olhos. Depois continuou:

— Disse que a aliança que ele fazia comigo iria marcar a minha carne, mas a que eu tinha no dedo marcaria também o meu coração. Tive vontade... de perguntar se ele estava se referindo a você, mas faltou coragem. Deu um pouco de medo na hora.

Ela olhava e olhava para o curativo na mão esquerda.

— Engraçado... eu não senti dor nenhuma quando fizeram o corte, você sentiu?

— Também não. Este é o sinal da nossa aliança com eles. A marca na nossa carne...

— Eles estarão sempre com a gente agora...

— Bem, mas e aí? Foi só isso? Acabou?!

— Prá dizer a verdade não sei bem, esta parte ficou meio confusa. Mas lembro que a Rúbia colocou a mão na minha cabeça e ele falava através dela um monte de coisas que não entendi. Comecei então a sentir uma tontura estranha, uma vertigem... parecia que o ar estava pesado, muito difícil de respi­rar, e eu me sentia fraca... tão sem forças... aí parece que tive a impressão de escutar um grito... alto, de repente. Ou teria sido antes??... — Thalya estava com os olhos fixos no teto, a testa fran­zida revelando sua confusão interna. — Mas, por uns instantes, não mais do que um flash... parece que tive a impressão de estar contemplando outros seres, outra dimensão, sabe? Mas não sei!... Eu tinha aquela sensação de vertigem como se estivesse dro­gada, mas não parecia efeito de droga. Vi algo... só por milésimos, e depois desapareceu! — Ela olhou interrogativamente para mim, desviando-se do teto. — Será que foi alucinação?!

Eu estava mais assombrado do que ela e sentia o meu pró­prio coração acelerado. Procurei controlar a voz para responder. O relato dela me confirmava: tudo o que eu vira e ouvira tinha sido real. Minhas dúvidas acabavam de ser esclarecidas. Não ti­nha sido alucinação! De quebra, o gigantesco Abraxas era aquilo mesmo que eu tinha visto. Eu o vira e todo o povo na Cerimônia também. Por isso estavam todos tão impressionados comigo depois.

— Bom... acho que talvez não tenha sido alucinação, não... acho que vi algo parecido, mas não sei ao certo. — Respondi brandamente para não amedrontá-la.

Acontecera basicamente a mesma coisa comigo e com ela: um vislumbre de uma outra dimensão após a aliança com nossos Guias. A diferença é que Abraxas preferira materializar-se à mi­nha frente e o Guia dela tinha canalizado o corpo de Rúbia. Além de que meus olhos espirituais haviam permanecido abertos por mais tempo. Senti novamente um calafrio descendo pela espinha.

— Você está com frio? — Perguntou Thalya.

Eu ri um pouco, meio nervoso:

— Só um pouquinho!

— Vê se você se cobre melhor! — E concluiu seu relato: — Depois que eu vi aquela dimensão acho que... desmaiei...! Só sei que apaguei depois da visão. Se sonho, realidade, alucinação, não sei. Mas a partir daí não me lembrei de mais nada. Quando voltei um pouco ao normal eu já estava sentada numas almofadas e não mais sobre o Pentagrama. Elas sorriam para mim e me abraça­vam. Foram muito gente fina! Não faltaram todo tipo de palavras doces. Então a multidão já estava como que se dispersando e uma delas disse para irmos, porque logo eu poderia encontrar-me com você de novo!

— Você não ficou sabendo o nome dele?

— De quem?

— Do Guia. O demônio.

— Ah, não. Ele não disse. Mas e aí? O que houve com você?

Era a minha vez. Naturalmente eu omiti a maior parte por­que era óbvio que Thalya fora a única que não vira Abraxas. E também não vira o que acontecera à menina. Testei um pouco o entendimento dela e vi que Thalya perdera a consciência de alguns momentos da Cerimônia. Eram aquele períodos em que ela ficava como que “em transe”. Perguntei, de leve:

— O que deu em você? Você divagou, é?

— Ah, parecia às vezes que eu estava nadando em nuvens! Uma delícia! Depois acordava, voltava ao normal.

Deveria haver um propósito naquilo e não seria eu quem iria esmiuçar detalhes. Estava muito claro que ela não o suporta­ria agora. Um breve vislumbre do mundo espiritual a pusera inconsciente... eu não poderia contar-lhe tudo na íntegra. Me detive a falar mais da periferia da coisa, o sangue, a marca na mão, a renúncia e os prováveis seres que eu julgava ter visto também. Deixei o resto de lado. Mais tarde conversaria a sós com Marlon.

Levantei e olhei pela janela. O sol havia nascido e ia já alto. Havia um desfile de carros lá embaixo.

— Olha só quanta gente indo embora! — Exclamei.

— Acho que a festa acabou. — Comentou Thalya, espiando também.

O relógio marcava mais de sete horas. Eu não conseguia mais ficar trancado dentro do quarto. Subitamente meu maior de­sejo era estar lá fora e caminhar pelo verde daquele gramado.

— Vamos andar um pouco lá fora? — Indaguei.

— Vamos. Eu também não vou conseguir dormir. Espera aí um pouco que eu vou me vestir lá no meu quarto!

Eu me aprontei também, e ela logo estava de volta.

Parados na porta do quarto, olhamos para os dois lados do extenso corredor. Apesar do dia claro a sensação de irrealidade perdurava e só de contemplar o longo corredor ficamos nervosos outra vez. Hummm... como era mesmo que se saía dali?

— Nossa! — Desabafou Thalya num suspiro. — Nem parece que isso está mesmo acontecendo com a gente!

