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Livro Volume I Filho do fogo
Livro Volume I Filho do fogo

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O princípio da sabedoria é o temor do Senhor. (Pv. 1:7)

O princípio da sabedoria é: adquire a sabedoria; sim, com tudo o que possuis, adquire o entendimento. (Pv 4:7)

Porém a sabedoria habita com a prudência, no coração dos prudentes repousa ela. (Pv. 8:12; 14:33)

Ouça o sábio e cresça em prudência; e o entendido adquira habilidade!

Pois com medidas de prudência faremos a guerra. (Pv. 1:6;  24:6)

 

Antes de dar início a esta leitura coloque em prática este princípio:

Seja prudente!

Ore a Deus, revista-se completamente com a Sua armadura, peça a cobertura do sangue do Cordeiro.

E que o Espírito Santo, o Espírito da Verdade, lhe acrescente sabedoria, discernimento e a compreensão completa do propósito de Deus neste livro.

Que o nosso Senhor Jesus Cristo nos abençoe a todos!

 

Esta é uma história baseada em fatos reais.

Nomes de pessoas, empresas e escolas foram modificados.

Houve omissão do nome de algumas cidades.

Apenas o nome das entidades demoníacas é original.

 

Dedicamos este livro aos muito poucos que permaneceram realmente ao nosso lado.


Índice:

 

 

 

 

 

Contracapa: 3

Semente do Mal  3

Introdução  6

PARTE I  36

Capítulo I  36

Capítulo II  54

Capítulo III  76

Capítulo IV   94

Capítulo V   111

Capítulo VI  132

Capítulo VII  157

Capítulo VIII  174

PARTE II  201

Capítulo I  201

Capítulo II  219

Capítulo III  237

Capítulo IV   252

Capítulo V   269

Capítulo VI  290

Capítulo VII  329

 

 

 

 

Contracapa:

Satanismo é real!

Existem pessoas como você e eu, de carne e osso, que adoram ao diabo. Muitos em nosso mundo sofrem influências demoníacas, mesmo sem o saber. Mas adorar ao príncipe das Trevas, pactuar com ele, receber poderes do Inferno — isso é reservado a um Grupo. Um Grupo organizado, unido, forte. Um Grupo de milhares de pessoas que dominam a Alta Magia. E através dela englobam a Sociedade, preparando-a para a vida do seu messias: o Anticristo.

É sobre isso que este livro fala. Relata a história real de alguém que foi recrutado pelo Império das Trevas. Que fez parte do Inferno na Terra. Que foi “Filho do Fogo”.

Mas foi resgatado da escuridão e conheceu a Verdade. Conheceu a Jesus, o Cristo”

Convidamos você a fazer esta viagem conosco. Mergulhar na mais alta Hierarquia do Satanismo, conhecer aqueles que têm acesso e são colaboradores dos mais tenebrosos Príncipes Infernais. Será como mergulhar nos próprios domínios do Inferno para conhecer sua doutrina, suas estratégias... e seus segredos”.

Ao iniciar essa leitura, uma guerra terá início.

Tome sua armadura, desembainhe sua espada. E clame ao Senhor dos Exércitos que o acompanhe nesta jornada.

Semente do Mal

A moça de vestido azul caminhava segurando a pesada maleta contendo os cosméticos que vinha vendendo há pouco mais de dois meses. Era a solução, sem dúvida, depois daquela terrível ordem de despejo. Ela era jovem, bonita e a aparência bem cuidada tinha ajudado a conseguir aquele trabalho.

Raramente ela perdia o bom humor. Apesar da pouca idade, sabia que a vida nem sempre é fácil. Estava acostumada.

Só que o marido fizera com ela algo realmente inominável! Ele a enganara. A fizera acreditar que tinha muito dinheiro, passou-se por um homem dono de muitas terras. Na verdade aquele sítio tinha sido alugado pela Empresa aonde seu sogro trabalhava. Para um churrasco dos funcionários.

Mas ela acreditara que ele era o grande “senhor feudal”. Afinal, foi isso o que lhe disseram.

—  Até onde seus olhos enxergam...é tudo meu! - Exclamara com orgulho o futuro marido.

Como ela tinha sido ingênua! O namoro e noivado não durou mais do que três meses. Pediu demissão e se casou.

Mas a grande “surpresa” ficou reservada para depois da lua-de-mel. Nem emprego ele tinha! E agora não havia nenhuma saída. Eles se viraram como podiam. Foi uma sucessão de desconfortos que duraram sete meses. E então veio a ação de despejo após vários aluguéis não quitados.

Ela voltou para a casa dos pais. O marido teve que fazer o mesmo. Ficaram separados vários meses. Mas a situação não vinha boa, realmente não vinha. Ela tinha se casado apressadamente para poder ficar livre do pai. Agora estava lá novamente....e sem um emprego decente!

A única alternativa que apareceu foi vender aqueles cosméticos de porta em porta pelo bairro. Não dava muito. Mas era o suficiente para poder manter a cabeça erguida diante do austero pai.

