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Capitulo III
Capitulo III

Capítulo III

No dia seguinte, na escola, o pessoal estava todo estourado, roxo, com olhos e bocas inchadas. Ninguém arriscou falar nada! Ou melhor, quase nada: falaram “Bom dia” com toda educação do mundo, não pude acreditar!!!! E ficaram quietinhos, na deles.

A história da briga tinha tido uma repercussão impressionante. Ainda que eu próprio não o soubesse a maioria já tinha ouvido contar sobre a “29”, que era conhecida e temida no bairro. Todos sabiam que era barra pesada.

A partir daí minha fama cresceu vertiginosamente, primeiro na classe e depois na escola inteira. Até meu apelido de Gangue ficou conhecido. Eu já não era o trouxa, o idiota, o “Sabidinho”, o bode expiatório de todos. Agora todos sabiam que eu era o “Catatau da 29”!

Depois disso todos resolveram que queriam ser meus amigos. Tentavam aproximação, inclusive os premiados com a vingança. Estes, principalmente, tão logo a dor dos machucados amainou passaram sutilmente a vir atrás de mim. Mas eu não tive pena nem clemência, não consenti naquela amizade interesseira. Os papéis começaram, então, a inverter-se. A eminente fama e a certeza de saber-me protegido pelos meus amigos fez com que eu passasse a provocá-los. Lembro-me que os mais perseguidos eram os daquela turma idiota do F.B.I.! Volta e meia minha turma aparecia na escola e alguém acabava apanhando. Eles tinham que andar muito na linha agora.

Mas a melhor parte foi a do lanche! Quem ficava com os lanches agora era eu. Já nem levava mais de casa. Houve até aqueles que, em desespero de causa para associarem-se comigo, me compravam sanduíches e refrigerantes na cantina!

Também deixaram a melhor carteira da classe para mim. As carteiras da escola eram todas depredadas, mas logo depois da surra eu separei a melhor. E todo mundo concordou. Batiam palminhas em minhas costas:

— Essa é do Catatau!

Com todo o capricho escrevi um “CATATAU” bem grande nas costas da cadeira e na carteira que havia escolhido, tomando posse devidamente. E ninguém mais ousou sentar ali. “Se alguém sentasse na carteira do Catatau, tinha Pau!”.

O orgulho me subiu rapidamente à cabeça e acabei aproveitando um pouco a situação, confesso. Mas eu estava achando aquilo tudo a maior delícia!

Não muito tempo depois do “Dia da Vingança” tinha uma turminha do F.B.I. sentada numa esfiharia do outro lado da rua, quase em frente à escola. Era comum a molecada reunir-se ali após as aulas. Na mesinha diante deles, um prato cheio de esfihas!

Eu saí da escola e alguns amigos da Gangue me esperavam ali porque íamos direto para outro lugar naquela tarde. Estavam o Edú, o Tistu, o Márcio, o Bolinha, o Júlio, o Éder.

— E aí?! — Cumprimentamo-nos mutuamente com nosso típico aperto de mão.

Foi quando vimos os garotos do F.B.I. de longe, prontos para devorarem as esfihas. Ninguém nem precisou falar nada, bastou um olhar significativo que percorreu o grupo e nós atravessamos a rua na direção deles. Eu entrei primeiro enquanto o resto da turma ficava na calçada, bem na porta da Esfiharia. Fui seco na direção deles.

— E aí, F.B.I., tudo em cima? — Estiquei o nariz. — Bom esse treco, hein? — Sem a menor cerimônia passei a mão em uma esfiha e enfiei na boca. — Huumm, tá bom mesmo... deixa eu ver se esta outra aqui tá com o mesmo gosto! — E peguei outra.

Eles ficaram me olhando mas o Dalton tentou esboçar uma reação:

— Pôxa! Vai lá e compra prá você, cara!

Falei com ar de quem não entendeu bem:

— Comprar???!

E gritei para a turma com ar folgadíssimo:

— Chega mais, pessoal! — Eles foram entrando com estardalhaço. — Olha só, imagine que eles querem que a gente compre esfiha!

Minha turma toda fez um “AH!” caçoísta, em coro, comprido.

— Mas que coisa... — Provocou o Júlio. E o Éder completou:

— Comprar? A gente?! Você delirou, é, seu (...)? Tá pensando o quê?!!

O Éder era muito doido, eu já sabia daquela sua índole agressiva. E ele não estava muito bem aquele dia, estava meio drogado, eu já conhecia bem o jeitão da coisa. Sem o menor aviso ele pegou a garrafa de coca-cola que estava em cima da mesa e deu com ela na cara do Dalton, com força. O susto foi tão grande que ele foi parar no chão, caiu com cadeira e tudo, o sangue já escorrendo do nariz.

Eu fiquei horrorizado!...Era uma violência desproporcional, não precisava daquilo. O pessoal do F.B.I. emudeceu e o Dalton levanto e saiu de cena de fininho. Avançamos nas esfihas que estavam na mesa como se o F.B.I. não existisse. Eles nem tentaram levantar, com medo que o Éder perdesse a paciência com mais alguém!

