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Capitulo V
Capitulo V

No carro ao lado de Marlon e Thalya eu me deixava levar com os olhos desviados para a janela, olhando a cidade passar e sentindo no rosto o vento cálido. Afundei-me, relembrando a con­versa que tivera com Marlon e que tanto impacto causara em mim.

— Como entender o Satanismo...? — Marlon permanecera com os olhos escuros fitos no vazio por um tempo, enquanto me­ditava brevemente na pergunta.

Os traços firmes do rosto permaneciam imóveis. E eu son­dava suas reações.

Por fim ele começou a responder. Sempre que Marlon me falava, me explicava algo, era muito difícil que eu esquecesse. Ele tinha uma maneira toda especial de fazer tudo parecer claro como água!

— Vamos fazer um paralelo? Acho que ninguém teria difi­culdades em compreender o Cristianismo e a Igreja Cristã, por exemplo. Para que existem? Não é para difundir na Terra a Pala­vra de Cristo, e o Reino de Cristo? “Venha a nós o Teu Reino”?... Pois muito bem. Como príncipe, Lucifér quer o mes­mo. Em outras palavras, quer ver o seu reino triunfar e os seus filhos dominarem. O Cristianismo e o Satanismo labutam por coisas semelhantes, quase que pela mesma coisa. A difusão do domínio sobre a Terra.

Assenti com a cabeça. Já tinha aprendido isso. Marlon sorriu.

— Só que olhe para este mundo! Olhe ao seu redor. Desde a queda do homem tanto Deus como Lucifér têm interferido na exis­tência humana. Ambos têm procurado implantar o seu reino. Quem conseguiu ganhar maior terreno?!! Quem tem o maior domínio?! Quem é o príncipe deste mundo? Lucifér tem provado a sua força. Nem mesmo o homem, criado por Deus à sua imagem e seme­lhança, quer saber Dele. Da sua “liberdade em cativeiro”! Quem efetivamente serve a Deus, e consegue atingir os Seus altos pa­drões?! Meia dúzia de gatos pingados! É claro como água que Lucifér fez deste mundo o seu reino. Não adiantou ser expulso da presença de Deus! “O mundo jaz no maligno”.

Marlon carregou um pouco o semblante e seus olhos pare­ciam mais escuros:

— Lucifér constituiu seu reino. — Reafirmou ele categorica­mente. — E nomeou seus filhos herdeiros da sua causa. Os filhos de Lucifér nesse mundo devem instituir um domínio completo sobre a Terra e preparar o caminho para a sua vinda. Se o Cristia­nismo labuta por Cristo nós, da mesma forma, labutamos pelo anticristo e pela causa do nosso pai!

“Nós?”

Marlon gesticulava para me fazer compreender melhor o que dizia:

— O Satanismo sempre existiu, Eduardo. Desde que o mun­do é mundo. Mas ao longo da História cresceu... criou forma pró­pria, desenvolveu-se, organizou-se! E é só contemplar a História da Humanidade para ver quem tem tido mais vitórias. É fácil pre­ver que a vitória final será a mais estrondosa de todas.

Perscrutei o meu próprio coração diante daquelas palavras. Não mais havia dúvidas dentro dele. Eu tinha a mais plena certe­za de que os Cristãos eram completamente loucos, e a sua causa, totalmente perdida. Deus era um Pai insano.

Aquilo me trouxe à memória novamente a voz de Marlon:

— Lucifér é verdadeiramente pai de seus filhos. Ele sabe de que seus filhos necessitam. Peça a ele uma só vez e ele não se esquecerá. Deixe o prantear, o cair de joelhos, o suplicar com jejuns e “panos de saco”, as lágrimas e as dores para os filhos de Deus. Você não precisa implorar vez após vez para Lucifér. Ele não é surdo. Mas parece que Aquele que fez o ouvido não ouve assim tão bem quanto deveria. “Filho do Fogo, o fogo não quei­ma”! Que mal pode acontecer a você neste mundo? O Mal domi­na totalmente. Se você for filho do Mal...... temer o quê? Temer a quem?! Tudo o que é dele é dos seus filhos, e ele é o dono do mundo. Todo Poder, o dinheiro, a fama, os melhores lugares, os melhores empregos, as melhores oportunidades. O melhor do me­lhor! Tudo é dos filhos de Lucifér! Compreende a dimensão disto?

Abanei a cabeça, meio estupefato. Era uma das primeiras vezes em que Marlon me falava da paternidade de Lucifér daque­la maneira. Era novidade... e que novidade!

— Lembra-se quando eu te disse que você ia conhecer uma outra fonte de amor? Lembra-se do deus que nunca deixou de estar perto? Daquele que adotou alguns dos repudiados de Deus?! Do outro pai? Compreende agora... sobre quem estávamos falando?

Fiz que sim, ainda incapaz de dizer qualquer coisa. Ele não parou:

— E depois, cruzada a fronteira da morte... mais glória nos está à espera! Após a morte seremos recebidos no Inferno, sim, mas no Inferno como sendo a casa de nosso pai. O lugar aonde teremos todas as honrarias de filhos. Não é assim que é? O Infer­no só é lugar de dor, suplício e tormento para os “órfãos”. Mas para os filhos... lugar de deleite e honra! Glória e recompensa!! Os Filhos do Fogo... na casa do Pai... na casa do Fogo! Este é o caminho. O Inferno será nosso lar e nossa habitação. Ao lado daquele que nos tem dado vida nesta vida...e nos dará um lar na nossa morte!

E novamente eu me perguntava:

“Mas quem são efetivamente os filhos de Lucifér?!”

***

A risada de Thalya, conversando desprendida com Marlon fez com que eu voltasse a cabeça na direção deles. Thalya enrola­va e desenrolava o cabelo, muito à vontade, contando “casos”. Marlon escutava e respondia contando outros “casos”. Era sem­pre assim, divertido, descontraído muitas vezes, engraçado ou­tras tantas. Às vezes simplesmente nos deixávamos levar pelo bate-papo informal, pura conversa jogada fora, mas tão necessária en­tre os que se dizem amigos. E Marlon dava atenção do mesmo jeito!

Ele bateu no meu ombro de leve, sorrindo abertamente, a gravata esvoaçando de leve com o vento que vinha da janela.

— Você está quieto hoje, filho. Está pensando em quê?

Eu gostava do modo como ele se dirigia a mim. Fitei-o com carinho.

