Criar uma Loja Virtual Grátis
Translate this Page
Ultimas Atualizações
Início  (10-10-2024)
Contactos  (10-10-2024)
tneestudosbiblicos  (10-10-2024)
Dicionarios Biblicos  (10-10-2024)
Capitulo XIII  (10-10-2024)
Capitulo XII  (10-10-2024)
Capitulo XI  (10-10-2024)
Capitulo X  (10-10-2024)
Capitulo IX  (10-10-2024)
VOLUME 2   (10-10-2024)

Rating: 2.9/5 (29 votos)




ONLINE
1





Partilhe esta Página




Capitulo IX
Capitulo IX

Nesta época eu continuava treinando Kung Fu, só que agora vinha ganhan­do bem na ADINK. Tinha um salário invejável. E fazendo o que eu gostava!

Tinha o meu grau de Professor em Wing Chun. E logo depois disso passei a ser também instrutor na W. Wei, ensinando Ton Long como era do meu interesse. Eu me aperfeiçoava com rapidez no novo estilo. Estava no final do quarto está­gio e tinha sido aprovado com notas “dez” nos estágios anteriores. Por indicação dos meus superiores, e após minha aprovação como instrutor, passei a ter aulas somente com o principal Mestre da Academia, o Liu. Era também ele quem coor­denava os exames. Treinando sob a sua supervisão eu iria progredir ainda mais rápido. Só os melhores tinham aulas com ele.

Os chineses são muito criteriosos em suas avaliações. Para arrancar deles um “dez”... não é fácil! Do Mestre Liu em especial. Ele até dava notas altas se houvesse merecimento: 9.6; 9.7; até mesmo um 9.8 eu vi acontecer. Mas eu fui o único na Academia a conquistar todas as notas “10.0” nos meus exames, inclusi­ve em técnicas específicas.

Isso sem dúvida foi a principal porta de acesso ao seleto e reduzidíssimo grupo de alunos de Mestre Liu. Os treinos aconteciam no Bairro da Liberdade. Isto me estimulava muito, a maior parte dos alunos era mais adiantada do que eu. Isso significava novos referenciais e metas a serem atingidas. Como sempre eu queria mais, mais, mais! Ser o segundo nunca seria o suficiente. Nem que eu me matasse de treinar, mas enquanto não superasse — ou, pelo menos me equiparasse — aos melhores, não seria o suficiente. Nisto eu era ambicioso, reconheço. E me enfiei de cabeça no novo desafio. Eu adorava o Ton Long!

***

Começou aos poucos e, de início, não o notei. Mas após a Iniciação paulati­namente algumas coisas começaram a ficar diferentes. Reparei que meu vigor tinha aumentado. Em todos os sentidos. Não sei se coincidência ou não, mas eu me contentava com poucas horas de sono e mesmo assim estava sempre bem disposto. Não sabia mais o que era ficar doente, nem resfriado eu tinha mais. E quanto ao exercício físico, parece que realmente a minha resistência aumentou muito, eu não me cansava nem diante dos mais extenuantes treinos. Foi uma mudança muito bem vinda.

Eu já tinha uma habilidade nata para o esporte, mas agora eu vivenciava na prática que esta capacidade podia de fato ser potencializada. Como haviam me ensinado na Irmandade.

Os treinos específicos com o Mestre Liu eram muito diferentes dos dados na Academia para todos os alunos. Durava três horas e o enfoque era principalmente na parte técnica, basicamente nas lutas e no manejo de armas.

Aprendi muito ali, debaixo de uma disciplina muitíssimo rigorosa, “marci­al” mesmo. Meu desenvolvimento deu um salto gigantesco nessa época. Logo comecei o meu quinto estágio. Mas isso 

aconteceu somente cerca de cinco ou seis meses depois que fui iniciado na Irmandade.

***

O primeiro fato em relação ao Kung Fu que me marcou muito após a minha Iniciação foi mais ou menos nesse período de minha vida. Eu sempre tivera um pouco de dificuldade no domínio das técnicas de “Chikow”. Era uma cobrança meio minha, não me sentia plenamente satisfeito com o meu desempenho. Na verdade, eu não tinha me interessado muito pela técnica logo de cara. Meu pri­meiro Mestre tinha “ocidentalizado” demais a arte e acabou dando muito pouca ênfase ao “Chikow”. E a primeira impressão é a que fica. O contato só começou a ser realmente profundo depois do terceiro estágio do Ton Long.

Os estilos internos e externos do Kung Fu, mais de 360, tiveram sua essên­cia produzida numa raiz indiana. O Kung Fu não nasceu na China, surgiu antes na índia de uma técnica de autodefesa chamada Vadjaramushi. Um monge indi­ano, Bodhidarma, refugiou-se no Templo chinês Shaolin após períodos de muita perseguição na Índia. Ali ensinou as técnicas do Vadjaramushi que, somadas aos exercícios medicinais praticados pelos monges de Shaolin, deram origem às for­mas mais primitivas do Kung Fu e também à linha Zen-Budista.

Mas o que vem a ser o “Chikow”?

O doutrina Kung Fu leva em consideração a existência de três formas de energia. A energia “li”, que é definida como sendo a nossa força física, a força muscular propriamente dita, e que gera a capacidade de realizar qualquer traba­lho. A energia “wei” é aquela que nós, aqui no Ocidente, entendemos como aura. É basicamente o resultado dos processos bioquímicos e biofísicos do organismo.