O Márcio já estava sentado na mesa ao lado do desenxabido F.B.I.. As esfihas acabaram em segundos e ele se levanto, foi até o balcão. Apoiou os cotovelos sobre a fórmica e assobiou agudo, erguendo o dedo:

— Ei! Vê mais esfiha aí prá gente! — Gritou ao senhor de avental côr-de-vinho que servia a comida.

Devia ser o próprio dono, ele não tinha ar de funcionário contratado e estava sozinho. Mas já havia percebido o que estava acontecendo e perguntou, meio áspero:

— É? E quem vai pagar por mais estas?? O Márcio virou a cabeça na nossa direção e apontou os garotos do F.B.I. com o queixo, falando com calma: — Aqueles carinhas ali. Mais que depressa um deles falou alto: — Mas não dá mais para pagar! O nosso dinheiro já acabou! — Tentou explicar.

Só que aí foi a vez do dono da esfiharia encrespar. Estava í mais do que na cara que ia sair confusão.

— Como, “acabou o dinheiro”?!! Vocês pensam que vão sair sem pagar?? — Gritou o homem voltando-se de novo na direção do Márcio. Ergueu o tom de voz e ameaçou, todo irado. — Pois eu vou chamar a polícia, seus bandidos, seus marginais! O que é que vocês estão pensando?!

Coitado. Achou que aquele destampatório poria um fim em tudo. Foi o erro dele. Se tivesse ficado de boca fechada o prejuízo teria sido menor. Sinceramente eu já não estava a fim de comer esfiha nenhuma.

Vi que o Éder ficou branco. Drogado como estava ele levanto decidido e agarrou o homem pelo colarinho, por cima do balcão, e o sacudiu com violência. Falou pausado, entre dentes, com ódio, quase encostando o próprio rosto no rosto já lívido do outro:

— Você vai o quê? Vai o quê?? Chamar a polícia? — De repente deu um urro de gelar até cadáver: — Defunto não chama policia!! Quando a polícia chegar você vai é estar morto, seu (...)!!!

Com um empurrão o Éder largou o colarinho do homem e começou a arremessar longe tudo o que estava à sua frente, com gritos de fúria, o corpo se agitando de raiva.

Em frações de segundo o estabelecimento virou uma balbúrdia da grossa. Um começa e todos vão atrás. Foi que nem jogar inseticida num formigueiro!

Como sempre foi tudo muito rápido, um abrir e fechar de olhos. Fiquei meio perdido enquanto meus companheiros jogavam as cadeiras sobre os vidros das janelas e das vitrines de alimentos, reviravam as mesas com estrondo e tudo o que havia ao alcance era pisoteado e espatifado aos berros. O dono nada pôde fazer além de encurralar-se encolhido atrás do balcão e assistir a tudo mudo de terror.

Eu fiquei assustado, novamente senti as pernas meio adormecidas, aquela estranha violência era algo que eu só conhecia da televisão. Mas eu não podia ficar parado, tinha que fazer alguma coisa, não podia dar prá trás na frente deles. Eu me obrigava a “ser mau”. Na Gangue todos eram maus. Se eu quisesse realmente fazer parte deles eu teria que ser como eles. Tinha que ser mau!

Acabei ficando penalizado por causa do pobre homem diante do exagero da turma. Até dos garotos do F.B.I., pegos tão de surpresa, também acabei ficando com pena. Estavam apavorados, encolhidos contra a parede, tentando proteger-se.

Mas eu não queria quebrar nada apesar de saber que deve­ria fazê-lo. Então atirei uma cadeira sobre uma mesa, gritando, assim que percebi o Júlio olhando para mim. Só fez barulho, amas­sou um pouco e foi só o que eu consegui fazer. Já era hora de debandar! Eu nem vi mais ninguém, o negócio era pernas prá que te quero!

Demos o fora mais depressa ainda que o F.B.I., cada um numa direção. Essa era a lei, fugir o mais depressa possível e se encontrar depois na “29” antes que pintasse polícia. Corri como doido.

Quando cheguei eles já estavam lá. Eu ainda não estava acostumado com a frieza deles. Sem qualquer peso na consciên­cia eles comentavam uns com os outros como se não tivesse acon­tecido nada de mais. Minha necessidade de mostrar que eu era como eles era tão grande que meu comportamento soou até estereo­tipado:

— É isso aí, aquele cara merecia isso mesmo! Alguém devia era ter dado uma porrada na cara dele! — Eu repetia frase após frase que nem um grilo falante. Eu tinha que provar minha malda­de. Só não sei se o pessoal acreditava muito, naquelas alturas. Mas deixavam passar, o que importava era a minha intenção.

Sentado de costas para a parede o Márcio fumava sem pressa e reclamou de leve:

— Pôxa, bem que alguém podia ter se ligado e trazido o resto das esfihas prá gente, né?

— Não dava, cara! Sério! — Explicou o Tistu.

— Pois é, estava tudo cheio de caco de vidro! — Confirmou, com irreverência, o Bolinha.

***

Voltei para casa pensativo e tarde naquela noite. Eu estava cada vez mais impressionado com o que vinha vivenciando desde que entrara para a “29”.

Eles nunca pensavam em conseqüências. Percebi que quan­do não se tem nada a perder o mundo vira uma festa. Não é preciso pensar em nada, se preocupar com nada, medir conseqüências de nada. É só fazer, e pronto! O que quiser. Pode-se ir contra todas as leis, viver um verdadeiro anti-sistema.