— Só pensando. — Respondi devolvendo o sorriso. Ele assentiu sem fazer maiores perguntas. Mas adivinhava!

— Esta perplexidade vai passar. Tudo isso é só o começo. Você verá que coisas grandes virão pela frente!

Thalya escutou o comentário mas não parecia lá muito dis­posta a conversas filosóficas no momento. E continuou com a conversa amena, entre risos, enquanto eu me voltei novamente para a janela. Logo estaríamos chegando. E eu voltei a divagar comigo mesmo, perdido naquelas doutrinas e experiências que tanto fascínio vinham exercendo sobre mim. Quando me recorda­va das primeiras lições, das primeiras palavras... tudo parecia tão longínquo e distante diante do que vinha acontecendo agora.

De repente começamos a entrar em contato com as doutri­nas verdadeiras ligadas ao próprio Satanismo. Aquilo era tão...tão arrebatador! Veio devagar, aos pouquinhos, fagocitando... e agora eu me deparava frente a frente com teorias sobre Lucifér!

“Filho do Fogo... o Fogo não queima”!

Eu passei a amar aquela expressão. Pensava e repensava tentando assimilar o seu significado total. Eu não me considerava um “Filho do Fogo” e, a bem da verdade, nem sabia direito o que fazer para ser... mas... e se o fosse???!

Lucifér era o verdadeiro detentor da História e da verdade, nada mais me poderia convencer do contrário. Eu cria de corpo e de alma! Eu o conhecia teoricamente... mas e se me fosse dado o privilégio de conhecê-lo... realmente?!! Ele era Poderoso. Inteli­gente. E bom para os seus filhos.

Quanto a Deus...ah! Deus!! Um sádico mentiroso e inescrupuloso, divertindo-se às custas da Humanidade com seus arremedos de Justiça! Ele que ficasse lá no Céu Dele com um povinho escasso capaz de suportá-Lo.

Senti instintivamente minha testa enrugando-se de raiva. Dei um leve resmungo quase audível. Deus! Que grande farsa!

Este mundo, esta Terra pertencia ao príncipe das Trevas, o único e verdadeiro senhor. E aos seus adoradores. E isto era mui­to, muito bom.

***

Marlon também me explicara em breves palavras o que sig­nificava de fato a “Irmandade Satânica”, e o que representaria fazer parte dela. Seria o mais perfeito coroar daqueles meses de estudos, como desfechar com notas brilhantes um curso de muita importância.

A alta cúpula estratégica do Satanismo concentrava-se na Irmandade, algo como a diretoria e presidência de uma grande Empresa, o patamar mais elevado. Dali saem as diretrizes de tudo e todos! Aventar a hipótese de ser escolhido para adentrar nesses domínios era um sonho que não parecia real...!

A Irmandade é o topo máximo da Pirâmide. Logicamente que existem degraus a serem galgados e conquistados dentro dela, mas só o fato de fazer parte já era uma honra sem precedentes.

Por que ele me dizia aquilo tudo?? Eu faria mesmo par­te???!!.........................................!

***

Com certo brilho no olhar Marlon foi anunciando assim que o carro grande e escuro adentrou a conhecida alameda na casa de Zórdico:

— Hoje a reunião vai ser de fato diferente! — Disse ele olhan­do diretamente pra mim.

— Novamente o seleto “Grupinho dos Cinco”? — Interrogou Thalya.

O nome tornara-se sinônimo de grandes coisas.

— Mais do que isso... mesmo porque, eles já chegaram ao destino deles.

Eu e Thalya ficamos mudos, encarando o rosto anguloso de nosso amigo à guisa de esclarecimento. Ele sorriu diante das nossas expressões curiosas. Não ousamos perguntar nada. Será que também estávamos chegando ao nosso destino?... Será?!

Marlon recostou-se no banco com expressão satisfeita mas não adiantou em nada o que viria pela frente. Desta vez Thalya calou-se, subitamente esquecida dos assuntos que vinha tão ale­gremente discutindo; eu e ela nos encarávamos vez por outra com olhares cheios de interrogações. Um clima de expectativa tomou conta do ar. Descemos do carro e, no meu íntimo, procurei racio­nalizar a coisa.

— Não deve ser nada de tão diferente assim... afinal estamos no mesmo lugar de sempre! Deve ser só mais uma reunião.

No entanto, desviamo-nos do nosso caminho conhecido. Não fomos para o porão. Havíamos visto muito pouco do enorme palacete desde que as aulas tinham começado, mas desta vez ca­minhamos por corredores ricamente ornamentados. Quadros e ob­jetos finos de arte, grossos tapetes e carpetes que abafavam total­mente o ruído dos passos, mobília finíssima.

Eu sentia dentro de mim uma estranha sensação, uma von­tade doida de saber o que havia por trás daquelas portas. Thalya continuava estranhamente calada, o que significava que ela tam­bém sentia-se mais ou menos no mesmo estado de espírito.

Finalmente Marlon abriu uma porta e entramos. Era uma pequena ante-sala aonde havia um senhor acomodado em um sofá, aparentemente à nossa espera. O homem ergueu-se quando nós entramos. Alto, talvez mais de 1,90 m, de ombros largos e estru­tura bastante forte. Era um homem de características muito marcantes. Tinha cabelos escuros e usava um cavanhaque. De ponta grisalha. Abriu um largo sorriso ao apertar-me a mão:

— Olá! Seja bem vindo, Eduardo! — O aperto foi forte e caloroso.

— Como está? — Respondi polidamente.

Ele voltou-se para Thalya e cumprimentou-a da mesma maneira.

— Seja bem vinda, Thalya.

Abraçou Marlon brevemente, inspirou fundo e passou os braços sobre o meu ombro e sobre o ombro de Thalya. Esclareceu:

— Hoje vocês são nossos convidados de honra!

Nós dois, meio que pegos de surpresa, ainda não tínhamos encontrado nenhuma palavra adequada para a ocasião.

— Vocês vão participar de um pequeno jantar em nossa com­panhia. Para que conheçam a nós...e nós a vocês! — Continuou ele com simpatia enquanto apertava de leve os nossos ombros.

Quem seriam “nós”?!

— Encarem esta noite como um presente especial. Uma honra concedida a vocês, jovem casal, pois destacaram-se e so­bressaíram durante o período da “Escola Preparatória”.