E a energia “chi”. Esta última é a chamada “energia adormecida” e acredita-se que ela esteja 

concentrada no plexo solar, quatro dedos abaixo do umbigo. O seu símbolo é o de uma serpente enrolada, que também é muito difundido na Yoga e no Tantra Yoga.

A serpente é uma figura muito respeitada na China, e representa Poder. Ali­ás, o Hu Lai Shien, ou estilo do “Punho da Serpente Sagrada”, é um dos mais temidos na China. A “serpente adormecida”, ou “chi”, é a forma mais poderosa de energia do ser humano.

Compreendido isto teoricamente é necessário aprender a liberá-la. Caso con­trário ela ficará sempre fora de uso. Realmente como uma serpente enrolada, adormecida, inerte. Para isso são as técnicas de “Chikow”. “Chi” quer dizer ener­gia; “kow” é movimento. Literalmente falando, “Chikow” é “energia em movi­mento”. Essas técnicas possibilitam fazer circular e, por fim, canalizar a energia “chi”.

Para que o “chi” circule é necessário que os chakras estejam desimpedidos. O que eu aprendi no Kung Fu acerca deles, mesmo antes de conhecer Marlon, foi muito semelhante ao que mais tarde aprenderia na Escola. Mas até então eu não tinha visto com muito interesse os resultados imediatos da técnica, como quebrar tábuas e tijolos.

“Para quê isso?!”, eu me indagava, mais interessado nas armas e na arte em si do que naquela demonstração de força bruta.

Mas agora entendia melhor os conceitos relacionados aos chakras, ou me­lhor, aos Portais. E passei a ter uma expectativa totalmente diferente. A Irmanda­de me abrira a visão. E o que antes era pura demonstração de brutalidade ganhou um novo colorido.

Resolvi me dedicar bem mais seriamente ao “Chikow”.

Em primeiro lugar, antes de pensar em fazer circular o “chi” com intuito de canalizá-lo os chakras têm que estar liberados. Para que isso aconteça é preciso seguir corretamente algumas normas disciplinares. A primeira delas é a dieta. Os orientais acreditam que uma dieta composta basicamente de vegetais, ervas, fo­lhas e raízes é indispensável. A carne — especialmente a vermelha — obstrui os chakras e impede a plena circulação de energia. Nos Templos orientais antigos, como o Templo Shaolin, e também nos templos zen-budistas, a alimentação con­tinha muito arroz e vegetais, mas quase nunca carne.

Dessa forma a dieta era condição indispensável caso quiséssemos realmente nos aprimorar na técnica de “Chikow”. A explicação até que tem muita lógica. Se nos alimentamos com carne o processo digestivo é moroso e pode levar até quase doze horas. Pelo menos é o que diz a Medicina Tradicional Chinesa. Se não ingerirmos carne o tempo de digestão diminui tremendamente. Cai, por exemplo, para duas ou três horas. O gasto energético é, portanto, muito menor. Se o indiví­duo se alimenta de forma errada três vezes por dia ele passa vinte e quatro horas sobrecarregando o organismo e desperdiçando energia. Ao longo do tempo o gasto desnecessário de energia e o acúmulo de energia negativa causa um desgas­te do organismo como um todo levando à fadiga, envelhecimento precoce e doen­ças.

O segundo item para aprimorar o “Chikow” tem a ver com a parte sexual. Experiências sexuais individuais não são permitidas. Estas levam à perda inútil de grande quantidade de energia. A relação só é permitida se for “homem-mulher” porque então está havendo troca de energia, e não desperdício. O que se perde é recebido através do parceiro. Portanto não há gasto inútil.

Igualmente, se o homem quiser acumular energia pode simplesmente evitar a consumação do ato. É um conceito fácil de entender: toda a energia produzida para ser utilizada no clímax da relação 

sexual ficaria “retida”, “acumulada”, “guar­dada”. Funciona mais ou menos como se fosse rodado um dínamo ou carregada uma bateria com alta força. Quando liberada, esta energia sai como uma explo­são. Esta forma de “carregar” o organismo com energia através do estímulo sexual não consumado é muito utilizada no Tantra Yoga, principalmente.

Estas eram as principais recomendações: o acúmulo de energia, a redução dos gastos, e a dieta capaz de favorecer o trânsito energético através dos chakras.

Entenda-se que nada disso realmente “abre” os chakras, apenas propicia as condições mais favoráveis possíveis. O que realmente “abre” o chakra é a técni­ca específica orientada e realizada por meio do “Chikow”. Basicamente envolve três aspectos: a respiração, a concentração e a meditação.

A respiração é somente abdominal. Aprende-se a controlá-la desta forma com exercícios. Deitados de costas no solo, com uma vareta de bambu apoiada na região abdominal, procura-se mover apenas a vareta, e não os pulmões.

Para sentir o fluxo de energia leva bastante tempo. Não é nada que se consi­ga na primeira ou na segunda vez, ou em poucas aulas. A técnica básica se faz através dos exercícios de meditação e concentração. São vários os estágios a serem percorridos. Aos poucos aprendemos a imaginar e sentir o fluxo de energia por todo o corpo. As posturas usadas são diversas, mas basicamente a posição do cavalo fechado (kinhomah — em chinês) e a postura da árvore, muito utilizada também no Tai-chi-chuan.

Imagina-se uma fonte de água pura, cristalina, jorrando a partir do plexo solar e que irá percorrer todos os pontos chakras do corpo. Esta água, sempre jorrando, sobe pelo centro do corpo atravessando o coração, chega ao pescoço e começa a entrar pelo braço direito, flui e sai pela palma da mão, que está voltada para cima. É “jogada” e entra pela palma da mão esquerda. Continua o seu cami­nho: 

sobe pelo braço, pelo pescoço, volta para o outro braço, sai de novo, entra pelo meio das sobrancelhas, sobe pela fronte, desce pela nuca. Sempre fluindo, em movimentos, rodando, circulando.