— Tirou as palavras da minha boca!

Aquele temor à flor da pele não nos deixava. Junto com uma impressão meio indistinta de que talvez não fosse muito se­guro perambularmos sozinhos por ali.

— E se a gente abrir alguma porta que não é para abrir? Vai que a gente vê alguma coisa que não é para ver... — A voz de Thalya morreu na garganta.

— Será que eles matariam a gente? — Perguntei incontinenti.

— Você acha?!!

— Deus também matou muita gente! — Eu estava com idéia fixa. — O que há de errado nisto, afinal? E eles ainda jogavam sangue na cara das pessoas, “aspergiam” nelas! Que é que tem? Deus não mandou Abraão matar o próprio filho? O Cristianismo está cheio de atrocidades!

— Mas isso é lá com os Cristãos. Nós estamos numa das casas de nosso pai!

Era verdade! Procurei deixar Deus de lado. E deixar que as idéias acerca de nosso pai Lucifér voltassem a inundar minha men­te. De posse desses pensamentos eu e ela procuramos nos tranqüilizar. Ele era nosso pai! Havíamos sido tão bem recebidos... não havia o que recear.

Aquilo aliviou um pouco o impacto. Mas eu me sentia como que acordando de um longo sonho! Parecia meio “fora” de mim mesmo, perturbado com a realidade, numa espécie de choque. Minha cabeça martelava, martelava, martelava. Eu só via e revia aquela cena grotesca.

— Isto aqui me faz lembrar o filme do Drácula, isso sim! Não sei para onde ir neste lugar!

— Vamos tentar ir descendo, né?

— OK. Mas não muito, heim? Vai que a gente acaba indo parar lá no porão...

Eu não queria saber como eles iam fazer para deixar tudo limpo. Queria ir para o jardim!!!

— Será que tem alguma câmera por aqui? — Thalya erguia o pescoço, procurando. — Será que tem como eles verem a gente? De qualquer jeito eu lembro qual era a escada do porão. É só a gente não ir por lá.

O silêncio era sepulcral no corredor. Nem o som antigo das caixinhas de som se fazia ouvir. E estava meio escuro porque eram poucas as entradas de luz. De resto, tudo apagado. Mas Thalya estava valente. Discutimos ainda por alguns minutos acerca do que fazer. Ao mesmo tempo em que queríamos sair parecia ser mais seguro permanecer no quarto e aguardar que alguém viesse à nossa procura.

Ela apoiou a mão no batente da porta. A aliança brilhava no anular, na mesma mão que havia o curativo.

— E esta aliança, heim, Edú? O que será que eles querem dizer com isto?!

Utilizei uma ilustração simples dos meus tempos de meni­no para formular a minha idéia:

— Lembra daquele desenho animado que passava na TV? O “Shazam”?

— Lembro.

— Então... lembra que o rapaz e a menina usavam um anel, na verdade um meio-anel, né? Quando eles uniam as duas meta­des do anel o desenho dele ficava completo, então podiam invo­car o poder do gênio Shazam. Acho que é mais ou menos por aí! A aliança simboliza o vínculo de sangue que existe entre nós e também que, separados, não temos tanto Poder quanto juntos. Juntos... é como fazer Shazam, entende? Podemos acessar e libe­rar um Poder infinitamente maior. São forças complementares, a minha e a sua.

Foi a primeira vez que o rosto de Thalya realmente se ilu­minou de alegria.

— Ah, é mesmo! Nós temos o anel do Shazam! Que legal, vamos poder fazer muita coisa juntos!

— É. Aliás, sabia que Shazam é o nome de um deus antiqüíssimo?

— Não sabia. Interessante aparecer esta idéia no desenho animado. — E olhando de novo para a aliança. — Mas elas não têm encaixe, Eduardo!

— Thalya, o encaixe é espiritual, né? O que está havendo com você?!

— Ah, que boba estou sendo!

Aquilo nos relaxou um pouco novamente. Eles não se dari­am ao trabalho de nos escolher, treinar, dar alianças, Iniciar-nos e depois... nos perder por qualquer tolice! Não havia realmente por­que ter medo.

— Então vamos!

Os corredores de carpete abafavam nossos passos de forma que escutávamos a nossa própria respiração. Havia uma ou outra lâmpada acesa de tempos em tempos, uma ou outra janela por onde entrava luz, uma ou outra porta aberta. E nada de viva alma em canto nenhum. O que era, de fato, muito estranho.

“Cadê todo aquele povo de ontem?!”

— Caramba! — Reclamei. — Não tem saída. A gente anda, anda e não sai em lugar nenhum!

Foi então que atrás de uma porta de madeira clara demos num recinto pequeno que parecia uma cozinha. Havia uma gela­deira pequena num canto.

— Olha só.

— Que lugar para ter uma geladeira! Que será que tem dentro?

Abrimos a geladeira. Nada de mais lá dentro, apenas garra­fas de vinho e refrigerantes.

— Oba! Vamos fazer uma boquinha! — Meu bom humor pa­recia estar voltando.

— Tem uns iogurtes também, ali embaixo, olha!

— Eu estou com fome, queria alguma coisa prá comer!

— Vamos tomar os iogurtes. — Decretou Thalya.

— Eu queria algo sólido. Algo para mastigar!

— Pelo menos tem iogurte.

— Tá bom.

Peguei todos eles e coloquei sobre a mesinha. Thalya ainda remexia nas gavetas da geladeira, no congelador.

— Caramba! Não poderia ter alguma coisa mais legal para comer?! Como é que pode?