A sensação de ser tão bem recebidos era por demais agra­dável e acolhedora. Eu sempre tinha buscado por uma família. Sabia que a estava encontrando. Um lugar aonde eu era importan­te, querido, bem aceito, estimulado. Pessoas para quem eu era alguém.

Não importava quem eram “nós”. Eu queria fazer parte daquele “nós”. Queria ser “deles”. Estava preparado. Ao longo daquela jornada havíamos aprendido que os presentes nunca chegam antes de estarmos prontos para recebê-los. E nem depois. Vêm sempre no momento certo. Assim... fosse o que fosse que houvesse naquela noite... estávamos preparados.

Entre sorrisos e abraços passamos da ante-sala para um belo e aconchegante salão de jantar.

Para minha surpresa havia ali um grupo de homens e mulheres espalhados pelo recinto, descontraídos em meio à conversa. Os olhares voltaram-se para nós, sorrisos amplos e amistosos brotaram nos lábios.

— Oláá! — Disse Zórdico, perto da porta. Ele era o único conhecido além de Marlon.

Fomos sendo apresentados, apertamos mãos aqui e ali, re­cebemos abraços de boas vindas. Em poucos minutos eu e Thalya já estávamos bem à vontade.

Meu olhar cruzava com o de Marlon vez por outra. Ele me observava com o que parecia ser orgulho e satisfação ao mesmo tempo, eu sentia a aprovação estampada neles. Thalya não rece­bia os mesmos “louros” que eu. Era intuitivo o fato de que real­mente havia um algo mais ligado à minha pessoa. Que eu não sabia bem o que era, mas que deveria fazer toda a diferença.

Marlon não desperdiçava palavras, não fazia uso de elogi­os vãos. Eu já sabia disso muito bem. Em se tratando de minha amiga havia muito mais reserva nos seus comentários, e o nome de Thalya só era realmente citado — em termos especiais — quan­do associado ao meu. Isto é, quando éramos vistos como casal.

Aproximamo-nos do centro do salão. Uma magnífica mesa retangular de madeira maciça estava adornada com uma toalha champagne finamente bordada. Os desenhos me eram vagamente familiares. Eu já vira semelhantes em livros de estudos, algo como cenas de uma Festa Ritual.

— Fiquem à vontade! — Convidou novamente o homem alto de cabelos escuros, sorrindo sempre.

Meus olhos corriam rapidamente pelo salão procurando re­ter todos os detalhes ao mesmo tempo que retribuía a atenção das pessoas. Na parede à minha esquerda e dispostos em forma de pirâmide havia quadros de crianças chorando, semelhantes aos que eu vira da primeira vez em que estivera naquela casa. Só que estes eram pequenos. Aproximei-me, curioso, e encontrei no meio deles os dois que já conhecia. Eram ao todo vinte e sete quadros!

Havia outras obras dispostas acima da lareira. Tinham for­mas estranhas, deformadas. Eram de um mestre da pintura, se­gundo esclareceu Marlon.

— Você gosta? — Perguntou ele.

— Difícil dizer. São estranhos.

Minha atenção desviou-se para o console de madeira, enor­me, encostado na outra parede. Estava cheio de fotografias. Eu sempre fui muito curioso com os pequenos detalhes e cheguei perto para observá-las melhor. Eram todas de pessoas conhecidas ao longo da História. Reconheci de imediato Napoleão e Hitler, que tinham espaço na longa exposição.

— Vamos nos sentar à mesa? — Fomos tocados nas costas pelo nosso anfitrião.

Thalya já se acomodava, ladeada por duas mulheres. Uma jovem, de tailleur acinzentado, e a outra com cabelos lisos e com­pridos, muito bela.

Eu puxei a pesada cadeira de madeira que me foi ofereci­da, forrada com veludo vermelho. Acomodei-me nela. Os apoios laterais eram entalhados primorosamente em formato de patas de leão. Nas costas de todas elas, um triângulo com um olho no centro.

Havia nove lugares à mesa. Quatro de cada lado e um à cabeceira. Sobre a mesa três grandes candelabros de prata com nove braços cada um, reluzentes, trabalhados. Estavam apagados mas eram muito belos como adorno.

O ambiente era amistoso em extremo. Agradável como pou­cas vezes experimentei na vida. Uma música suave e melodiosa inundava o ambiente, o cheiro adocicado de incenso que queimava dentro de um pequeno pote me fazia lembrado de lugares pito­rescos e exóticos, ainda que eu nunca tivesse estado lá. Não era incenso comum, destes que se vendem em qualquer lugar, mas ervas aromáticas de verdade!

Um vinho foi aberto ali, na hora, entre risos e conversas amenas, descontraídas. Um clima de cordialidade envolvia a to­dos, e eu e Thalya fomos logo inseridos naquele contexto. O vi­nho era de cor forte, encorpado, levemente seco. Os queijos e petiscos vieram para acompanhar.

Acomodados na mesa, Thalya ao meu lado e Marlon à mi­nha frente, tive uma das noites mais gostosas de que me recorda­va até então.

Estava tudo muito bom...e todos foram a-ma-bi-lís-si-mos!

Quiseram saber como eu havia conhecido Thalya. Eles con­taram várias histórias pessoais e nós contamos a nossa. Todos faziam comentários sobre todos, contavam como haviam conhe­cido o Grupo.

A mulher de longos cabelos ao lado de Thalya era muito engraçada. Contou um monte de piadas: de morcego, de jacaré, e daí para frente. Nós ríamos a mais não poder.

Depois falamos um pouco sobre outras coisas, acerca da viagem do-homem-de-barba-clara e os planos profissionais da moça-de-unhas-cor-de-vinho, e não sei o que mais a respeito da mulher-de-brincos-de-pérola, e etc.....a conversa foi informal durante todo o período.

Não me recordo de quase nenhum nome. A maioria tinha  nomes esquisitos. Mais tarde fiquei sabendo que eram pseudônimos. O único que guardei foi o da moça das piadas, a Rúbia.

Mas a noite passou voando entre aquelas pessoas que falavam sorrindo e pegavam em nossas mãos, e tocavam nossos ombros, e nos faziam ter aquela sensação tão boa de acolhimento.  Quando o vinho acabou, e também os petiscos, e o incenso era  apenas um fagulhinha dentro do pote, nosso anfitrião tomou a palavra:

Peço licença agora e proponho que todos nos déssemos as mãos... — Convidou ele erguendo-se e estendendo as suas próprias mãos com as palmas voltadas para cima.