Aquela não era a minha índole mas era preciso confessar minha admiração por eles. A valentia, o companheirismo, a força furiosa que só os que andam em bando podem ter...!

O fato de pertencer à Gangue me dava uma incrível sensa­ção de segurança, algo que eu nunca tinha experimentado. Eu tinha que ser como eles, eu queria, era um dever e eu iria me esforçar.

É difícil descrever em palavras. Era estranho e fascinante ao mesmo tempo, como ter encontrado uma família perdida, um lar. Agora eu tinha certeza de que não estava mais sozinho e que éramos todos por todos. O pertencer à Gangue nos tornava ir­mãos e aquele compromisso era mais sagrado do que qualquer coisa. Transformava tudo! O número 29 era o nosso selo! O que fazia toda a diferença, o que realmente importava.

Naquela noite adormeci pensando na “29”. Peguei no sono com a imagem deles vivida diante dos meus olhos... bebendo... fumando... se drogando.

***

A partir daí meu dia-a-dia tornou-se uma tremenda suces­são de brigas. Eu estava metido em confusões com a Gangue pra­ticamente todos os dias porque nenhum de nós deixava passar a menor ofensa. Parece que nós atraíamos este tipo de coisa...

Tudo bem que às vezes a gente provocava, como no caso do F.B.I. Mas eles tinham antecedentes. Dificilmente procuráva­mos rolo do nada.

Não havia como não participar daquilo. Armávamo-nos com nossas armas costumeiras: corrente com cadeado na ponta, estiletes, facas, soco-inglês, essas coisas “corriqueiras”. O soco-inglês era caseiro, feito com um pedaço de cabo de vassoura e perfurado com pregos. Os revólveres iam sempre junto para o caso do tempo fechar mesmo. A maioria levava consigo pelo menos duas ou três armas.

Tive que aprender na marra. De início eu procurei não me preocupar, estava com meu 32 e uma corrente que o Edú me emprestara. Ia estrategicamente postado perto de meus amigos mais chegados, o próprio Edú, o Tistu, o Júlio, o Éder, o Márcio. Antes de sair, o ritual costumeiro deles, do qual eu não participava: uma puxada de erva, o preparo emocional “pré-guerra”.

Eu não puxava erva nenhuma. Era apenas um aprendiz.

Eles não se incomodavam com a minha presença tão perto nas brigas. Muito pelo contrário, faziam questão. Como o meu próprio apelido dizia, “Catatau” é Mascote e eles tinham todo um cuidado especial para comigo. Todo mundo sabia que eu não era capaz de me defender sozinho ainda. Não era motivo de vergonha. Mas se alguém me ferisse, era como ferir a Gangue inteira.

No meio da confusão, da gritaria e da correria eu procurava usar a corrente naqueles que sobravam prá mim, ou seja, quase ninguém. Meus amigos me cercavam, com um olho na briga e o outro em mim. E eu não acertava lá muito bem.

Quando era só um acerto de contas tudo tinha que acontecer em mais ou menos sessenta segundos, como na porta do meu colégio. Passar disso era pedir que a polícia acabasse pegando a gente. O resultado daquele um minuto de guerra era deplorável. Aquela estranha reação apareceu nas primeiras vezes, sentia todo o meu corpo tremer, as pernas balançarem. Mas me controlava.

E uma vez terminada minha contagem mental de 1 até 60, fugia sozinho para a “29”, como combinado.

— E como sempre, não deu em nada! — Comentou o Tistu certa feita.

Como eu viria a perceber, esse era um fato. Nunca desceu viatura ali na nossa casa, e a vizinhança bem que sabia o que rolava por lá. Mas até os vizinhos tinham medo e nem se intrometiam.

Nosso jeito de vestir, de falar, de agir, nossa presença já denunciava aquele cheiro de “marginalidade”. Éramos discriminados, é verdade, muitas vezes ostensivamente. Mas nada ficava sem troco!

E aos poucos fui deixando de ter medo.

***

Eu estava realmente enturmado na Gangue. Fui aprendendo com meus novos amigos tudo o que fosse necessário.

Assaltar foi o próximo passo. Depois do meu “batismo” no supermercado eu tinha me tornado especialista em pequenos furtos, mas nunca tinha roubado de verdade. Como a Gangue sobrevivia de pequenos assaltos, naturalmente que eu precisava aprender a fazer a mesma coisa. Foi o próprio Márcio que deu uma de Professor.

Uma tarde eu estava na “29” junto com o Edú e o Júlio, deixando o tempo passar. O Márcio e o Tistu me abordaram tão logo chegaram na sede.

— Catatau, vamos lá comigo! — O Márcio já foi logo me puxando pela manga e exclamou, num jeito muito próprio, com as mãos à cintura. — Tá a fim de aprender coisa nova?

— Nem...

— Legal! Vamos ver como é que se descola um picho! Arriba, maninho!

O Edú e o Júlio foram junto. Saímos os cinco para a calçada, lado a lado. Observei o jeito espevitado do Márcio. Ele era mau, muito mau! Já tinha ouvido contar que quando ele perdia a paciência era sanguinário. Mas eu o admirava bastante e ficava satisfeito cada vez que ele queria me ensinar alguma coisa. Sinal que ele me achava “promissor”!