— É, o negócio está feio!

Tomamos todos os iogurtes, um atrás do outro. Devia ter uns oito potinhos! Só que aí não achamos nenhum lixo.

— Pôxa, mas não tem lixo neste lugar? — Thalya ria, segu­rando os potes. — E agora?

— Fica chato deixar tudo em cima da mesa! Só se a gente puser de volta na geladeira.

— É, taí! Boa idéia.

Eu também ria, como se fosse a coisa mais engraçada do mundo. E dito e feito, os potinhos sujos foram parar de novo no mesmo lugar de antes.

— Será que eles vão matar a gente por causa disto? — Co­mentei meio que comigo mesmo.

Thalya nem respondeu, deixou passar, sem entender por­que eu estava tão obcecado com aquela idéia. E ao sairmos da cozinha demos de cara com Marlon, que vinha ao nosso encontro. Ele estava todo arrumadinho, pronto para ir embora.

— Ah, eu estava procurando vocês! — Foi logo dizendo. — Vocês não deviam estar em seus quartos?

— Ih, Marlon! Ninguém estava com sono, ficamos conver­sando.

— Só vocês, heim, crianças?! O que vocês estão comendo? — Perguntou com ar satisfeito.

Eu retruquei logo:

— Comendo! Pois, sim! Aqui não tem nada para comer.

— Nós tomamos uns iogurtes. — Respondeu Thalya.

— Vocês estão com fome, né? Deviam ter aproveitado me­lhor o jantar. Enfim... — E com um ar levemente zombeteiro: — Vocês estariam... quem sabe... procurando a saída? — Ele achava graça.

— É. — Respondeu Thalya meio encabulada.

Marlon continuava olhando carinhosamente para nós ao concluir:

— Mas pelo visto a geladeira atrapalhou a empreitada, né? Demos risada os três e o temor dissipou-se de vez.

— Vocês deram um passo muito importante esta noite! — Falou Marlon muito naturalmente. Ele parecia conhecer os nosso pensamentos. — Não precisam ficar com medo de nada, assom­brados com nada, viu? Vocês estão em casa, em família. Aliás, sintam-se à vontade para andar por onde quiserem; podem explo­rar tudo por aí, abrir portas, xeretar. Sem medo. Compreende­ram? — E, zombeteiro novamente: — Só que não sei se vocês vão conseguir achar algo para comer, porque também já procurei e não achei nada. Se vocês quiserem, podemos ir embora e comer pelo caminho. Que tal? Querem?

Aquilo nos acendeu e concordamos.

— Mas...e o manto? Tenho que ir buscá-lo lá em cima.

— Não, não. O manto não vai sair daqui. Você nunca vai levar esta roupa para sua casa; ela fica, damos a você sempre na hora que precisar usá-la!

— Que interessante... — murmurei.

— Sim, porque é melhor não correr riscos com estas vestimentas. Creio que você compreende. Já imaginou o que sua mãe não diria se visse isto?

Demos risada de novo.

— Faz sentido! — concluiu Thalya.

Marlon ainda brincou:

— Mas a maior vantagem é que vocês nunca correrão o risco de esquecê-la!

Fomos saindo devagar, conversando, e quando demos pela coisa já estávamos lá fora no jardim. O carro estava parado, es­quentando os motores. A volta foi muito tranqüila e Marlon falou pouco a respeito da Cerimônia. Limitou-se a fazer comentários breves no início do percurso:

— Estou realmente satisfeito com o que aconteceu esta noi­te. — Reiterou ele. — E olhe, Eduardo, o seu Guia é muito podero­so, você ainda não tem a real dimensão do que significa todo este privilégio. É concedido a poucos. Pelo que sei Thalya também foi bastante contemplada, mas ainda não o viu face a face, não foi? Isto ocorrerá em breve. Foi da maneira que foi para preservá-la. Às vezes, o impacto inicial pode ser muito grande! — Ele inspirou fundo, aparentando orgulho conosco. Recostou-se melhor e co­mentou: — Existe talvez um único problema... o que aconteceu com vocês pode despertar a inveja de algumas pessoas.

Ficamos quietos, esperando pelo resto. Ele limitou-se a dizer:

— Mas não se preocupem com isto. Coisas assim aconte­cem às vezes. Depois, os seus Guias são poderosos o suficiente para intimidá-los. Esta força que vocês adquiriram... agora vão aprender a moldá-la. Precisam aprender a controlá-la e usá-la a seu favor. É como água! A água é tão... maleável! Adaptável! Apa­rentemente tão inócua mas... se bem canalizada, pode fazer funci­onar uma usina hidroelétrica, dar energia... força... a uma cidade inteira!!! Da mesma forma, uma tempestade pode causar grandes estragos!

Ficamos pensativos, digerindo aqueles conceitos. Era certo... havíamos adquirido algo. Agora o dia-a-dia mostraria o resto! Mostraria como fazer fluir aquela “água”!

— Usei a água apenas para exemplificar. — Retomou Marlon. — Mas o que vocês receberam é muito maior do que... água!

Thalya quis saber:

— Mas maior quanto?

Marlon foi, como sempre, muito sábio na resposta.

— Isto é relativo. O átomo, a rigor é a menor partícula que existe (embora existam partículas ainda menores recém desco­bertas pela ciência). Mas, bem manipulado, bem dominado, bem compreendido... ele pode virar...

— Uma bomba atômica! — Exclamei, com ênfase.