Todos fizeram o mesmo. Eu fiquei de olhos fixos nele es­perando pelo que vinha. Mas foi Rúbia quem tomou a palavra, e fez com que meus olhos se desviassem rapidamente na sua dire­ção. Olhando para mim e Thalya, ela apenas explicou rapidamente:

— Repitam juntamente conosco essas palavras.

De repente, a seriedade tomou conta daqueles rostos, tanto que já nem parecia o mesmo grupo. Os olhos estavam mais pro­fundos. E, assim como estávamos, de mãos fortemente unidas, recitamos as palavras conforme saíam da boca dela. Não eram pronunciadas em português. Eram em aramaico. As vozes ecoa­ram fortes, imperativas, poderosas.

Deduzi que era um encantamento. E, embora não compre­endesse literalmente, sabia que era para consagrar aquele momen­to, as nossas vidas, evocar os Guias e as Entidades, pedir-lhes que nos acompanhassem.

O ar emanava uma energia diferente agora, já não era o mesmo, podíamos claramente perceber uma vibração diferente que crescia. Mas era diferente do que já tínhamos experimentado em aula... o ambiente parecia mais denso, mais pesado. A respira­ção involuntariamente também se fazia mais pesada e o coração batia mais forte. E não somente isso, uma energia parecia fluir através de nossos corpos em ondas que se alternavam ora quen­tes, ora frias. Ela parecia vir através das mãos e inundava todo o corpo. Calafrios... ondas de calor... calafrios. Quase como a sensa­ção de estar descendo pela montanha-russa! E fez-se clara a presença.... de algo. Muito palpável.

Quando terminou, silêncio durante alguns momentos. Per­manecemos de mãos dadas, quietos. Olhei de soslaio para Thalya, e ela estava muito quieta também, muito séria. Então Rúbia abriu a boca novamente. Leu um trecho de um livro que abriu na hora, um livro muito grande, com capa de couro amarrada com algo semelhante a cordas. As páginas eram feitas de uma espécie de pergaminho e as letras, grandes, tinham uma tonalidade meio mar­rom.

Não entendemos nada, nem ninguém nos explicou, mas aquilo tudo que fazíamos parecia ser parte de um processo descri­to naquele livro.

Depois Rúbia falou de forma grave, olhando diretamente para mim:

— Estou ouvindo o meu Guia nesse exato minuto. — Iniciou ela. — Ele me diz, de forma bastante clara, que o Eduardo... — Estendeu a mão na minha direção. — ...e a Thalya, — Sorriu para ela. — são muito bem vindos à nossa “Irmandade”! Eles foram escolhidos dentre muitos e formam um casal que terá muito Po­der. Juntos, farão proezas. Vocês são as pessoas certas para estar aqui... agora!

Custei um pouco para acreditar naquelas palavras. Marlon, sorrindo também, um pouco paternalista, acrescentou:

— O Eduardo tem o privilégio de ter sido escolhido por um Guia muito poderoso... que em breve ele irá conhecer!

“Guia, heim??!!”. Até para mim aquilo soou como novidade.

Mas parecia que ele estava apenas falando com Rúbia e com o resto do grupo. Não era comigo. Mesmo porque eu nem sequer sabia se o tal do meu Guia era ou não poderoso. Aliás, nem sabia bem se ele andava ou não comigo.

— Há pessoas que levam anos e anos, e têm que fazer muita coisa para simplesmente começar a entrar em contato com uma Entidade assim. Mas o Eduardo foi escolhido logo de cara, caiu nas graças de um ser tão poderoso.

Eu só olhava para ele com espanto, sinceramente não acre­ditei que fosse verdade, soava como um exagero. Talvez aquela mulher tivesse algum tipo de Poder muito especial, e Marlon esti­vesse inventando tudo aquilo por algum motivo que eu ainda não era capaz de compreender.

Marlon então voltou-se para mim:

— Ele olhou para você...e soube o que viu! Lembra-se dos números? Lembra-se do coco? Ele olhou para você...e viu vida em você! — Ele piscou para mim e eu não sabia o que dizer. Marlon olhou então para minha amiga: — E, Thalya, você é a mulher certa para estar ao lado dele. Você será como um catalisador deste Po­der ainda latente. Como casal, trabalhando e servindo ao nosso pai, vocês dois terão um futuro promissor e tremendo! Apenas aceitem o lugar que lhes é proposto agora. E soltem-se totalmente perante o novo Poder que será descortinado ante seus olhos e co­locado à sua disposição... mediante compromisso, e obediência. —Tornou a sorrir, desta vez abertamente. Ergueu a mão esquerda, num gesto caloroso, e concluiu. — Sejam bem-vindos!

Rúbia apresentou diante de nossos olhos uma caixinha bo­nita recoberta por tecido escuro, esverdeado, com bordas doura­das. Estava coberta por um pano de seda da mesma cor que a toalha bordada. Engraçado... estivera ali o tempo todo! Ela empurrou a caixinha na nossa direção, e nós instintivamente nos adiantamos esticando o braço ao mesmo tempo.

Um presente para vocês. Abram! — Exclamou ela.

Eu abri. Dentro da caixinha havia um par de alianças de ouro. Thalya sorria encantada e olhava para mim com satisfação:

— Que bonitas! Pôxa!... Muito obrigada a todos.

Eu também agradeci tomando nas mãos a aliança maior. Era larga, com uma inscrição na parte interna em outra língua. Nunca soube o que significavam aqueles dizeres. Tanto eu quan­to Thalya sabíamos que as alianças tinham um duplo significado: simbolizavam tanto a nossa aceitação por parte da Irmandade como lançavam um elo especial entre mim e minha amiga, uma união mística, especial.

O anfitrião adiantou-se afirmando a seguir: — Agora vocês estão prontos para serem Iniciados.

A seguir, de forma muito informal, ele fez algumas perguntas acerca de nossa convicção sobre a doutrina que nos tinha sido apresentada durante aqueles meses. Principalmente a convicção acerca de Lucifér ser o verdadeiro pai.

Nós confirmamos tudo. Afinal, não havia dúvida, era só olhar ao redor: ricos, cultos, inteligentes, poderosos. Não se dei­xariam enganar assim.

E ele deu-se por satisfeito.