Em poucas palavras, explicou:

— Hoje você só olha, Catatau. Para ver como é que faz, falou? Depois a gente descabaça você!

Descabaçar queria dizer “fazer a primeira vez”. Isso significava que na próxima oportunidade eu faria sozinho, mas ainda com a supervisão deles. E mais tarde o esperado era que eu soubesse me virar por mim mesmo, sem a ajuda de ninguém. A maioria deles era capaz disso.

E assim foi. Ele fez a função em diversos pontos comerciais pequenos naquele dia. Papelaria, vendinha, uma casa de artigos orientais. Eu tinha que começar com o mais fácil.

As pessoas nem esboçavam reação. Era muito fácil. Ponto de ônibus também era quente, nunca ninguém reagia. Também... reagir como? Nós chegávamos em grupo, com a agressividade à flor da pele, já na base do empurrão, encostando arma, chutando, o que fosse necessário. Aquilo intimidava. E eu tinha certeza: se alguém revidasse, eles atiravam.

Eu ficava morrendo de pena daquela gente, mas o que podia fazer???

A abordagem tinha que ser como uma explosão, especialmente a nossa - os menores de idade. Praticamente ninguém tinha maioridade ainda. E eu, em especial, era realmente um “Catatau”. Por isso, mais do que os outros eu aprendi que se quisesse ser bem sucedido tinha que dar uma de louco, ameaçar de verdade, nada de meia-boca. E que esquecesse aquela história de ter dó! Era preciso destilar ódio em cada palavra, cada gesto, sem medo... senão o feitiço podia virar contra o feiticeiro!

E aprendi. Meu primeiro assalto foi o de uma mulher que saía do banco com grana gorda. Umas garotas “simpatizantes” da “29” auxiliaram um pouco. Nós não podíamos entrar no banco sem despertar suspeitas, então essa foi a parte delas. Assim que recebi o sinal e vi quem era a pessoa, fui atrás decidido, a adrenalina circulando nas veias.

Não tinha mais medo. Estava com o revólver na cintura e em poucos minutos meu pessoal viria atrás de mim. Não tinha o que dar errado.

Ela parou perto do carro que deixara estacionado, sossegada, ajeitando o cabelo. Havia dois homens parados a alguns passos, perto de um ponto de ônibus. Não podia perder mais um minuto. Cheguei bem perto dela, quase encostando no seu corpo e mostrei a arma coberta pela jaqueta. Pelo canto do olho vi que logo atrás de mim estavam o Tistu e o Éder.

Destilei ódio em cada palavra de ameaça, muito rapidamente. E ela simplesmente abriu a bolsa e me deu todo o dinheiro, muda e lívida. Um maço enrolado com elástico.

Os homens que estavam no ponto e que conversavam entre si sequer notaram o ocorrido. Eu saí nas nuvens. Tinha sido fácil demais. Na esquina, só observando, o Tistu e o Éder continuavam de olho em mim. O resto da turma, mais distante, disfarçava olhando vitrines.

Só nos juntamos novamente a duas ou três quadras dali.

Exibi o macinho de dinheiro. Ganhei todo o mérito. Entramos no ônibus e fomos para o fliperama. A grana foi dividida e passamos a tarde toda jogando. Compramos uma quantidade absurda de fichas e muita cerveja.

E assim eu ia descabaçando aos poucos. O roubo tinha o seu “lado bom”. Nós nos divertimos prá valer com o dinheiro arrecadado!

— Aêh, galera!! — Gritou o Bolinha. — Quem quer umas pizzas?!

Na Gangue, o que era de um era de todos, era sempre assim. E dinheiro nunca faltava porque todo mundo roubava. Nada era mais divertido do que gastar dinheiro em bando!

Às vezes o dinheiro também podia ser simplesmente dividido e cada um usava o seu conforme conviesse melhor. Havia quem gostasse de gastar com mulheres. Outros compravam roupas e objetos de uso pessoal. Tinha quem destinasse tudo para as drogas. Eu, particularmente, gastava em muito chocolate e amendoim japonês. E armas, minha nova febre!

Comprei uma corrente grossa para usar com um cadeado na ponta, amarrada à cintura, como todos tinham; comprei também mais de um canivete automático. Depois disso não saía sem a corrente e sem o canivete. E sem o 32.

***

Depois eu me vinguei dos meus vizinhos. Era um sábado.

Sentados na calçada em roda, com o sol batendo nas costas, eu, Edú e Júlio comíamos um pacote de bolachas sem pressa. Foi o Júlio quem comentou:

— Gozado, aquela turma de marmanjos que jogava bola aqui sumiu, heim?

— Olipinho começou a trabalhar, foi isso. Era ele quem sempre organizava os jogos. Por isso que miou tudo, o cara sumiu mesmo! — Disse Edú.

Meu semblante carregou um pouco.

— Pois é, é pena. Eles me torraram de verdade logo que cheguei aqui e acabaram escapando sem troco. — Lembrei-me do quanto me haviam feito de gato-e-sapato.

— Mas agora a rua está livre, o que para nós é melhor. Mas eu continuei resmungando.