— Então, o Poder não está necessariamente ligado ao tama­nho. — Continuou ele. — Vocês podem até pensar: “Não passamos de crianças, somos pouco mais do que adolescentes... que Poder tão grande é este que dizem que temos agora? Quem tem poder é o homem maduro, experiente...tem poder o alto empresário...tem poder um exímio lutador... mas, nós?”

Concordamos com a cabeça. Este era um fato inegável. Não havíamos visto ninguém tão jovem na noite anterior. Eu tinha 18 anos e Thalya, quase 18. Éramos bebês perto dos outros!

— O Poder está na mão de quem consegue dominá-lo! — Continuou Marlon, agora bastante sério. — E domina-se o Poder com conhecimento. Nós já tiramos de vocês o “véu”; o Oculto, para vocês, já não é mais oculto. A partir de agora ele será claro como a luz! Tudo o que vinham aprendendo quase que só teoricamente... deixará de ser teórico. Vocês vão vivenciar, sentir, ver este Poder; vão aprender a lidar com ele, manipulá-lo cada vez mais. E aprenderão o que fazer para, mais tarde, adquirir mais Poder ainda!

Ficamos satisfeitos. Sem dúvida, a perspectiva era boa. Mais tarde, após termos ocupado um pouco o estômago, voltei a per­guntar. A pergunta não deixava de ser tola.

— Mas, escuta, Marlon, por que o Ritual acontece à noite? Não poderia ter sido de dia?

— Existem horas mais favoráveis. Faixas mais específicas, dependendo das Entidades que se apresentam. Existem Ritos que são feitos de dia, por que não? — E, calmamente: — Você lembra do salmo 91? “A seta que voa ao meio dia”? — Lembro... quer dizer, mais ou menos! — Pois é. Há setas que são certeiras ao meio dia. Outras, à meia noite. Como o próprio Jesus disse a um homem: “Louco, esta noite pedirei a sua alma”. Vocês vão aprender tudo isto em breve! Há muito chão pela frente e muito o que aprender. Afinal! Tudo é relativo! — Brincou ele. — Em suma: eu me sinto muito lisonjeado em poder acompanhar vocês e seguir de perto o seu crescimento. E para mim também somam-se pontos ganhos, sabi­am? Eu também vou aumentar minha “patente” — E riu. — Eu tam­bém vou receber mais Poder. É o que a Humanidade anseia não? Poder! E é isso o que nosso pai nos dá.

***

Poucos dias depois pude comentar de leve com Thalya so­bre mais alguns detalhes do Ritual.

— Sabia de uma coisa? Marlon disse que os doze signos da Astrologia são símbolos de doze assinaturas de Entidades pode­rosas. Já imaginou?! Mas não adiantou perguntar mais nada. Sabe o que ele disse? Voltou com aquela história: “Para você dirigir um carro, Eduardo, basta saber acelerar e mudar as marchas. Não é necessário conhecer toda mecânica do motor ou os cálculos de aerodinâmica! Por enquanto... basta saber dirigir! Cada coisa a seu tempo! Por enquanto, preocupe-se apenas com as interpretações”. Será que às vezes eu ainda estou sendo muito afoito?!

— Puxa... então era por isso que os signos estavam represen­tados nas paredes... — Murmurou ela.

Arrisquei falar também sobre a impressionante figura de Abraxas. Thalya escutou quieta e ficou se perguntando se veria ou não seu próprio Guia. Mas seu desejo foi atendido sem que ela precisasse esperar muito.

— Eu o vi, ontem! Apareceu no meu quarto! — Disse-me Thalya, muito espantada, na quinta-feira da semana seguinte. — Acordei sentindo uma sensação tão estranha que acendi o abajur. E ele estava lá! Ainda estava sonada e pensei: “Ué??? Quem é que pôs esse bicho de pelúcia aqui?”. Mas aí eu vi que se mexia e... falou comigo! — Thalya quase atropelava as palavras de tão efusiva. — Disse-me que ele iria me acompanhar sempre, que era um “príncipe das águas”! Já imaginou?!! Era como um urso cor-de-rosa!

Eu não podia deixar de dar risada:

— Não é possível! Você acha que um demônio vai aparecer cor-de-rosa, Thalya?!!

— Pode caçoar, mas eu vi, sim! E daí? Se não quiser acredi­tar, não acredita! — Thalya tinha um ótimo humor. — Mesmo por­que é o meu urso, tá? Você que fique lá com o seu coisa-feia! O meu urso é muito mais charmoso!

— Ah, não! Isso eu tenho que perguntar para o Marlon.

E tão logo pude fazê-lo, corri a contar tudo. Longe de Thalya.

— ...e você acha, Marlon? Que demônio vai agora se apre­sentar cor-de-rosa?!! Vá! Tenha dó!!!

— Eduardo, eles podem apresentar-se de muitas formas, você sabe disso. Se ela não está ainda preparada para ver sua aparência original, ele aparecerá de uma maneira que agrade a ela. Porque quer o melhor para sua protegida. Quando você quer agradar al­guém você se veste bem, passa um perfume, não é? Se sabe que sua namorada gosta de te ver de terno e gravata, você usa porque quer agradá-la. É a mesma coisa. O urso cor-de-rosa deve ter sido uma visão que agradou a Thalya.

Fiquei quieto. Ele continuou:

— Você gosta de se sentir protegido. Não é? — Marlon me conhecia bem. — Então Abraxas apresentou-se a você como um guerreiro, forte, poderoso. Para dar a você a sensação que mais se adapta ao seu perfil. Todos eles são fortes e poderosos dentro de suas hierarquias. Mas eles podem mudar como quiserem sua “ma­neira de vestir”. Claro que se Abraxas aparecesse cor-de-rosa, como um bicho de pelúcia... — Olhou-me com ar risonho.