***

Durante o final de semana, no sábado pela manhã, acom­panhei Camila ao parque. Ela levava a “poodle” branca pela coleira toda enfeitada e eu carregava debaixo do braço o meu nunchaku. Esperava que houvesse tempo para praticar um pouco.

Aquele parque era agradável. À esquerda, logo na entrada, um laguinho artificial com peixes grandes, amarelados. Por perto um cercado cheio de patos que comiam miolo de pão na palma da mão da gente. Do outro lado um gramado extenso, bem cuidado, cheio de antigos brinquedos infantis: balança, gangorra, gaiola...

Havia árvores frondosas e uma enorme trilha que dava vol­tas e mais voltas por dentro do matagal. Eu gostava de caminhar por elas. Sentir o ar puro, ver as enormes teias de aranha, tão bem feitas.

Camila soltou a “poodle” no gramado. Comportada, ela passou a cheirar aqui e ali. Havia ainda pouca gente logo às nove horas da manhã.

— A Bianca está precisando de banho... — Fez a Camila co­brindo os olhos com as mãos por causa do reflexo do sol.

Ela sentou-se sobre aquele enorme tronco de árvore, esti­cou as pernas, ficou olhando para a Bianca.

— Eu te dou o dinheiro. — Respondi enquanto tirava o aga­salho esportivo um tanto ou quanto surrado.—Você pode levá-la segunda-feira logo cedo!

Peguei o nunchaku e comecei a manejá-lo lentamente, aque­cendo os braços e ombros. Num giro de corpo a correntinha pulou para fora da camiseta.

Erguendo o rosto para mim, Camila perguntou:

— Que que é isso aí no seu pescoço?

Olhei para baixo:

— O quê? Ah! Foi minha avó que me deu!

Ela ergueu-se para ver melhor, pegou a corrente entre os dedos e examinou o anel preso nela:

— Bonita esta aliança! Você vai usar assim, no pescoço? — Vou. No dedo é que eu não ia pôr, né?

— Daí você ia ter que me dar uma igual prá eu colocar no meu! — Ela olhava ainda mais de perto. — O que será que está escrito dentro, não? Sua avó não te disse?

Dei de ombros sem me intimidar:

— Ela também não sabia, tinha sido do pai dela. É tipo uma relíquia de família, sabe?

— Ah! — Camila voltou ao seu lugar no tronco. — Vê se não vai perder aí nas suas confusões, heim, Eduardo? Sua avó ia se chatear muito!

Sorri lá com meus botões, retomando os exercícios com o nunchaku.

— Imagine!

***

Marquei encontro com Thalya em seu próprio apartamento. Escutei um grito vindo de lá de dentro tão logo toquei a campainha: — Tá aberta, Edú!

Ela estava sozinha e acabava de abarrotar até a boca uma tigela de ração para o coelho Herbert, ao lado de algumas verdu­ras e água limpa. Ela voltou-se para mim ainda com o saquinho de ração nas mãos:

— Coitadinho dele! Vai ficar aqui sozinho... será que eu dei­xo a gaiola aberta?

Aproximei-me dela e do bichinho que mordiscava rapida­mente com o focinho enfiado na tigela.

— Fala “oi” primeiro, né? — Bronqueei.

Ela deu uma reboladinha mimada e esticou o pescoço para cima. Trocamos um beijinho corriqueiro, o “selinho” de sempre. Thalya foi para a cozinha e largou a ração em cima da mesa.

— Acho que deixo ele solto dentro da cozinha. — Falou, com as mãos na cintura. — Mas e aí?! Como é que foi a coisa lá na sua casa?

Dei de ombros, procurando fazer parecer que não estava ligando muito:

— Ah! Eu já esperava que a atitude deles ia ser essa mesmo.

— Não deixaram você fazer a reunião em casa?

— Hum!...

— Não dê bola! Você vai estar num lugar bem melhor e ainda por cima vai sumir dois dias. Bem feito! Deixa eles prá lá!

Ela voltou aos seus afazeres de deixar tudo em ordem para o Herbert e eu relembrei a recente argumentação que tivera com Marlon acerca da data da Iniciação:

— Marlon, eu sei que é importante, mas justo nesse dia? Nove de março, cara! Eu estava querendo combinar alguma coisa com uns amigos. Faço 18 anos, né?! Não pode ser um pouco de­pois? Uns dias depois...

— Você não tem bem idéia do significado disso. — Dissera Marlon.

Naquele ano o nove de março caía numa sexta-feira. Era meu aniversário e também o dia da Iniciação! Eu não sabia ainda mas aquilo era bem mais do que uma simples coincidência.

— Tudo bem. — Concordei por fim. — Se meus pais puserem areia no meu programa então eu vou.

Marlon não respondeu mas seu rosto assumiu uma estra­nha expressão. Parecia que ele não estava nem um pouco preocu­pado ! Parecia antecipar que meus planos não iriam acontecer bem do jeito como eu tinha em mente. Mas não me dei por achado e, teimoso, ainda tentei argumentar com meus pais a respeito de tra­zer alguns amigos em casa.

O quê?!! — Vociferou logo de cara o meu pai. — Trazer aqueles marginais para dentro de casa?!!!

— Pôxa, só três, então, pai! Só três caras! Não precisa vir muita gente!

— E quem o senhor pretende trazer?

— Bom... o Éder, o Cebola...

— Cebola?! — Meu pai gritou ainda mais alto. — Cebola não era aquele seu companheiro de cela?

— Ele mesmo. Mas o mano é gente fina, pai!

— Pode esquecer.

E esqueci mesmo. Eles que se danassem. Eu tinha mais o que fazer no meu aniversário!!!

— Vamos? — Falou Thalya após terminar o lar do coelho durante aqueles dois dias.

Descemos para esperar por Marlon na calçada. Ele sempre era pontual. Faltavam dez minutos para as duas horas da tarde.

Era estranho estarmos indo passar dois dias fora de mãos abanando. Mas Marlon esclarecera muito categoricamente que de fato nada seria necessário. Eles iam nos fornecer o que fosse pre­ciso.

Eu e Thalya nos encaramos por um momento antes de nos sentarmos na beirada da calçada.

— Estou curiosa... — Começou ela. — E você?

— Acho que é um pouco mais do que curiosidade. — Res­pondi. — Nossas vidas vão mudar de verdade, você sabe, né?