— É... só que de quebra também ficou melhor para o pessoal da vila. Agora eles não têm mais rivais!

Ficamos os três calados, mas parece que todo mundo pensava a mesma coisa. A princípio eu não estava a fim de armar confusão na porta de casa. Mas deixar passar também não era mais o meu forte. “Vingança se come fria...”

— Pois eu acho que esses caras da vila merecem a lição deles! — Exclamei de repente.

Comentei por cima o que já tinha passado. Eduardo e Júlio ouviram com interesse e concordaram de pronto que tinha sido mesmo um tremendo desaforo.

— Arruma a treta que te damos cobertura! — Falou Edú. Beleza! E fiquei esperando a deixa. Eu sabia quando eles jogavam bola, sempre a “vila de baixo” x “vila de cima”. Cheguei um pouco antes para dar uma olhada. Foi facílimo arrumar confusão. E mais fácil ainda foi minha turma espancar todos eles sem dó. Meu pessoal escutou o tumulto que eu tinha causado e já estava de prontidão assim que virei a esquina, correndo que nem corisco. E novamente, a vingança! Alguns poucos conseguiram voltar e escapulir para dentro de suas casas mas a grande maioria foi espancada.

O espírito da Gangue já me dominava. Foi a primeira vez que bati realmente sem clemência e sem medo. Só parei quando vi meu oponente todo arrebentado. Já não era eu mesmo. A transformação tinha começado.

— Futebol aqui acabou! — Decretamos. E eles tiveram que obedecer. Já nem era preciso o pessoal da “29” estar lá para me dar costas quentes. Descobri que eu mesmo podia resolver a parada.

Um outro dia a turminha estava ali se preparando para jogar, contra a nossa ordem. E eu apareci. Tinha só o Júlio e o Éder comigo, pouca gente se inventássemos de sair na mão por qualquer motivo. Eles ficaram à distância, sentados na calçada, só observando.

— Vamos acabar com esse jogo ou vamos ter confusão de novo? — Fui dizendo em tom firme.

— Pôxa, Catatau, vocês ficam mandando na gente... deixa a gente jogar, pôxa! — Pediam humildemente alguns do grupo.

O Wagninho era o mais inconformado. E, pelo visto, não tinha ainda entendido muito bem o recado. Quis dar uma peitada e já veio com grosseria. Devia estar com coceira na mão de tanta vontade de me pegar! Grandão como era abaixar a crista para mim, menor do que ele, era muita afronta.

— Mas quem é que você pensa que é, heim, seu moleque ??!!! O que é que você pensa que virou agora??!!! Nem meu pai decide quando eu jogo ou não jogo bola!! — E já veio querendo partir para a ignorância.

Mais que depressa eu saquei a corrente da cintura e comecei a girá-la bem próximo ao rosto dele, demonstrando que tinha intenção de acertar se ele desse mais um passo. A cada avanço meu com a corrente ele ia para trás, até que se viu encurralado no canto da parede. E percebi pelo seu olhar que ficou amedrontado.

— Pára aí! Pára aí! — Ele gritava, já mais manso. — Pára aí, cara!...

O resto da turma da vila nem ousava se meter. Meus amigos continuavam sentados no chão, observando de longe.

— Será que uma correntada dói mesmo?... — E fiz que ia dar um soco embaixo com a outra mão. Ele desguarneceu a face ao abaixar os braços para se proteger. E então eu enfiei o cadeado com força no seu rosto.

Ninguém acreditou no que viu. Nem eu.

Só vimos o corpo dele desmoronando e tombando no chão com um baque, o sangue escorrendo profusamente da lateral do rosto e da sobrancelha. Wagninho não se mexeu mais. Eu não imaginava que ele fosse cair, achava que nocaute daquele jeito era coisa de filme!

— Nossa... corrente é um negócio poderoso... — Refleti numa fração de segundos entre o golpe e o tumulto do pessoal da vila, que ficou assustado de verdade.

— Gente, ele está mesmo machucado!!!

— Chama o pai dele, depressa!

Foram aglomerando ao redor do Wagninho, que parecia completamente de porre.

O Júlio e o Éder estavam do meu lado antes que eu tivesse me dado conta. Eu também estava meio atordoado.

— Vamos, Catatau, vamos sair daqui. Não é bom esperar para ver no que vai dar isso aí.

Saímos andando, como quem não tinha nada que ver com a história. Eu fui o caminho todo só olhando para a corrente e o cadeado: “Devia ter descoberto isso antes”.

A partir daí usei muito a corrente. Vi que ela podia definir a briga em um só golpe, se fosse bem dado.

***

Naquele mesmo sábado saí de casa de novo no final da tarde. Despistei o Roberto que teimava em ficar no meu calcanhar. Ele já estava maiorzinho agora, com uns 8 para 9 anos, e cansado de ficar sempre em casa jogado para as traças. Mas era impraticável levá-lo comigo aonde quer que fosse.

— Eu vou junto! — Gritou ele para mim tão logo viu que eu me aprontava para sair.

Tentei convencê-lo por bem:

— Vai começar aquele programa de televisão que você gosta.

— Na casa da vó tem bolo e a mãe está indo prá lá!