A grosso modo é assim que funciona. As sensações experimentadas são as mais diferentes: começa com um formigamento principalmente nas mãos, logo nos primeiros estágios. Depois a temperatura do corpo sofre variações. Ora, sen­te-se frio; outras vezes, muito calor, a ponto de suar e ficar todo enrubescido. Estes “sintomas” eram uma prova bastante palpável de que aquilo tudo não era uma mera alucinação. O Mestre não sugeria as sensações. Elas apenas aconteci­am de forma semelhante com todos.

É óbvio que o “Chikow” só começa a ser ensinado a partir de um certo nível dentro da caminhada no Kung Fu. O conceito oriental da coisa é que, em primei­ro lugar, temos que moldar o “li”, ou seja, a força física, o exterior. Apenas bem mais tarde é possível iniciar a moldagem do “chi”.

Não deixava de ser um “arremedo” da mesma doutrina que iria aprender no Satanismo: o desenvolvimento do “Chikow” e o pleno domínio do “chi” leva a atingir o ápice de nosso potencial. Desenvolve a habilidade até o patamar máxi­mo da capacidade humana. Logicamente o bom desempenho abrange uma série de “desbloqueios sociais”, por assim dizer. É preciso reformular conceitos tais como “medo”, “isto ou aquilo machuca”, “não é possível”, e assim por diante.

Da mesma forma que aprenderia na Irmandade a despir-me de velhas doutri­nas para introjetar outras, no Kung Fu este ensinamento corria paralelo e aprego­ava a mesma coisa. Eu conhecia, sim, conhecia muito bem o ditado chinês que Zórdico utilizara numa das suas primeiras aulas: “Se queres provar meu chá tens antes que esvaziar tua xícara”.

Não deixava de ser também um ensinamento que colocava o homem em posição introspectiva e centralizado nele mesmo: “Eu posso, eu faço”. De fato. O homem faz. Pois ele é energia e pode 

dominar a energia que existe nele. Pelo menos, assim eu aprendi. Naturalmente que no Kung Fu ninguém falou em Enti­dades de dimensões paralelas para aumentar ainda mais a minha capacidade. Isto eu tinha o privilégio de conhecer porque o Oculto me fora mais descortinado do que a eles, meus Mestres de Artes Marciais.

Observar que os conceitos orientais ensinados tinham a ver — ainda que de forma um pouco mais rudimentar — com o que aprendi na Irmandade, só me fizeram confirmar ainda mais aquilo como absoluta verdade. E me entregar de corpo e alma.

***

Nos finais de semana às vezes eu treinava um pouco de “Chikow” num ter­reno baldio perto de casa. Era perfeito em todos os aspectos, um lugar isolado, amplo, sem olhares curiosos para atrapalhar. E o melhor: havia material excelen­te e totalmente disponível. Sempre grande quantidade de madeira boa e forte, ideal para ser usada. Nem sempre era muito fácil conseguir coisas assim para quebrar. Pelo simples fato de que “coisas boas” são para guardar e não para quebrar.

Era um domingo de manhã. Eu estava ali perto com dois amigos, vizinhos da própria rua. Conversando sobre nada em especial acabamos por passar de­fronte ao muro que separava o terreno da calçada. E eu comentei só por comen­tar:

— Às vezes eu treino aí dentro. — Falei.

— Sério, é? Mas por onde você passa para entrar aí? — Perguntou o Hamil­ton.

— Dá pra pular o muro ali por trás, na esquina.

— Legal! Vamos dar uma olhadinha? — Falou o Régis já querendo dar a volta pelo outro lado.

— Vamos! Vamos entrar lá! — Concordou Hamilton.

Pulamos fácil o muro. O terreno tinha chão de terra batida e plana, alguns tufos de mato aqui e ali, uma pilha de pedregulhos e duas de areia. Uns sacos de lixo estavam amontoados num canto. Um gatinho amarelo com manchas cinzen­tas que estava estirado no solzinho cálido azulou.

— Quanta coisa tem aqui, heim?! — Fez o Hamilton olhando para os meus preciosos pedaços de madeira.

Xeretamos um pouquinho por lá, até que o Régis falou: — E você treina direto aqui?

— Direto, não, que não tenho muito tempo sobrando. Mas às vezes dá pra vir pra cá, sim! Venho só pra quebrar umas tábuas, sabe? Aqui tem bastante!

— Ah, qualé? Deixa disso! Não vem com onda de dizer que você quebra essas tábuas! — Caçoou numa boa o Hamilton.

— Quebro, lógico que quebro. Através do “Chikow”! O Régis já foi mais prático:

— Quebra, é? Pois então... vamos ver isso!

Correu e escolheu uma tábua que estava apoiada contra a parede. Era até modesta. O Hamilton se animou também:

— Antes do Edu quebrar de verdade... — Olhou irônico pra mim. — ...deixa eu tentar!

O Régis apoiou melhor a tábua inclinando-a um pouco e com a outra ponta bem fixada no chão. E o Hamilton afastou-se, tomou impulso, veio correndo e “zás”! Pulou com força sobre ela aplicando 

uma bela patada bem no centro. A pobre coitada não agüentou e “crack”! Rachou!

— Uau, que ninja que eu sou! Também consigo quebrar as tábuas do Edu! E nem preciso desse seu “Chi-ca-bom” aí!