Thalya não se deixou intimidar:

— Ah, mas vai ser bom! Vai ser bom de verdade. Vamos ter muito Poder e isso é tremendo! Eu gosto disso!

O carro elegante que dobrou a esquina desviou nossa aten­ção. Encostou próximo, do outro lado da rua. Marlon apeou do banco traseiro. Dificilmente ele dirigia. Sempre tinha alguém junto para fazer isso.

Estava com uma roupa mais informal, calças claras de linho marfim e camisa esporte azul.

— Oi, meninos! — Saudou-nos com um largo e caloroso sor­riso, do outro lado da rua. — Estão prontos?

Atravessamos, e ele nos cumprimentou melhor com um abraço. — Seria bom se a gente pudesse sempre viajar assim, tão “leve”! —Brinquei.

— Vocês são nossos hóspedes. O anfitrião sempre fornece tudo o que seus hóspedes necessitam. O convidado é realmente convidado, sabe? Em outras palavras... não precisam levar nem escova de dente!

A viagem transcorreu quase que em clima de festa. Eu e Thalya estávamos contentes por causa da aventura e Marlon pa­recia mais feliz ainda por causa de nossa felicidade. Nós não gas­tamos tempo em perguntar o que iria acontecer, havíamos perdi­do este hábito. Não tínhamos a menor idéia de como seria a tal Iniciação, e naquela hora era o que menos importava! Curtíamos cada momento sem nos preocuparmos com o que viria a seguir.

Após uma hora e pouco de viagem, quando o sol ainda nem ameaçava ficar um pouco mais ameno, Marlon sinalizou ao mo­torista para que parasse. Descemos para tomar café e refrigerante no restaurante à beira da estrada. Marlon pagou tudo e trouxe também um pacote de balas de menta para a viagem. Quando nos sentamos novamente lado a lado, ele começou:

— Hoje vocês vão conhecer um pequeno Castelo. É uma reprodução em miniatura de um Castelo famoso que existe na Escócia.

Nós escutávamos. Ele desembrulhou com calma uma bala de menta.

— Castelo?! — Perguntei, por fim, colocando a minha pró­pria bala na boca mas quase esquecido dela. Meus olhos brilha­vam de satisfação. — Nossa! Aonde é que tem um Castelo por aqui?!

A estrada continuava subindo e subindo rumo às serras, o céu era de um azul muito intenso, quase sem nuvens, e cobria toda aquela exuberante vegetação. Era uma estrada muito bonita!

— O Castelo pertence à Irmandade e, em se tratando da re­gião de São Paulo, muitos dos principais eventos acontecem lá!

— E hoje é um “principal evento”'? — Continuei eu, meio disparado, curiosíssimo.

— Naturalmente. Acho que vocês vão gostar!

— Muita gente faz parte da Irmandade? — Perguntei de novo ao lembrar-me das poucas pessoas que nos haviam recepcionado no agradável “Jantar de Formatura” (como eu e Thalya o havía­mos apelidado).

— Oh, sim. Muita gente. Mas não qualquer gente, como vocês verão em breve. Esta é uma posição de muita honra! Hoje à noite vocês serão Iniciados e, a partir daí... há um longo caminho a ser percorrido. Uma longa hierarquia a ser galgada. A Irmanda­de irá crescer muito nos próximos anos. A partir de hoje vocês começarão a ter acesso aos poucos à essas informações. Serão feitos filhos do Fogo... no rigor da palavra! E como tal serão capa­citados a exercer, naturalmente, um papel dentro do contexto do Satanismo. Isso é claro, afinal ninguém é chamado para ficar oci­oso! Mas isso não é tudo porque de nada adiantam homens e mulheres muito comprometidos com a Organização e incapazes de atuarem dentro da Sociedade. Seriam como filhos “aleijados”... muito bons em casa mas sem qualquer penetração no mundo lá fora, sem chance para influenciar nada! Mas nosso pai pensou em tudo. — E nesse ponto Marlon alçou a voz. — Lucifér prepara os seus filhos de forma completa! Ensina-os progressiva­mente, prepara-os para serem pessoas capazes de influenciar o mundo que os cerca. Caso contrário... que vantagem teríamos? Apenas digo: dediquem-se! O sucesso depende do preparo. E o preparo só é bom se for global. Aprendam isso! Nós não estamos numa corrida para perder!

Nós encarávamos nosso amigo muito compenetrados devi­do à importância do que ele dizia.

— A proposta, ainda que fundamental, é simples. Uma parte da nossa vida está comprometida com o Satanismo e com as fun­ções que exercemos lá dentro, que são diversas. Por exemplo... um Sacerdote tem os seus compromissos de Sacerdote. Mas, social­mente falando, este Sacerdote pode ser também um empresário de sucesso, ou um advogado, ou médico. Ele tem um vida “secu­lar”, por assim dizer, que precisa ser vivida dentro do contexto do próprio Satanismo. Não são coisas que possam andar dissociadas. Há uma missão a ser cumprida!

Ele olhou para nós com muita seriedade antes de continuar.

— Isso não quer dizer que os nossos desejos pessoais e a nossa satisfação deixem de existir. Eles tem tanta importância quanto o resto! Lucifér não nos quer insatisfeitos, não quer seus filhos presos à uma existência recheada de imposições e deveres. Nem amarrados a idéias preconceituosas e limitações tolas. Nos­sa vida é de liberdade! A malfadada Ética está cheia dos malfada­dos pregões Cristãos! Tudo que for sinônimo de prazer é lícito, e por que não? O mundo e a vida existem para serem desfrutados! Esqueçam a Ética, portanto. Agora tudo é diferente!

A lógica parecia lógica.

— Mas não se esqueçam do principal. Toda a harmonia das diversas facetas das suas vidas, a partir de agora, depende de uma coisa somente... de sua lealdade ao Satanismo e aos seus princípios.

Fizemos que “sim” com a cabeça. Mas eu estava com von­tade de fazer uma pergunta. Marlon leu em meus olhos e inquiriu:

— O que é, filho?

— Você falou em “missão”, Marlon. Ouvimos isso já algu­mas vezes aqui e acolá. Eu sei que isto tem a ver com propagar o reino de Lucifér mas... como é que isto acontece? Quero dizer... — Eu não encontrava bem as palavras e a pergunta ia me morrendo nos lábios.