Concordei de pronto:

— E mesmo, eu ia pensar: “Pô! Isto aí vai me proteger do quê?”. — Acabei rindo compulsivamente. — Um poodle gigante de guardião!

— Pois então!

Rimos bastante. Thalya e seu “poodle”! Depois disso volta e meia eu pegava no pé dela.

— E aí? Que cor está seu urso hoje?! — O nome dele era Thorzzodú. — Por que você não pede para ele tingir o pêlo ? Que tal azul bebê, ou roxinho?

Thalya não conseguia parar de rir com meus comentários. Tomava fôlego e respondia.

— Pelo menos ele não é que nem o seu Abraxas, com aquele cabelo de crina de cavalo!

— Pois é muito bonito o cabelo dele!

— Ah, tá bom, acreditei! Prefiro o meu urso do que o seu negão! — E ria, ria...

***

Depois de passado o Ritual de Iniciação eu estava ainda sem compreender realmente o que tinha — de fato — acontecido. Em se tratando de Abraxas...sim, ele garantira que estaria comigo e que eu não mais andaria só! Mas o que isso significava realmen­te?!!?

Foi Marlon quem me explicou o que eu deveria saber, al­guns dias após o Rito. O que conversamos me ajudou a compre­ender o que tinha se passado e de certa forma me preparou para os episódios que eu iria vivenciar em breve.

Nos primeiros dias depois que retornamos a São Paulo, nada aconteceu. Mas eu estava muito incomodado com algumas coisas e tive que ligar para Marlon durante a semana. Ele sempre tinha tempo para mim:

— Vamos então nos encontrar, filho! — Falou ele animada­mente. — Acho que precisamos mesmo conversar um pouco, não é?

O encontro foi informal e agradável, como sempre era. Sentamo-nos diante de uma tábua de frios no começo da noite.

— Compreenda melhor o que houve. — Disse-me Marlon a certa altura. — Lembra-se do conceito dos “Portais”?

— Sim, claro! O acesso às dimensões superiores, lembro bem.

— Está claro para você que foi isso que aconteceu?

Fiquei olhando para ele: — ??? — Você abriu um Portal, concorda?

Eu não sabia realmente a que horas eu o havia feito.

— Você foi co-participante do sacrifício, está lembrado? Es­colheu o instrumento e o seu sangue estava impregnado nele. Re­corda-se?

— Sei... recordo-me. Mas, quer dizer que... então vale desse jeito também?!... Enfim... o que o sacrifício tem a ver com a aber­tura de um Portal...? Bom, e se tem, não deveria ter sido eu mes­mo a... fazer aquilo... para. que funcionasse?

— De início, não. Você é apenas um Iniciado, nada sabe acerca de técnicas, não haveria como fazer por você mesmo. Mas da forma como aconteceu é como se você estivesse pagando o preço daquilo, consentindo cumplicemente com o ato. Depois o ungüento ficou pronto e o Sumo Sacerdote desenhou a cruz in­vertida entre os seus olhos. O ungüento que continha o seu sangue... e o sangue sacrificial.

Minha mente começou a entender. Era fato. Mesmo que ainda não pudesse fazer um elo entre o sangue e o Portal, foi aquilo mesmo que aconteceu.

— Então... quer dizer que o Portal foi aberto mesmo?!! Digo, o Portal da terceira visão, o Portal entre os olhos?!

— Exato. Mas apenas parcialmente. E você recebeu autori­dade para entrar em contato com Abraxas, e ele com você, por esse motivo. Se for necessária a canalização, ou semi-canalização, ele se utilizará deste único Portal. A princípio.

Inspirei fundo, pensando naquelas palavras.

— Entendo agora. Na hora, eu não tinha idéia...

— Bom, o fato é que você tem um novo amigo! — Marlon sorriu. — E precisa aprender a se relacionar com ele.

Eu escutava atentamente enquanto ele passou a me dizer como deveria ser para que minha amizade com o Guia começasse bem.

— O relacionamento com um amigo é uma coisa diária. A cada manhã... a cada noite... não é assim? Com Abraxas não será diferente! Assim como ele estará sempre a postos, pronto para escutar os seus chamados, interceder a seu favor, capacitá-lo, orientá-lo... você também tem a sua parte a ser feita. Afinal, agora vocês estão unidos por uma aliança de sangue!

Concordei com a cabeça:

— O que devo fazer?

— Uma vez por semana a sua gratidão deve ser manifestada e reconhecida perante ele através de um pequeno Rito.

— Sozinho? — Espantei-me. Ninguém nunca me falara nada sobre isso.

Marlon assentiu:

— Sim. Sozinho. É um celebração individual de vocês dois! Trata-se de uma verbalização, uma demonstração sua, através de um ato Ritual, de que você está feliz em ter sido escolhido e acom­panhado por ele. Naturalmente Abraxas saberá lhe corresponder durante esse momentos.

— Ahhhh! — Comecei a me empolgar. — E como é que eu faço isso, Marlon?

Ele passou a me explicar em detalhes minuciosos como deveria ser o Rito. Através daquela prática eu me tornaria cada vez mais íntimo de Abraxas, aprenderia a conhecê-lo e escutá-lo. Iria compreendê-lo, e ele a mim. Isso tornaria nossa convivência harmoniosa.

— De preferência o Ritual deverá ser feito às sextas-feiras entre meia noite e duas horas da manhã. — Continuou. — Você vai aprender o por quê disso quando começarem as reuniões grupais.