Eu nem esquentei:

— Uma tabuinha de nada que nem esta, Hamilton! Até criança quebra isso daí.

— Então, tá! Régis, vamos achar uma melhor!

Os dois separaram outra, de maior espessura, e a acomodaram como a pri­meira.

— Lá vai... ninja!!! — O Hamilton fez toda a cena de novo e com um uivo selvagem (daqueles que vemos nos filmes), avançou com ímpeto.

— Ai, ai, ai! — Ele chacoalhava o pé no ar, rindo ao mesmo tempo. — Essa doeu!

A tábua continuou intacta. O Régis resolveu tentar também. Mas ele não levava lá muito jeito para a coisa, não tinha agilidade e nem sabia usar a muscu­latura.

— Não é questão de força. — Expliquei. — É mais jeito do que força, você tem que potencializar o movimento, entende? Joga o quadril assim...e chuta! — Mos­trei de leve como deveria ser o movimento.

— Larga mão de conversa e quebra você logo isso aí! — Incentivou o Hamil­ton.

Aceitei o desafio com calma. Levei tudo na brincadeira, nem me concentrei muito com eles rindo e se cutucando, falando graças o tempo inteiro do meu lado. Mas eu não precisava de “Chikow” para quebrar aquela tábua. Era como eu tinha dito, só questão de jeito, de usar a técnica certa. Nada que minha energia “li” não pudesse dar conta.

Foi fácil. “Crash”!! A tábua rachou no meio ficando as duas metades presas por algumas farpas.

— Pôxa! Que legal! Tremendo! Como é que você faz? — Eles vibravam.

— É questão de fazer o movimento certo. — Respondi de novo, sem maiores explicações.

Mas o Hamilton estava na febre.

— Vamos lá! De novo!

Arrumou nova tábua, parecida com a primeira. Tentou fazer como eu expli­cara, mas ficou com o pé dolorido outra vez.

— Ai, isso dói, caramba! — Ele ainda não estava muito convencido. Seu olhar revelava a intenção de testar-me um pouco mais.

Ele vasculhou e vasculhou, sem dar-se por achado. Finalmente descobriu uma viga de madeira maciça. Era robusta, troncuda, de formato quadrado e uns dez centímetros de diâmetro. Parecia um pé de mesa que alguém tinha jogado fora.

— Ah! Olha isso aqui.

Ele a arrastou para posicioná-la no mesmo lugar das tábuas. Limpou uma mão na outra, triunfante, e virou-se para mim.

—  Esta aqui eu duvido que você quebre! — Desafiou. — Aquelas ali eram muito fraquinhas pra você. Mas vamos ver essa!

Nesse exato momento, não sei nem de onde me saiu a turma da rua. Alguém espichou a cabeça por cima do muro e gritou:

— Olha lá o Catatau, o Hamilton e o Régis!

E foram entrando. O Raimundo, o Marcelo, o Luís Gustavo e mais um ou dois:

— E aí, galera? Que que está pegando? — Indagavam eles.

— Chega mais! — Convidou o Régis. — O Edu está quebrando umas tábuas aqui pra gente.

— Quebrar tábua?! Quem está quebrando tábua?! — O Edu!

— Tudo bem, depois a gente aproveita a madeira quebrada, fazemos um fogo e rumamos uma carreira. Vá!

— Bebemos um vinho também! A turma ria e falava alto. Todos me conheciam. E respeitavam. Resquícios da velha “29”. Ficaram para ver a “quebra das tábuas”. Ninguém nem tentou quebrar antes de mim, tal era a certeza de que nada poderiam com aquela peque­na viga.

Desta vez tive que fazer a técnica nos conformes. Senão — eu sabia — não conseguiria também. Então me esqueci deles. Assumi a postura correta, controlei a respiração, senti o fluir do “chi” pelos chakras, dobrei as pernas para retesar aquela energia crescente como uma mangueira dobrada represa o fluxo à montan­te. Levei um certo tempo naquilo.

Fazia parte do processo visualizar a coisa concretizada. Abri os olhos, olhei para a viga inclinada e formei aquela imagem mental rapidamente, imaginei-a partida. Vislumbrei o alvo como sendo algo atrás dela para que o chute tivesse mais penetração ainda. Estava pronto. Tomei impulso e chutei baixo, como quem quer quebrar uma patela. Liberei o ar dos pulmões ruidosamente, como estava acostumado:

— Hei!!!

E CRASH! Sinceramente nem eu acreditei quetinha conseguido.

Quebrada. Houve um murmurar de assombro que percorreu a turma.

— Que legal, meu irmão!!!

Mas o Hamilton estava chato mesmo, não queria dar o braço a torcer:

—  Não é possível! Essa madeira devia estar podre! Só estando podre pra acontecer isso!

E procurando, encontrou mais duas vigas iguais. Deviam ser da mesma mesa. Só que aí eu também impus a condição:

— Vocês que tentem primeiro! Vocês não estão dizendo que a madeira está podre?! Pois então... quebrem!

Nos minutos seguintes a rapaziada se alternou, em fila indiana, esforçando-se na tarefa proposta. Mandaram ver o pé na viga que, heroicamente, resistiu a todos sem sequer lascar. Voava de um lado para o outro e nada. A turma é que saía pulando num pé só.

—  Acho que a madeira não está podre, não! — Comentavam entre si, com risos.

— Vai ver que só a outra que estava ruim! — Disse o Hamilton, zombeteiro. E para mim: — Dessa vez... duvido mesmo, Edu!