— Te empresto a minha bicicleta e te dou dinheiro para comprar sorvete.

Nada adiantava. Ele estava cada vez mais irredutível. Por fim, ameacei:

— Acontece que você não vai comigo! Deu prá entender? -E já fui dando a volta na chave para sair.

Birrento, ele gritou para minha mãe que estava lá nos fundos:

— Mãe! Estou saindo com o Eduardo!

Senti a raiva me subindo à cabeça. Mas que droga de garoto!

Ele já saía para o corredor comigo e tive que apelar. Nem bem ele se virou para trancar a porta do apartamento e eu “Zupt!”, voei que nem um corisco escada abaixo. Ganhei a rua antes dele e, coitado, Roberto teve que voltar chorando para casa.

Fui para a “29” pensando na vida e nos problemas que teimavam em avolumar-se dentro de casa. Cheguei já de cabeça meio quente. Um pouco antes de sair eu havia discutido novamente com meu pai. Qualquer coisa era motivo para que ele pegasse no meu pé. Nós vivíamos em pé de guerra.

Aliás, desde tenra idade eu costumava ouvi-lo berrar para minha mãe, no meio das discussões:

— Esse moleque não é meu filho!

De fato meu pai me rejeitou muito. Eu não sabia por que. Até mais de dez anos de idade ele não parecia me tratar como filho. Eu sentia toda a diferença que ele fazia entre mim e Roberto.

Quando era bem pequenino uma vez fui remexer nas coisas de minha mãe. Eu sabia aonde ela guardava as certidões de nascimento e quis me certificar de uma vez por todas, saber quem era o meu pai. A resposta só poderia estar ali naqueles papéis! Minha mãe me surpreendeu com a mão na massa e me consolou um pouco:

— É claro que ele é seu pai, Eduardo. Que bobagem! Olha o nome dele escrito aqui.

— Mas ele não me trata igual ao Roberto.

Ela me convenceu o melhor possível. E foi ficando por isso mesmo. Cresci e me acostumei. E acho que meu pai também. Fosse ou não filho dele o que estava feito, estava feito. Mas que vivíamos em pé de guerra, ah, isso vivíamos!

O melhor tempo era o que eu passava fora de casa! As brigas eram muito constantes mas, no momento, o “grande problema” era que eu continuava andando com a turma da Gangue. Quer eles aprovassem, quer não.

De semblante meio amarrado entrei na sala onde estava acomodada a turma. Estava meio friozinho mas ali eu me sentia em casa.

— Chega mais, meu irmão!

Fui me jogando no chão sem onda, apoiando as costas contra a parede, ao lado do Tistu e do Júlio. Foi o Éder quem notou.

— Tua cara não tá das melhores, Catatau! Junta aí na roda e puxa uma viajada que isso passa.

Os outros concordaram, olhando para mim. Era muito difícil alguém me pegar chateado. Eles rodavam o costumeiro cigarro de maconha e já haviam oferecido muitas vezes. Eu dava uma bicada de leve mas nunca queria provar de verdade. O pessoal respeitava minha decisão, sabiam que não precisava insistir. Era só questão de tempo.

E o tempo chegou. Eu só queria afogar aquele sentimento ruim que crescia por dentro. Eu era a ovelha-negra... estava destruindo a família... não me importava com ninguém...e também ninguém se importava comigo!

Resolvi aceitar. Fiz porque quis.

O Éder começou a preparar um cachimbão só meu. Sabiam que era a primeira vez e capricharam, era noite de novidades para mim. Ele estendeu o cigarro com o olhar meio enviesado e sorriu:

— Manda ver!

Eles continuaram entretidos na roda e me deixaram sossegado. Acomodado no canto da parede, com os cotovelos sobre os joelhos e o cigarro seguro entre os dedos, nem liguei mais e comecei a fumar de verdade!

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . !

De repente tudo estava muito engraçado e eu já não achava a vida tão injusta. Dava risada de tudo, da cara do Bolinha, do tênis branco do Edú, do cabelo do Márcio e até da porta, da janela, e de tudo o que me falavam. E ria, ria, sem parar. Percebi que estava balão de verdade.

Depois aquela sensação que se repetiria muitas vezes... aquela coisa irreal, aquela leveza... o chão afundando como nuvem... as cores carregadas... o mundo rodando... a parede estava ondulada e parecia que se inclinava na horizontal até o chão.......era gostoso!

— Esse negócio é muito louco... — Me ergui, pulei, apalpei as coisas. — Pôôôô.....!

Peguei o hábito mesmo. Eu queria experimentar todas as sensações. A maioria do pessoal ficava parado, sentado, só viajando, mas eu queria mais. Então fumava e depois saía com a bicicleta. Era uma coisa alucinante! Eu via tudo diferente, um mundo diferente. Era o que eu queria. Um mundo diferente!

***

A droga vinha de um traficante local, o Torba, um sujeitinho fuinha cujo nome verdadeiro ninguém conhecia. E ele aceitava tudo em troca do bagulho: toca-fitas, relógio, jaqueta... era fácil roubar alguma coisa e comprar a muamba com ela. Nem era preciso ter o trabalho de vender.

Aos poucos descobri que a droga era uma dualidade.