Marlon interrompeu: — Eu entendo sua dúvida, e ela é muito pertinente, só que esta dúvida só tem razão de ser no seu coração porque ainda lhe faltam 90% dos dados! — Com semblante firme e as mãos apoia­das sobre o colo, ele inspirou fundo. — Mais uma vez: tenha paci­ência. Após a Iniciação você estará aprovado e então conversare­mos um pouco sobre isso. Sobre “estratégia”. Apenas adianto o seguinte... para você ir meditando a respeito. É mais simples do que parece, pelo menos na teoria. Veja: Lucifér conquista espaço à medida que ele tem acesso para influenciar a mente do homem. E para influenciá-lo são necessárias basicamente duas coisas. Pri­meiro, anular a influência de Deus... concorda? E, segundo, incu­tir sua própria doutrina no lugar da doutrina Cristã. Você já sabe disso.

— Nós fizemos isso, mas dentro de um Grupo pequeno, in­teressado nessas coisas, selecionado... lidar com o Mundo é muito diferente!

Minha expressão o incitava a continuar. — Certo até aí, você tem razão. Como fazer isto, Eduardo? Como lidar com a Humanidade em nível tanto individual como coletivo em prol desta dupla proposição?

Pensei comigo mesmo, repetindo de mansinho, guardando aquilo no meu coração:

— Como “barrar a influência de Deus”...? E “fazer prevale­cer a doutrina satânica sobre a Cristã”?... Bem pensado... Marlon riu da expressão do meu rosto: — Pense a respeito... como é formado o pensamento huma­no e como ele se desenvolve? Como interceptá-lo, transformá-lo, mudá-lo?... Como anular o acesso de Deus a essas mentes?

Eu ia abrindo a boca, e Thalya também. Ele levou o indi­cador aos lábios, firmemente:

— Não, não, não! — Marlon recostou-se melhor no banco, o sorriso aumentando diante de nossa “afoiteza”. — Calma, meni­nos! Vocês não agüentam um “cutucãozinho”? Não respondam antes de pensar! A resposta para esta pergunta levou milênios de anos para efetivamente concretizar-se. É o cerne de toda a Estra­tégia! Meditem a respeito com mais ponderação. Responder sem pensar é o mesmo que falar sem ouvir!

Demos risada, concordando. Mas eu guardei bem a pergunta na cabeça.

O restante da viagem transcorreu rapidamente.

— Olha! — Exclamou Thalya assim que o carro contornou à direita numa estrada lateral, sem movimento, e que continuava a subir sempre.

Eu olhei para aonde ela apontava e não pude conter tam­bém uma interjeição de espanto:

— Caramba!

Marlon se divertia diante de nosso espanto e curiosidade:

— É o Castelo do qual lhes havia falado antes... e para onde estamos indo! — Respondeu ele.

— Pôxa ! É um Castelo mesmo... — Falou Thalya.

De repente, enquanto o carro serpenteava suavemente rumo ao nosso destino, tive a impressão de que tudo aquilo não era real. Não podia realmente estar acontecendo...! Fiquei olhando enquan­to a estrutura crescia à nossa frente, já podíamos definir os deta­lhes. Que coisa.......!

Chegamos finalmente defronte ao portão de entrada. Era muito alto, de ferro, com pontas de lança afiadas e impunha res­peito. Qualquer um podia chegar até ali, e mesmo circundar a região todinha. Mas apenas do lado de cá da intimidadora cerca de ferro com lanças, naturalmente.

Somente da entrada principal parte do Castelo era mais vi­sível. Todo o acesso restante estava encoberto por vegetação den­sa. Ir adiante seria impossível. Era realmente uma pequena forta­leza. O carro estacionou ali por pouco tempo, o suficiente para que o sistema de câmeras nos autorizasse a entrada. Observei as duas estátuas, uma de cada lado do portão, que pareciam perscrutar todo e qualquer visitante.

O sistema automático funcionou e o portão girou lentamente para dentro descortinando melhor a belíssima alameda que nos levaria lá em cima. As grades delineavam uma extensa área ver­de. Do portão à entrada do Castelo havia cerca de um ou dois quilômetros de distância.

A alameda era ladeada por uma vastidão de gramado pri­morosamente bem cuidado, com canteiros de flores coloridas, al­gumas árvores frondosas espalhadas aqui e ali. Havia lagos artificiais que drenavam em cascatinhas, corriam mais para baixo, e despencavam novamente em pequenas quedas de água. Chafari­zes adornavam mais ainda a vista.

Um bando de pequenos pássaros foi afugentado pelo ruído do carro. Ao fundo, por trás da silhueta do Castelo, o céu de um azul límpido e sem nuvens. Apesar da região alta o vento ain­da estava morno e perfumado. Era tudo muito bonito. Agradável. Não vimos qualquer pessoa por ali, nem mesmo seguranças.

O carro diminuiu a marcha e todos nós apeamos.

O Castelo impunha respeito com suas torres altas de pedra, montes de janelões e uma tremenda porta de madeira maciça cuja “campainha” era uma pata de leão de bronze.

Mas já sabiam da nossa presença por causa — decerto — do circuito de câmeras, e não foi necessário bater. Havia alguém à nossa espera. Nem bem subimos os primeiros degraus de pedra e apareceu um senhor que nos recebeu cheio de sorrisos. Deveria ser uma espécie de mordomo, refleti ao ultrapassar o umbral da porta e adentrar o recinto ao lado de Marlon.

— Sejam muito bem vindos! Estávamos esperando por vocês. Fizeram boa viagem? — Cumprimentou o homem com gentileza. A ante-sala — creio que somente uma sala de espera — não era muito grande mas cheirava a luxo.

— Dêem-me licença por um minuto. — Falou o tal mordomo olhando para Thalya e para mim.

— Esperem aqui! — Tornou Marlon. — Eu já volto. Fiquem à vontade, tá? — E desapareceu.

Olhei ao redor. O ambiente parecia aconchegante... e senti paz! Havia tanto silêncio. Mas não era um silêncio opressivo e

nem intimidador.

A decoração da sala seguia um estilo todo sofisticado e eu reparei em cada detalhe, boquiaberto, enquanto me acomodava no sofá. Ele era todo revestido com pele de animais, muito gosto­so e macio ao toque, de cor clara com manchas pretas. O tapete ao pé do sofá também era de pele.