Olhei para ele e cometi um erro. Por uma fração de segundo a dúvida veio, num flash, enquanto me posicionava.

“Será que vou conseguir... de novo?!”

Aquela ponta de dúvida iria me prejudicar, eu sabia. Como diz o ditado chi­nês: “Quem teme perder já está vencido”. Então, quase instintivamente, fiz o gesto. Depois de erguer os braços acima e atrás da cabeça e deslizá-los vagarosamente para frente e para baixo, deveria juntar as mãos em posição “zen” (como quem reza). Só que ao invés disso eu as ajuntei numa outra posição, semelhante, 

mas que queria dizer coisas totalmente diferentes.

Movimentei-as lentamente de uma forma muito específica. Murmurei quase inaudivelmente as palavras de encantamento necessárias para sinalizar a Abraxas que eu precisava da ajuda dele. Foi a primeira vez que experimentei o que somen­te tinha conhecido na teoria.

Eu havia aprendido a manipular minha força. Tanto é que quebrei de fato a primeira viga. Mas agora, eu estava prestes a ver se realmente era possível o que me disseram: que o meu potencial poderia ser aumentado além do limite máxi­mo...! Pois bem: que fosse acrescentado “Poder à minha força”.

Por meio daquela sinalização eu dava a Abraxas a permissão de utilizar-se do Portal aberto no Ritual de Iniciação e semi-canalizasse sua força através de mim. Pensei no que me haviam dito, e falei de mim para mim: “Eu tudo posso... naquele que vai me fortalecer!”

E baixinho:

— Não deixe que o teu protegido seja envergonhado.

Fechei os olhos. De repente, em segundos, comecei a sentir uma força dife­rente tomando conta de mim. Minha perna esquerda — aquela que eu usava para chutar — parecia que estava se tornando como uma barra de aço. Quase que eu podia perceber a musculatura saltar e crescer, tornar-se rígida. Tinha a impressão de que se eu chutasse o muro podia abrir nele um buraco.

A respiração involuntariamente ficou forte, carregada, pesada. As batidas cardíacas estavam mais intensas e surdas, quase audíveis. E ao redor dos olhos vieram ondas sucessivas de calor como se estivesse afluindo muito sangue para aquela região.

Pela primeira vez o silêncio era total. Ninguém dava um pio.

Olhei para a viga. Parecia irracional. Por uns instantes, senti raiva... ódio! Ódio daquela tábua. Minha mente já não via um pedaço de madeira apenas, parecia... parecia que era uma cruz! E eu queria quebrar, destroçar aquilo!!! Nem sei porque pensei daquele jeito. Tudo foi tão rápido...

Voei na direção da viga completamente esquecido de tudo o mais e apliquei tal coice que meu pé a atravessou e bateu na parede! E nem senti nada. Estava alucinado.

O pessoal deu um urro de assombro, todos juntos.

— Não é possível...! — Gritou o Hamilton de novo, primeiro do que todos. — Quero ver você quebrar a. outra!

Num ápice ele colocou a outra. Eu praticamente o atropelei, nem o deixei sair da frente, escoiceei novamente, com um grito seco. O ódio ainda me domina­va, aquela idéia insana de 'quebrar a cruz” martelando dentro da cabeça.

— HEI!!!

Quebrei de novo.

A turma me cercou, desta vez realmente convencidos. Todos queriam falar comigo, me davam tapinhas nas costas.

— Caramba, Eduú!

Mas eu estava com raiva deles também, com ódio. Minha vontade era chutar todo mundo. Não sei por quê. Mas eu queria mesmo era dar um bico em cada um! Procurei me controlar, procurei pensar, era uma raiva totalmente desprovida de lógica. Eles eram meus amigos, tudo aquilo não passava de brincadeira. Normalmente eu tinha tanto senso de humor.......

“Por que que eu vou chutar eles?!?”, raciocinei ainda com incoerência pro­curando me manter afastado. Vai que de repente eu socava alguém!

— Espera aí! — Fiz um gesto para afastá-los.

— Gente, ele machucou o pé! — Falou um deles.

Não tinha machucado nada mas aproveitei a deixa para poder me abaixar, desviar um pouco o rosto. Fui sentindo aquela estranha sensação abandonar-me devagar, a respiração voltando ao normal, o coração cedendo ao ritmo de antes, a musculatura relaxando.

Eu não sabia bem como agir, o que fazer para dizer a Abraxas que fosse embora. Eu sabia que tinha sido ele! Tinha usado o meu corpo, sei lá! Canaliza­do, semi-canalizado, influenciado...!? Nunca tinha experimentado nada parecido antes. Meu corpo ainda estava esquisito, com uma tremedeira por dentro. E a perna esquerda meio bamba, mole, cansada. Aliás, todo o meu hemi-corpo es­querdo ficou meio adormecido e formigando.

Foi passando aos poucos. Quando me acalmei e pude pensar direito....... tremendo! Tremendo! Simplesmente tremendo!!!.

Comecei a perceber que....pôxa vida, era verdade! Ainda não sabia lidar bem, mas.......funcionava!

***

Apesar de episódios como este ainda assim eu poderia dizer que o que mais mudou em mim foi a “disposição interna”. Parecia que minha índole tinha ficado diferente! Naturalmente esta constatação só me ocorreu claramente anos mais tarde. Na época, sinceramente falando, não foi nada que real

realmente me chamasse a atenção. Mas o fato é que mudei sensivelmente.