Por um lado aliviava a tensão. Mas por outro, aquela “mexida” na cabeça também me fazia muito mais violento. Cada vez menos eu me importava com o que pudesse acontecer nas brigas. Isso era bom porque parecia que o motivo de estarmos vivos era esse: Pau, Pau, Pau!

Impúnhamos ao mundo, através da violência, aquela realidade: nós existíamos!  Existíamos, sim, e isso ia ser enfiado goela abaixo de quem quisesse meter-se conosco. E aquilo me envolveu. Pelo menos na Gangue eu tinha diálogo, coisa que em casa era inexistente.

Tomei muito cuidado para não viciar, apesar de saber que a maconha era a mais inofensiva das drogas. Procurei manter uma freqüência de apenas umas três vezes por semana.

Eu estava definitivamente adaptado ao grupo. Já tinha sido descabaçado em praticamente tudo e nada mais era novidade. Isto é, quase nada...bebia, fumava, roubava... mas não estava nem aí para a mulherada! Pelo menos, não da mesma forma que a maioria deles. A turma bem que tentou me arrastar para os prostíbulos vez por outra, mas com relação a isso eu era terminantemente contra. Ia totalmente contra os meus princípios.

Uma ou outra vez eu até acompanhei a turma na noitada, mas não quis saber de nada.

Eles respeitavam, ainda que rissem, debochando com certo carinho.

— Deixa estar, esse “catatauzinho” ainda cresce! E aí você vai deixar de ser “donzelo”!

Eu dava risada junto e me defendia:

— Vê lá, já cresceu, já! Mas não achei ele no lixo, né? Prefiro continuar “donzelo”!

***

Pouco tempo depois eu comecei a praticar Arte Marcial, Kung Fu para ser mais exato. Estava com 12 anos e os treinos eram os momentos mais cruciais para mim. Era a melhor forma de extravasar, extravasar, extravasar. Como eu precisava extravasar!!!

Meu pai tinha comentado, tempos atrás, que talvez a melhor coisa para mim fosse fazer algum tipo de esporte. Quem sabe aquilo ajudava a gastar toda aquela energia que eu tinha de uma forma mais proveitosa?

Resolvi acatar a sugestão e disse que queria aprender Arte Marcial. Ninguém sabia a diferença entre elas, nem eu, e então minha mãe matriculou-me numa Academia de judô. Eu suportei aquilo uma semana e desisti. Era muito chato, todo mundo se agarrando e caindo no chão. Aquilo não dava para mim!

A história do Kung Fu começou meio que por acaso. Certo sábado pela manhã eu estava em casa de minha avó e havia saído para dar uma banda com o Rodolfo, um amigo de infância, por ali mesmo. A faixa chamou a nossa atenção: “Hoje! Venha assistir apresentação de Wing Chun Kung Fu”.

Eu e Rodolfo fomos xeretar. A coincidência foi tanta que faltava apenas uns quarenta minutos para começar a tal coisa. Eu já era aficionado com lutas fazia tempo. De repente... aquele cartaz à minha frente!

A apresentação foi muito simples, sem exageros, mas a técnica apresentada me fez lembrar imediatamente do filme “Shaolin contra os Doze Homens de Aço”. E eu percebi que a Arte Marcial que eu admirava tanto era o Kung Fu! A plasticidade dos movimentos e a beleza dos chutes me fascinaram. Mas quando o Professor mostrou um pouquinho de nunchaku...com aquilo eu realmente me encantei.

No final da apresentação eu corri a falar com ele:

— Pôxa, Professor, como você mexe bem este “chaku”!

— Não é “chaku”, é nunchaku. E você também pode fazer isso, é só prática!

Quando voltei para casa fui logo avisando:

— Quero fazer Wing Chun!!!

E fui. Meu desenvolvimento começou a se dar muito rápido. De início eu tinha aulas durante 3 horas apenas aos sábados. A filosofia daquele meu primeiro Professor, o Ageu, era a seguinte:

— Durante a semana devemos nos preparar para o Kung Fu! Por isso a importância do condicionamento físico. O seu corpo precisa ser preparado diariamente para que você tenha condições de realizar a técnica!

Dessa forma ele nos passava um programa gradativo de exercícios para serem feitos individualmente durante toda a semana. E aos sábados nos dedicávamos somente ao Kung Fu e como tudo o que me entusiasmava, eu passei a respirar aquilo.

Corria, fazia exercícios musculares religiosamente montanhas de abdominais, flexões de braço, alongamento. O alongamento em especial meus pais definitivamente não entendiam. Eu amarrava minhas pernas estendidas ao máximo nos pés do sofá e lá ficava, diante da TV. Meu pai chegava do serviço e não acreditava naquele “massacre”. Comentava com minha mãe:

— Será que esta coisa está fazendo bem para ele?

A noite, antes de deitar, eu relembrava as seqüências técnicas aprendidas. À medida que meu corpo ia respondendo eu pegava mais pesado ainda nos exercícios. Comprei caneleiras e corria com elas. Aumentava a distância e a velocidade tanto quanto me fosse possível para melhorar minha capacidade aeróbica Com as caneleiras eu trabalhava melhor também a parte muscular. Quando as retirava, parecia que minha perna voava.