— Que reuniões grupais?

— Pequenos Grupos de estudos. Parecido com a Escola, com a diferença de que agora todos são membros da Irmandade. Cha­mamos de “Fire's sons”. Mas pode dizer “Reunião de Conselho”! Antes os grupos eram heterogêneos, as pessoas eram diferentes e iam para lugares diferentes. Agora todos são de fato irmãos! Nos reunimos duas vezes por semana, à noite, e você e Thalya vão conviver com pessoas tanto no mesmo nível em que vocês se en­contram — Iniciados — como com Feiticeiros, Bruxos e Mestres. Já os Rituais de Celebração são conjuntos, isto é, todo mundo que faz parte da Irmandade aqui em São Paulo participa. Todas as sextas e sábados de madrugada. É claro que nos dias em que você for fazer o seu Rito individual com Abraxas não vai dar para estar presente.

— Puxa! Decente essa coisa, heim? — Foi tudo o que conse­gui dizer.

— No final desta semana eu os levarei à reunião do grupo. Mas, voltando ao Rito individual: seja rigoroso no horário, tá?

Concordei. E Marlon criteriosamente explicou-me o pro­cedimento, deu-me o material necessário, bem como escreveu em um papel as palavras de encantamento que deveriam ser pronun­ciadas. Certificou-se bem de que eu as conseguisse pronunciar corretamente em aramaico. Havia também um pouco de latim. Ajudou-me a fazer um simulado prático pois eram grandes as minúcias, os detalhes, os gestos de sinalização.

Comecei a perceber que a Magia era uma arte extrema­mente detalhista.

***

O primeiro Rito individual deveria acontecer na primeira sexta-feira subseqüente à Iniciação. Já estava acostumado aos pe­quenos feitiços que tínhamos aprendido na Escola mas este era, certamente, muito diferente. Apesar de relativamente simples, é verdade. Coisinhas de Iniciados. De “bebês”.

Naquela noite, lá pelas onze, fui para o quarto com a inten­ção de “dormir”. Não havia porque me preocupar com a família: meu pai geralmente deitava-se cedo mesmo; minha mãe ficava mais ou menos no ritmo dos filhos. O Otavinho já estava acomo­dado naquelas alturas e o Roberto era apenas um adolescente com­portado que não tinha nada de muito especial para fazer às sextas.

De forma que pouco depois que eu subi e deitei, todo mun­do fez o mesmo.

Desci para o porão de casa quase duas horas depois, procu­rando não fazer barulho apesar das escadas de madeira insistirem em ranger sob os meus pés. Carreguei para baixo todos os apetrechos necessários que Marlon me tinha dado dentro de uma caixa de sapatos.

Eu estava um pouco receoso quanto ao que ocorreria. Eu tinha muita segurança quando Marlon estava por perto ou, pelo menos, Thalya. Mas agora pela primeira vez estava sozinho para realizar algo realmente importante. Era preciso que tudo saísse nos conformes. Não poderia errar!

Será que Abraxas viria até mim, realmente?!? E se viesse? E se me falasse?!! Será que eu saberia o que responder? Recordei a impressionante figura que tinha visto há apenas uma semana... e procurei não pensar naquilo. Cada coisa a seu tempo.

Tratei de decidir o melhor lugar para me acomodar. O po­rão tinha dois “ambientes” por assim dizer. Perto da porta que saía para o quintal ficava a lavanderia. Ela estava sempre aberta, inclusive à noite. O segundo ambiente ficava perto da janelinha que dava para a rua. Havia ali um sofá de tecido meio gasto, duas poltronas de couro, uma vitrola antiga que ainda funcionava e mais umas outras coisas velhas, colocadas em caixas.

Foi aí que me dispus a começar os preparativos.

Tirei o tapete e comecei a entoar os mantras específicos e as palavras de encantamento que tinha aprendido. Fui lendo no papel aonde estavam escritos. Mais tarde eu acabaria por decorá-los à medida que repetisse o Rito semanalmente.

Desenhei um Pentagrama no chão usando para isso um giz vermelho especial. O pó saía com muita facilidade; acumulava-se no chão mas depois era só bater a mão que já saía tudo. A ponta do Pentagrama (barba do bode) devia estar voltada para o sul e aquele era o lugar aonde deveria sentar-me.

De um potinho de madeira extraí as ervas com as quais desenhei o círculo ao redor do Pentagrama. Tomei um punhado na mão esquerda e raspei-as com força no chão, um halo esverdeado ficou ao redor do Pentagrama. Os círculos são sem­pre feitos em sentido anti-horário. Antinatural, anti-sistema.

Depois disso peguei os dois pequenos frascos de prata com tampinhas também de prata. Senti um leve acelerar da freqüência cardíaca. Um deles continha todo o pó do osso do crânio... daquela criança. O outro, parte do pó dos fêmures dela.

Coloquei um punhado do primeiro pó sobre a barba, e o pó dos fêmures coloquei sobre os chifres. É fácil perceber que quan­do olhamos o Pentagrama invertido, o pó do crânio fica localiza­do na região da cabeça e o pó dos fêmures nas pontas referentes às pernas. O simbolismo é forte: o crânio contém a mente, ponto forte de ação do “bode”, de Lucifér. Os fêmures são ossos que, se retirados — ou lesados — tornam o indivíduo completamente inválido. A retirada do fêmur tem como símbolo o privar da direção, da vontade, do caminhar, do livre arbítrio. Retirar a mente é reti­rar a alma.