Eu já vinha de um contexto cheio de violência por causa da passagem pela Gangue. Mas agora era diferente! Atos de violência não dependiam mais de que alguma coisa específica acontecesse. Uma palavra, uma ofensa, uma provoca­ção. Não se podia mais dizer que eu “ficava agressivo”, uma mudança puramen­te causai, temporal. A realidade agora é que eu “era agressivo”. Um sentimento constante de ira me dominava e já não dependia de fatores externos.

Antes eu ainda conseguia encontrar uma causa: “Meus pais não me dão atenção”, por exemplo; ou: “Sou a ovelha negra”. Mas agora já não havia causa aparente. Era um estado de espírito. Muito sutil, muito leve, quase indetectável. Mas estava lá.

Comecei a perceber a mudança principalmente nos treinos de Kung Fu por­que praticamente não existiam mais brigas de rua.

Nos treinos, embora houvesse combate e às vezes nós lutássemos como que parecendo defender a própria vida, era puramente esportivo. Quero dizer, meu oponente nunca foi um inimigo real, não era necessário machucar ninguém. Sem­pre fui cuidadoso, ponderava os golpes, respeitava os que eram mais fracos do que eu. Especialmente os meus alunos! Tanto é que muitas vezes, tanto na ADINK como na W. Wei lutávamos mesmo sem os protetores. As regras eram estabelecidas... e pronto! A maioria sabia respeitar.

Mas alguma coisa mudou. De repente as lutas passaram a ter um outro sabor para mim. E machucar parece que criava por dentro uma sensação muito estra­nha de prazer e regozijo. Era como se tivesse sido despertado um lado negro dentro de mim.

Certa ocasião eu estava dando aula na W. Wei. E, como era o meu costume, no final do treino eu organizava os alunos para fazerem pequenos simulados de lutas comigo. Nesse dia em especial 

havia um aluno novo, meio fortinho até, e que era segurança do metrô. Eu o chamei de cara e nem bem o rapaz aproximou-se de mim, pensei no íntimo:

“Esse cara bem que merecia uma coca!”

Comecei a “lutar” com ele, devagar, na manha, explicando aos outros volta e meia o que se encaixava melhor. O rapaz avançava para mim com muito respei­to, afinal eu era o instrutor dele.

Mas ele me irritava. Mais do que isso, eu sentia raiva. Queria poder acabar com a raça dele! De graça enfiei um chute bem dado na boca do estômago, de pura maldade. Não causou muito estrago, é verdade, mas foi com força e ele ficou ali caído no chão, se contorcendo na frente de todos, gemendo. Demorou para se recuperar.

E eu fiquei sem saber porque fiz aquilo.

Dei a resposta que passaria a usar como desculpa vezes seguidas:

— Você estava com a guarda aberta. Não tem outro jeito. Assim como nin­guém aprende a nadar sem engolir água... ninguém aprende a lutar sem tomar porrada!

Fiz parecer que aquilo era tão somente uma lição “filosófica”. E o deixei levantando sozinho. Os outros alunos ficaram muito quietos, olhando para mim com ar ressabiado. Todos sabiam que eu não era daquele jeito. Afinal eu era alegre e bem humorado, muito amigo da maioria deles. Aquela demonstração gratuita não fazia parte do meu estilo. Devem ter achado que eu estava de lua virada e só.

Mal sabiam eles que cenas assim iriam repetir-se muitas vezes.

Um outro destempero acabou sendo na ADINK. Alguns Professores tinham uma certa rixazinha comigo porque eu havia entrado depois de todos eles e era o que tinha mais alunos. Mas que culpa 

eu tinha? Meu estilo de aula era diferente, os alunos gostavam muito de mim e do meu jeito criativo de diversificar. E o meu curso de armas continuava de vento em popa.

O único Professor que tinha tantos alunos quanto eu era o Túlio. De quebra, era o melhor da Academia e um dos poucos que não me via com maus olhos. Pelo contrário, éramos bem amigos.

O Túlio era um Professor nato, alguém com dom para a coisa. E ele nem era chinês! Antes um mulato bonitão, forte, cobiçado pelas moçoilas, de traços meio mestiços, com olhos amendoados e cabelo comprido todo trançado. Mas tinha absorvido muito da cultura oriental até mesmo no seu jeito de conversar e de se portar, muito calmo, comedido. E se virava falando um chinês até que bem legal!

Eu apreciava tremendamente o seu Kung Fu e a sua maneira de ensinar. Tínhamos sempre oportunidade de estarmos juntos no treino dos Professores, todos os sábados. Aliás, o treino do sábado era uma espécie de “tira-teima”. Uma exibição em grupo, na verdade. Não havia nenhum Mestre que pudesse dispor de tempo e coordenar o treino uma vez que este fora iniciativa dos próprios Profes­sores, e não uma exigência da ADINK. Então fazíamos como bem queríamos. Ou seja: sempre um tentando provar que era melhor que o outro.

Mas não deixava de ser bom porque lutávamos muito e isso, no fim, acaba­va resultando em crescimento. E também sempre se aprende muito observando quem é bom. Claro que eu queria aprender com o Túlio. Tinha outros caras bons, sem dúvida, mas ele era exímio na técnica e também praticava outros estilos além do Wing Chun.

E o melhor: ele era humilde, acessível, não estava sempre se vangloriando para cima dos demais.

Só que se de um lado o Túlio era o melhor, o mais galinho de briga era o Fred. E esse não era pedante e filhinho-de-papai só no nome. Era o natural dele mesmo. Tudo bem que no Kung Fu era 

muito bom, ágil, com boa visão de com­bate. Mas ninguém gostava de enfrentá-lo porque não sabia lutar limpo. Só que­ria dar pancada. Não era de meias medidas. Então dificilmente ele encontrava parceiros, mesmo no treino dos Professores.