Os móveis eram de madeira maciça e lustrosa, pesados, enormes, sem um grão de poeira. A um canto havia uma lareira encimada por duas enormes presas de marfim formando um arco. No centro deste arco a moldura contendo o meio-corpo de um homem. Imaginei que deveria ser o dono do lugar. Afinal... alguém havia de ser o dono!

As janelas exibiam cortinas de tecido espesso cor de creme e as pontas dos suportes de madeira que as sustentavam pareciam ser de bronze e reluziam bastante.

Espalhadas pelas paredes, imóveis e impressionantes, ca­beças de animais empalhadas: cabeça-de-alce, cabeça-de-leão, ca-beça-de-tigre, cabeça-de-pantera, cabeça-de-urso...não resisti e cheguei perto para ver melhor.

“Uau...como é grande uma cabeça de leão!”, pensei comi­go mesmo.

Eu olhava e olhava, impressionado com todo aquele re­quinte. Thalya parecia impressionada da mesma forma e durante os primeiros minutos não encontramos palavras para trocar. Per­manecemos ali emudecidos, apenas contemplando. A sensação de irrealidade continuava presente, permeando tudo, mesclada com uma fascinação quase perturbadora.

“Será que nós estamos mesmo aqui?”, refleti novamente. “Será que estão realmente esperando a gente?”

De repente Thalya riu baixinho, já mais à vontade: — Pôôô... — Aquele comentário curto dizia tudo, sem dúvida.

Ela sentou-se na ponta do sofá desamarrando o cordão dos sapatos com dedinhos rápidos. — O que você vai fazer? — Indaguei.

— Ah, vou experimentar este tapete tão macio! — E pôs-se a deslizar com os pés descalços sobre o tapete. — Ihh, Edú, é uma delícia, experimenta também! — E ria, ria, sem parar, feliz da vida.

Fui na mesma onda.

— Que gostoso! Será pele de quê, heim? Será que é de urso?!

— Sei lá. Pode até ser, né? Que delícia, que delícia! — Repe­tia ela sem parar.

Quando cansou, Thalya se espalhou toda refestelada no sofá. E eu então me deitei sobre aquele maravilhoso tapete tão macio.

Ficamos matraqueando por mais alguns minutos, conjeturando a respeito de tudo, até que Marlon voltou:

— Vamos, vamos, “crianças”! — Exclamou em tom brando, divertido. — Acabou a brincadeira! Venham cá.

Junto com ele vieram dois homens e duas mulheres a quem fomos apresentados. Eles sorriam muito e trataram-nos muito bem. Também já não me recordo de seus nomes. Culpa dos pseudôni­mos.

— Você vai com eles agora, Eduardo. — Disse Marlon. — Eles vão ajudá-lo em tudo e mostrar aonde você vai ficar. E a Thalya fica a encargo das duas moças aqui! Tá bem?! Até mais tarde!

Assim nos separamos. Saí com meus dois companheiros que conversavam o tempo todo por um amplo corredor. Atraves­samos um salão bem maior que a ante-sala, bonito, elegante. Recostei-me no bar, pedindo:

— Só um minuto, acho que vou por o sapato de volta.

— Não há problema. — Disse o homem mais alto. — E nem precisa colocar se não quiser, por causa dos tapetes. — E sorriu significativamente.

Compreendi o que ele queria dizer. Será que eles nos havi­am espiado por algum circuito interno de televisão?!

— É, os tapetes daqui são demais, cara! — Mesmo assim me calcei novamente.

Enquanto eu o fazia, vestindo as meias, o outro homem atrás do balcão do bar me perguntou:

— Quer tomar algo? Aqui tem umas coisas muito boas...

De fato havia ali um sem número de garrafas de bebidas das mais diferentes formas, cores e localidades. Estiquei o pescoço:

— Huuumm...

A amabilidade, a cortesia e a simpatia eram, como sempre, ímpares. Não haveria palavras boas o suficiente para descrevê-las. Ele decidiu por mim:

— Acho que você vai gostar desse aqui!

Ele me ofereceu um licor em um delicado cálice. Era de chocolate com menta, um sabor delicioso!

— Maneiro, é de outro planeta, meu irmão! — Até esqueci de controlar a gíria.

Retomamos o caminho e eles foram perguntando sobre mim, contando sobre o Castelo, falando sobre si mesmos.

— Você vai adorar isto aqui, é magnífico! — Falou-me o se­nhor mais alto. — O melhor, só para os escolhidos.

Estávamos num vasto hall de onde saiam três escadas de mármore e madeira. Deviam darem lugares diferentes. Como tudo era grande ali dentro! Subimos por uma delas e passamos a per­correr corredores forrados com grossos tapetes e enormes salas. A decoração era sempre a mesma, luxuosa, finíssima, de excelen­te bom gosto. Havia vasos maravilhosos pelos corredores, obras de arte, quadros estupendos e — demais!! — uma armadura!

Fiquei fascinado e desviei-me dos meus anfitriões para vê-la.

— Uau! Tremenda! — Era todinha decorada com desenhos e brilhava tanto que parecia mesmo de ouro puro.

Eles pararam ao meu lado com paciência e boa vontade, explicaram-me detalhes sobre ela:

— O ponto fraco da armadura... sabe aonde é? Justamente no capacete, na grade de proteção sobre a vista. Uma espada po­deria passar por aí, dependendo do ângulo, e matar o cavaleiro ferindo-o entre os olhos.

— Isso inclusive aconteceu! Com um sujeito nomeado “Ca­valeiro Negro”, na Idade Média. — Completou o outro. — Era um gladiador e, como tal, lutava pela liberdade. Até que a conquis­tou, mas o desejo de lutar era tanto que abdicou dela e continuou na prisão. Lutando. Dizem que morreu assim, com uma lança que traspassou o elmo!

Continuamos o nosso percurso. Em meio à conversa, lite­ralmente subimos, descemos, subimos, subimos, entramos em uma galeria, atravessamos corredores, portas, salas... um verdadeiro labirinto aquilo ali! Eu já tinha perdido qualquer noção de onde estava e seria incapaz de retornar ao ponto de partida. Mas a ver­dade é que não estava nem aí com isso, o papo era agradável, interessante, descontraído; e o ambiente tão bonito!

Havia dezenas de pequenas caixas acústicas espalhadas a intervalos e delas vinha sempre uma melodia suave que nos acom­panhava aonde quer que fôssemos.

Finalmente chegamos defronte à porta atrás da qual estavam os meus aposentos, segundo me informaram.