Retirar o crânio e os fêmures significa roubar o cerne do ser humano.

E, agora, isso era oferecido simbolicamente naquele Rito. O coração já havia sido utilizado, juntamente com o sangue — os símbolos da vida — durante o Ritual de Iniciação. A gordura do corpo, conforme explicara Marlon, era também utilizada. Com esse sebo confeccionavam-se as velas. Vim a saber que todas as velas que eu vira no Castelo haviam sido feitas dessa forma!

Eu recebi uma vela feita com a gordura dela. Media cerca de um palmo e deveria ser partida em duas e colocadas nas últi­mas pontas do Pentagrama, as orelhas. Elas deveriam durar para exatamente nove dos meus Ritos semanais. Por isso as velas eram acesas durante um período muito específico, somente durante os quinze minutos iniciais. E depois eram apagadas. O Rito todo era bem cronometrado e durava cerca de quarenta e cinco minutos.

Esse primeiro momento era uma espécie de preparação do ambiente para dar as boas vindas a Abraxas. Literalmente falan­do eu declarava por meio dos mantras e dos encantamentos que eu estava abrindo as portas do Inferno para que ele pudesse acessar a minha dimensão. Eu declarava estar pronto a recebê-lo, estar aberto ao seu contato. Estar disposto ao relacionamento.

Eu me sentia honrado... importante... mas novamente veio aquela sensação de que aquilo não era real. Eu estava ali fazendo algo de tanta responsabilidade e tanto significado. O silêncio era profundo, quase palpável. Estranho... nem da rua vinha som al­gum. O único ruído era o som baixo e resfolegante da minha pró­pria voz.

Após acender as velas ajoelhei-me no meu posto. A posi­ção za-zen é muito propícia para canalizar energia. Em meio ao recitar das palavras mágicas eu continuava “abrindo as portas” para que a Entidade inundasse o ambiente com a sua energia.

Exatamente no centro do Pentagrama coloquei uma taça com água. Não era uma taça qualquer. Todos os objetos utiliza­dos são sempre muito valiosos e muito adornados. A taça não seria exceção: era de prata, com base de ouro, e cheia de ideogramas gravados em toda a borda. Media uns vinte e cinco cen­tímetros de altura.

Assentado como eu estava, totalmente despido, respirei fun­do. O fato de não usar roupas naquele momento representava um total desvinculamento de tudo. De preconceitos, dogmas, heran­ças culturais, pudores, pecados.

Liberdade.

Este era o momento em que eu deveria apagar as velas. Eu havia utilizado a luz delas com o intuito de “preparar a casa” para receber o meu convidado. No entanto, Abraxas era um ser das trevas e, como tal, deveria ser recebido na escuridão. Pelo menos nas primeiras vezes.

O ato de posicionar-me ali no escuro, à espera dele, divi­sando apenas os contornos dos móveis, tinha como objetivo tam­bém alterar minha percepção. Quando se dispõe de luz a maneira de relacionarmos-nos com o ambiente é somente uma: através dos sentidos humanos. Mas no escuro uma outra forma de percepção tem espaço. Algo mais extra-sensorial.

Apaguei as velas, relaxei, permaneci na mesma cantilena, fazendo gestos ritualísticos.

A atmosfera começou a mudar a partir daí. Passei a sentir......uma força! Parecia que o ambiente ficava mais e mais carregado, o ar estava denso, magnético. E eu sentia aquela pode­rosa vibração! Era como se eu estivesse próximo à sala de máqui­nas de um imenso navio. Apesar de não escutar o barulho das máquinas e nem enxergá-las, podia sentir a vibração delas. Eu sabia que ele estava ali.... uma presença forte... poderosa!

Ajoelhado, de olhos fechados e mão estendidas à frente eu procurava sentir a energia crescente da Potestade ao meu redor. Respirava profunda e lentamente. E no chakra aberto, aonde fora feita a cruz invertida, uma sensação esquisita.... como um formigamento acompanhado de uma leve dormência...só naquela região... parecia a sensação de ser tocado com uma mecha de al­godão quente, muito leve, muito suave...

E de repente era como se eu fizesse parte daquilo, como se não mais conhecesse os limites do meu próprio corpo, e estivesse mergulhado na energia de Abraxas. Só que naquele Rito a energia dele não deveria entrar em mim, isto é, me canalizar. Era apenas um Ritual de celebração, de agradecimento, de comunhão. E sem me dar conta — ao que parece — entrei em simbiose com ele.

Os gestos que eu fazia pediam insistentemente que a ener­gia dele e a minha circulassem juntas. Ele agora parecia fazer parte de mim, eu podia senti-lo!! Compreendê-lo! Fazer empatia com os seus sentimentos... pude perceber... sentir o que ele sentia. Não saberia explicar. Meus pensamentos já não eram somente meus: os dele também faziam parte de mim. Minha mente flutua­va e eu apenas gozava aquela estranhíssima comunhão, algo indescritível e muito prazeroso.

Então... muito claro! Aquele ódio... aquela rejeição...! Expulso... destruído... injustiçado... certamente era o âmago do seu coração.

— Abraxas... — Murmurei. — O que fizeram com você, meu amigo...! Será que eu vou ver você?!

Aproximava-me do ponto máximo do Rito. Uma vez inun­dado o ambiente com a energia de Abraxas eu sabia que a água dentro da taça deveria estar energizada por ele. É um conceito físico simples: a água absorve energia. Após um dia muito quen­te, se formos nadar à noite percebemos que a água está quentinha. Sinal que parte da energia térmica foi absorvida durante o dia e será lentamente liberada de volta. Da mesma forma, o campo energético poderoso criado em decorrência da presença do meu amigo teria uma porção absorvida pela água.