Uma vez eu o vi levar um corretivo bem dado. Não fazia ainda muito tempo que eu era Professor na ADINK e gostava de assistir às aulas do Túlio sempre que fosse possível. Uma tarde eu treinei muito e depois, para descansar, acomo­dei-me para observar a aula dele sentado a um canto no chão.

De repente o Fred entrou na sala para “participar” da aula. O Túlio nesse horário não dava Wing Chun, ensinava Hu Lai Shien, um estilo que ele praticava em uma conceituadíssima Academia. Esse tipo de coisa era permitido às vezes, como conhecimento extra para os alunos, e se o Mestre do estilo aprovasse. Era mais ou menos o mesmo tipo de coisa que eu fazia com as armas e os artifícios que aprendera no Ton Long.

O Fred ficou quieto e submisso no começo. Mas depois ele foi fazer um exer­cício de “sombra” com um aluno. Isso consiste em simular o combate mas sem tocar o oponente com os golpes, que devem ser muito leves. E começou a provoca­ção. Não deu um minuto e o Fred encheu a lata do rapaz, enfiou o pé na perna dele que até envergou. O pobre do aluno deixou escapar umas lágrimas dos olhos, qui­eto.

O Túlio foi muito rápido em tomar atitude. Não falou palavra mas apontou para o Fred com o dedo em riste, e, em seguida, apontou para si próprio como quem diz: “ Você luta comigo, agora”. Por aquela tão repentina o Fred não espe­rava. Não deu nem tempo de entrar em guarda. O Túlio arrumou um chute tão forte e de tanto impacto no peito dele que o “pobre” Fred voou para trás alguns metros, caiu para fora do tatame e rolou de costas contra a parede do vestiário num enorme estrondo.

A parede não passava de uma divisória leve de madeira coberta por uma cortina. Do outro lado, já dentro do vestiário, havia um pesado armário de ferro para os alunos. O Fred desapareceu no meio da cortina, derrubou a divisória e quase que o armário foi junto. Um vexame incalculável!!! Os alunos ficaram olhando, estupefatos mas intimamente regozijando-se: “Ele mereceu isto!”.

Um bom tempo depois disso, depois da minha Iniciação, certo dia eu treina­va esperando a hora de dar minha aula.

Estava tenso, carregado, queria bater, bater, bater, bater. O saco de pancada não era mais meramente um “saco”, um objeto inanimado. Agora eu enxergava ali uma pessoa, um inimigo. Não esmurrava como alguém normal, mas domina­do por um ódio cego, e imaginava como seria destroçar aquela pessoa, bater violentamente nos pontos vulneráveis, nos pontos letais, acabar com ela, destruí-la completamente.

Só que nada disso adiantava. O saco de pancada já não dava barato, não aliviava a minha eletricidade. Podia bater, esmurrar, chutar por horas se fosse o caso, mas eu não relaxava.

E naquela tarde eu estava mesmo meio “quente”, carregado de pólvora. Queria uma faísca qualquer! Qualquer coisa que me servisse de desculpa para explodir e descarregar o que eu trazia no íntimo. Eu queria machucar alguém! Por quê, não me pergunte, eu não sabia. Só sabia que queria bater em alguém.

É até difícil de explicar. Por fora eu parecia o mesmo de sempre, alegre e extrovertido. Mas eu me sentia com se estivesse com alguma coisa entalada na garganta, como que remoendo uma raiva contida.

Por vezes eu me perguntava porque me sentia assim, afinal eu levava a vida que pedi a Deus... ou melhor... ao diabo! Tudo ia bem, tudo ia realmente muito bem!

Mas enfim... durante a aula aliviei a minha sede de estrago ao confrontar um aluno. Talvez influenciado pela façanha do Túlio eu o machuquei após fazer uma finta na direção do rosto. Quando ele ergueu as mãos para se proteger dei um chute de impacto na base dos arcos costais. No tombo, ele derrubou o armário do vestiário. E terminou com uma trinca na última costela. Pronto! Eu fizera a pro­eza maior ainda!

E a desculpa padrão... sempre a mesma, com pequenas variações:

— Esta é a única maneira de você perceber aonde está errando. Não vai es­quecer nunca mais.

Evidentemente que esta não era a didática.

Certa feita o Fred desafiou-me para uma luta. Foi logo depois desse episó­dio. Mas ele não sabia lutar “na manha”! E o único capaz de derrubá-lo era o Túlio.

“Caramba.”, pensei. “Este cara está a fim de me encher a lata!”

E recusei.

— Não, obrigado. Não quero lutar.

— Sem essa, cara! Vamos lá! — E me dava chutinhos folgados, me descabelava, fazia trejeitos idiotas.

Aquilo começou a me irritar de verdade. Os outros Professores, que obser­vavam, acabaram entrando na brincadeira.

— Yeaaahhh! — E gozação pra cá, e piadinhas pra lá.

Se o Túlio estivesse presente ele teria colocado ordem na coisa, mas nesse dia ele não estava. Lembrei-me do episódio da viga quebrada há poucos dias, diante dos meus amigos.

“Pois eu vou quebrar esse cara no meio!”

Estava irado pra valer. E respondi:

— OK! Você quer lutar? Então vamos.

Ele era fisicamente mais forte do que eu e, tecnicamente falando, superior. Reconheço. Mas retruquei:

— Só me dá um tempinho!