Desenhei na parede do quintal de casa o contorno de um homem, com todos os pontos vulneráveis que aprendi. Treinava ali, incansavelmente, os meus chutes.

Todo o dinheiro que eu tinha passei a investir no Kung Fu. Comprei vários kimonos. E armas, armas, armas. Tinha muitos modelos de nunchaku, de shurikiens e também espadas.

Naturalmente que progredi a olhos vistos. Logo o Ageu passou a me elogiar diante dos demais. Primeiro comentou o efeito dos exercícios sobre o corpo e a musculatura. Depois, à medida que o tempo passava, começou também a elogiar a destreza da técnica.

Eu era mesmo muito esforçado. Incapaz de voltar no sábado seguinte sem ter treinado exaustivamente tudo quanto fôra dado no anterior. Da mesma forma eu não saía da aula sem todas as dúvidas resolvidas. Mestre Ageu costumava nos exortar:

— Você pode levar 10 minutos para adquirir um vício e um ano para tirar!

Logo deixei a turma para trás. Ele foi muito jóia comigo porque me adiantava em técnica individualmente, na medida do meu ritmo. Certa ocasião, durante o treino, Ageu bateu no meu ombro com um gesto amigável:

— Admito que em matéria de nunchaku você está ficando melhor do que eu!

De fato eu tinha uma fixação toda especial com aquela arma. Não saía mais de casa sem ele e com o tempo eu iria me tornar um exímio manejador. Ao lado da faca e do revólver, o nunchaku agora fazia parte do meu arsenal diário de armas. Ainda usava a corrente também, se se fizesse necessário.

Naquela época entrou uma nova modalidade de Kung Fu na Academia, o Union First, com outro Professor, um sujeito super-jóia chamado Péricles. E eu passei a treinar também com ele durante a semana. O Union First era um estilo completamente diferente daquilo que eu estava acostumado a praticar no Wing Chun. Era peculiar: uma mescla de 9 estilos de animais, dragão, macaco, urso, cavalo, águia, tigre, garça, serpente e grou.

Quem trouxe o estilo ao Brasil foi um Mestre chinês de nome Machon Yung, um sujeito muito considerado pela comunidade chinesa. Ficamos sabendo que o próprio Péricles era discípulo do Mestre Yung e treinava no Centro Social Chinês, lá na Liberdade.

A prática do Union First me abriu os horizontes tremendamente. Melhorou minha criatividade e a visão das potencialidades do Kung Fu; ganhei em agilidade, destreza e flexibilidade. Comecei a me envolver com um Kung Fu bem mais acrobático. O Wing Chun tinha sido criado por Nig Mui, uma monja do lendário Templo Shaolin. Era seco e direto, muito agressivo, mas sem tanta beleza. Já os estilos de animais, característica clássica do Kung Fu, eram belíssimos.

Comecei a descobrir não só a potência dos chutes altos e dos chutes de giro (coisas que no Wing Chun eram absolutamente impensáveis), mas também diferenças tremendas em relação aos dedos e ao que eu podia fazer com as mãos. No Wing Chun o ataque limita-se aos golpes de mão fechada e à palmada. Mas comecei a ver que havia muito mais que isso, aprendi que os movimentos em garra, por exemplo, eram muito eficazes.

As torções do Union First também tinham seu brilho para mim, eram divididas em 7 módulos de 7 torções e sua principal característica era a capacidade de causar fraturas múltiplas.

O Péricles também dava uma ênfase muito especial ao combate. Mas não era uma pancadaria pura e simples, ele procurava sempre manter ao máximo a postura e a técnica corretas.

Um dia, num descuido, levei um chute na cara que me abriu o supercílio. Em casa tive que ouvir um monte de minha mãe:

— Quer dizer que eu gasto dinheiro com Academia prá acabarem com você??? E quem paga o médico depois?!!! — E blá, blá, blá.

Eu a deixei falando na cozinha e fui para a sala colocar um bife gelado no hematoma. Tinham-me dito que era bom. Afinal, uns machucados fazem parte!

— Não vou mais pagar Academia coisa nenhuma! Você está é ficando pior do que antes...! — Foi a conclusão categórica de minha mãe.

Meus pais foram irremovíveis em sua causa. Para eles aquela “pancadaria” não ia me levar a nada. No entanto, como ótimo aluno que eu era, não foi difícil fazer um acordo na Academia. Mestre Ageu até se ofereceu para falar pessoalmente com minha mãe, explicar porque eu tinha me machucado.

— Pôxa, ela está equivocada. Você está indo tão bem! Vamos marcar para conversar.

Minha mãe nem deu atenção e não foi conversar com ele. Eu estava super frustrado e comentei meu pesar com ele e com o Péricles.

A solução acabou sendo encontrada: eu passei a ser responsável por diversos pequenos serviços dentro da Academia: varria o chão, atendia telefone, punha e tirava tatames, punha e tirava o saco de pancada, trabalhava na secretaria, fazia matrículas, era um pau para toda obra. E não pagava mais para treinar!

Eu não ia largar mão do Kung Fu! Todos os outros alunos que haviam começado na mesma época que eu foram aos poucos desistindo, por falta de disciplina e empenho. A arte por si só exercia uma seleção natural sobre o grupo. Muitos começam mas poucos terminam. E eu ia terminar!

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