Segurei a taça nas mãos e bebi metade da água. Depois tomei uma pequena lanceta de ouro puro, delicada, com um for­mato bastante peculiar e cortei a ponta do meu dedo esquerdo. Nem doeu. O dedo parecia levemente anestesiado. Algumas go­tas de sangue foram colocadas na taça e ofereci a Abraxas junto com o resto da água. Elevei a taça acima da cabeça e a mantive assim por alguns instantes. Pronunciei os encantamentos. Era uma forma de brindar com ele à nova vida de liberdade e à nossa amizade recém iniciada.

Quando recolhi a taça e voltei a levá-la aos lábios... havia somente um restinho de nada dentro dela! Toda a água tinha desaparecido.

Sorri levemente e tateei à procura do pote de bronze que também me tinha sido fornecido. Dentro dele pus uma mistura de álcool com perfume, dando muita atenção às medidas corretas. Empurrei-o então para a outra extremidade do Pentagrama. Fiz os gestos necessários para que incendiasse.

E acendeu mesmo!!! Fazer fogo do nada, como eu viria a perceber, era coisa dos primórdios da Magia, e muito simples.

Fiquei exultante diante do fogo. Enquanto queimava e o ar impregnava-se do odor do perfume, eu ia limpando o lugar. Per­cebi que a energia de Abraxas também ia se dissipando. Eu sabia que o meu Rito tinha sido aceito...

Uma sensação gostosa me inundou, um prazer, uma alegria profunda, uma sensação de dever cumprido. Dormi que nem um nenê depois disso.

***

Nas primeiras vezes foi somente isso. As diferenças fica­ram por conta de nuances nas sensações experimentadas. Mas logo meu amigo presenteou-me com algo mais. No nosso encon­tro solitário experimentei uma novidade totalmente inesperada.

A sensação de perceber a energia crescente de Abraxas era boa. Neste ponto, antes de cortar o meu dedo, podia parar de en­toar mantras e conversar com ele em português. Conversar mes­mo, dizer o que quisesse. A intimidade veio aos poucos.

— Você é muito bem vindo aqui, Abraxas... — Comecei um pouco timidamente. — Estou feliz em ter sido escolhido por você, de poder ser filho do Fogo. Me sinto muito honrado, de coração! Você pode usar o meu corpo da maneira que quiser. Que bom ser filho do Fogo, porque agora o Fogo não pode me queimar. — E continuava por aí, com palavras de exaltação e boas vindas.

Só que nesta ocasião eu o vi!!!

No momento do brinde pronunciei as palavras mágicas, er­gui a taça como de costume:

— Agora você faz parte de mim! A sua energia está em mim agora. — Bebi um pouco da água — E eu a recebo!

Fechei os olhos. Imediatamente senti como uma descarga de adrenalina inundando-me, vinda do nada, um tremor acom­panhado daquela sensação de “luta-ou-fuga”, angustiante, sufo­cante.

Abri os olhos e vi um vulto parado, próximo da máquina de lavar. Sacudi a cabeça e pisquei os olhos. Na penumbra do porão eu tinha dúvidas do que via. Mas não pude por a culpa nas ervas, ou no incenso, porque não havia. Eu só tinha bebido água! E água não causa alucinação!

O vulto era imenso, quase tocava o teto, mas Abraxas ma­terializou-se numa forma diferente da que eu havia visto no Cas­telo. Parecia meio cachorro, meio lobo, estava sentado e olhando para mim, completamente imóvel, negro, negro, negro. Suas ore­lhas erguiam-se pontiagudas, compridas, acima da cabeça.

Os olhos eram puxados como os de um gato, amarelos meio avermelhados, sem pupilas; e brilhavam muito claramente no negrume do pelo, hipnotizadores!

“Será que estou mesmo vendo?”, raciocinei, espantado. Não senti medo. Murmurei de leve:

— É você? Abraxas?! É você? Me dá um sinal que é você mesmo! Se for...é bem vindo! Mas se for outro qualquer... — Ergui um pouco a voz autoritariamente. — Eu peço que Abraxas expulse este outro daqui, que não é bem vindo!

Ele nada falou, em momento algum, permanecendo abso­lutamente imóvel. Eu fiquei esperando algo acontecer. Ele olhava para mim...e eu para ele! Aquilo durou alguns segundos que pare­ceram eternos!

Foi então que senti uma “coisa” na barriga, como se esti­vesse descendo uma montanha-russa que nunca chegasse ao fim. Mas era uma sensação gostosa, vinha em ondas, passava para os braços, as pernas, o corpo todo. Causou-me uma sensação de relaxamento, de alívio daquela tensão. E compreendi que era mes­mo Abraxas! Fiquei mais tranqüilo.

— Obrigado por você estar aqui... — E fiz alguns gestos, al­guns sinais, que tinham o significado de um...um “abraço espiritual”...era o meu abraço para ele e o recolhimento dele pró­prio em mim mesmo. Cruzei os braços sobre o peito; agradeci.

E ele...dissipou!!! Num piscar de olhos, simplesmente não estava mais lá. Eu fiquei olhando para o vazio, chocado. Mais de meia hora permaneci ali, quase em transe, minha mente viajando. Eu tentava estabelecer o limite entre a fantasia e a realidade. Es­tava atordoado:

Puxa! Ele veio mesmo!

***

 

 

(Continua no Filho do Fogo - Vol. II)