E tratei de me concentrar. Só que usei do mesmo artifício e, ao invés de cruzar as mãos em posição zen...usei o gesto ritualístico ao mesmo tempo em que murmurava o encantamento. Entrei em mabú (posição do cavalo aberto), fiquei de olhos fechados, só esperando. As mesmas reações que senti na outra ocasião deveriam acontecer, só que... nada! Não senti nada!

Abri os olhos. O Fred olhava para a minha cara, com as mãos na cintura.

— Como é?! Já acabou com essa palhaçada aí?! — Gritou ele.

— Não! — Respondi com maus modos, fuzilando-o e sentindo-me mais irritado ainda. — Espera mais um pouco! — E cá comigo: “Pô!.Será que o Abraxas vai me deixar na mão?!!”

A turma ao redor até parou o treino, encostaram-se nas paredes, acomoda­ram-se para ver. De repente éramos só nós dois para dar o “show”, eu e o Fred.

Num flash recordei das palavras de incentivo de Marlon, os conceitos da Irmandade e das próprias palavras de Abraxas: “Não temas, eu estou com você”.

“Não tema...” — De olhos fechados ainda eu raciocinava. “Caramba, ele está comigo! Por que 

então eu não sinto nada?!”

E repeti os gestos e as palavras. Mas parecia tudo muito vazio à minha volta. Continuei sinceramente sentindo-me como que jogado para as traças.

— E essa agora!

Só que com ou sem Abraxas eu ia lutar, o Fred era muito folgado, não importava que fosse melhor do que eu. Eu ia quebrar a cara dele assim mesmo. O máximo que podia acontecer era levar umas porradas.

“Mas aí o pessoal separa, eu só fico com um hematoma e tudo bem! Tô na chuva é pra me molhar mesmo!”

Me posicionei e fiquei esperando. Ele me atacaria primeiro e eu tentaria pegá-lo no primeiro contra-ataque. E ficou aquela cena vai-não-vai, vem-não-vem, uns chutinhos tanto dele quanto meus.

Mas aí, de repente, num abrir e fechar de olhos ele veio que nem uma vaca louca pra cima de mim! Eu fui me defendendo, me defendendo, recuando, recuando...parede! O Fred aproveitou a chance e veio com um soco seco na altura do estômago, que defendi. Mas acho que abaixei demais o corpo, nem sei, mas parece que ele acertou a minha nuca. O golpe foi forte e localizado. Senti as pernas bambearem e o corpo amolecer instantaneamente.

Tenho certeza que dali eu ia para o chão. Mas não foi assim que aconteceu.

Foi num instante. Senti que ia cair... mas não caí! Abri os olhos... estava de pé....... e aquela sensação tão diferente no corpo! Não havia tempo para pensar. O Fred me atacou de novo e eu revidei com muita fúria e muita destreza! Consegui dar um golpe nele que até hoje não saberia dizer como aconteceu! Um contra ataque como aquele, veloz, requereria bastante treino. Mas saiu mesmo como 

um relâm­pago, instintivo e animal.

O Fred terminou caído no chão completamente travado, com o braço virado nas costas, em posição totalmente submissa. Ainda lembro que o pensamento me ocorreu:

“Eu posso parar agora.... ou quebrar o braço dele!”

Mas aí não tive mais consciência de nenhum outro pensamento, raciocínio ou lógica. Foi uma coisa estranha. Não senti. Quando vi, já tinha feito. Chutei a região do cotovelo dele e escutei o som: “closh”! A tensão oferecida pelo braço desapareceu, ele envergou que nem um galho seco e o osso do antebraço veio para fora num jorro de sangue. Parecia que eu tinha quebrado uma madeira. Foi uma sensação muito diferente.

O sangue manchava a camisa e escorria em profusão, o braço estava caído ao longo do corpo com aquela coisa branca espetando para fora: o úmero dele! Foi uma comoção geral.

— Meu Deus, o osso dele está pra fora!!!

O Fred berrava — na realidade, urrava — de dor e desespero. A confusão e a correria começaram:

— Hospital! Hospital! Hospital!

Ajeitaram-no como foi possível. Quando saíram com ele da sala de treino foi mais gritaria de quem estava fora.

Um dos alunos estava de carro. Levado para o Hospital, foi operado na urgência. Ele ficou muito tempo afastado... e, até onde eu sei, o braço dele nunca mais foi o mesmo.

Na Academia a situação ficou delicadíssima. Um clima estranho, todos me olhavam meio esquisito. Fui obrigado a me justificar. Mas os Mestres entende­ram aquilo como acidente, não era a primeira vez que coisas assim graves acon­teciam nos treinos. Uma vez eu mesmo vi. Numa demonstração um 

dos Mestres fraturou a escapula de um aluno ao mostrar um golpe.

E apesar de algumas pessoas ainda questionarem se tinha sido mesmo ne­cessário chutar... no fim ficou por isso mesmo. Fazia parte de um esporte como aquele. Levou um tempo até que o choque geral na Academia passasse. Mas depois as pessoas começaram a me olhar com outros olhos. Eu havia acabado com o mito.

— Pôxa...o Eduardo bateu no Fred!

E me admiravam.

Mas da minha parte, fiquei meio sem entender o que tinha acontecido na­quele dia. Não estava esperando aquela reação, imaginava que seria algo mais ou menos como da primeira vez, algo mais ou menos “controlável”. Quando vi o rapaz naquele estado, num piscar de olhos... eu sabia que não tinha condições naturais de fazer aquilo. Pelo menos, não ainda!

E embora eu fosse tomado por aquela indescritível e estranha sensação de prazer, meu lado “humano” ficou meio chocado. De verdade.

***