Naquela tarde ela vinha caminhando devagar, pensando nas recentes agruras que teimavam em avolumar-se quando o carro grande e bonito encostou poucos metros à frente. O vidro automático desceu e um homem sorriu enquanto olhava para a maleta.

— Isso deve estar meio pesado prá você, não?

Ela devolveu o sorriso apesar da frustração que carregava na alma.

— Mas eu agüento bem!

— Quer uma carona até em casa? Você deve estar indo para casa, suponho.

Ela olhou para o rosto dele. Era simpático, sorridente. Ora, grande coisa! E aceitou.

Depois disso, volta e meia ele a encontrava pela rua. Oferecia carona, às vezes um café. Era engraçado como aquele interessante jovem sabia ser tudo o que o marido não era. Já fazia seis meses que ela estava em casa dos pais e nada dele conseguir outro emprego.

Mas aquele homem era diferente, sempre dizia as palavras certas, sempre escutava, sempre compreendia. Era charmoso e sensível. E parecia estar muito bem de vida. Muito bem mesmo, a julgar pelos ternos de corte impecável, o carro cheio de estilo e a conversa polida e culta.

E quando ele a levava para tomar café era sempre muito delicado, muito educado. E muito sedutor. Parecia adivinhar o que ela desejava. Toda mulher sonha. Como seria bom se talvez ela pudesse esquecer aquele malfadado casamento e...

Um dia ele a convidou para conhecer aonde morava. Ela não tinha nada a perder com aquilo. Foi. Mas a experiência não foi boa. Nem chegaram realmente à casa dele. Ela estava curiosa para saber como era um desse lugares aonde ao casais vão apenas para...estarem juntos! Aceitou a proposta. Entrou.

Mas ele se transformou tanto! De repente, durante o ato já não parecia a mesma pessoa. Seu rosto estava esquisito, diferente, como que transfigurado. E ele pronunciava algumas palavras estranhas. Será que estava falando com ela em outra língua?! Não a forçou a nada, mas foi algo bastante violento. No coração dela ficou a certeza. Não o queria ver mais.

Só que aquele homem também nunca mais a procurou. Do mesmo jeito estranho que surgira, assim foi o seu sumiço.

Depois que passou um pouco a culpa, confessou à mãe o ocorrido. Ela o havia visto algumas vezes e ambas tomaram a decisão que pareceu mais acertada. Confessar ao padre e rezar uma novena. Depois disso a moça suspirou de alívio e considerou-se perdoada.

Mas não pudera contar com o imprevisto. Em poucas semanas descobriu a gravidez.

***

Logo depois do ocorrido a sorte parece que voltou a acenar para ela. O marido conseguiu emprego e ela mais do que depressa voltou a viver com ele. Mesmo assim, quando a criança “prematura” nasceu ele não estava totalmente convencido de que o garoto era de fato seu filho.

A moça não pode sair logo do Hospital porque o bebê ficou alguns dias em observação após um parto difícil com sofrimento fetal.

Estava preocupada com o bem estar da criança. Mas então aquela mulher entrou no seu quarto. Vinha vestida de avental branco e apresentou-se como voluntária na Capelania Católica da Maternidade.

—  Não se preocupe com o seu filho. Ele vai estar muito bem! —  Disse a Capelã procurando consolá-la. —  Vamos rezar pelo seu menino? A senhora tem que consagrá-lo para um Santo e pedir diretamente a ele.

  Não sou devota de nenhum!

—  Que coisa, mas isso pode ser remediado. É muito importante consagrar as crianças assim que elas nascem. E os Santos que aparecem na Bíblia são mais poderosos do que aqueles que não aparecem.

A Capelã tomou uma Bíblia e abriu em determinado lugar. Esticou a página apontando com o dedo para um nome.

Leviathan. — Vamos consagrar o seu filho para São Leviathan? E aí ele vai ficar ótimo, você vai ver.

E assim fizeram.

Ela acabou guardando na cabeça aquele nome. Nunca nem desconfiou que “São Leviathan” não era e nem nunca tinha sido Santo. E menos ainda poderia supor que todo o romance com aquele estranho tinha sido premeditado.

***

Introdução

Ninguém acreditava que eu “daria em alguma coisa”.    

Recentemente vinham-me ameaçando com o internato. A idéia não era nada agradável. Aquela frase “dar em nada” me revoltava. Mas se viver e não chegar a coisa alguma era bem pouco interessante, por outro lado isso significava também fugir do sistema opressor imposto pela Sociedade. Significava liberdade. E eu preferia esta segunda opção.

Naquela época eu era pouco mais do que um garoto embora já me julgasse homem feito. Em pouco mais de seis meses completaria 18 anos. Era bastante tempo de vida.

A noite eu estudava, estava ocupado cursando o técnico em Administração de Empresas. De manhã eu completava o quarto ano de Química Industrial, até interessante em termos de conhecimento mas inócuo a nível profissional. Pelo menos para mim.

Afastei o cabelo da testa, olhando para o relógio de pulso. Era hora de sair do serviço. Desci pelas escadas, sem paciência de esperar pelo elevador, e dei de cara com o ar abafado da Avenida Paulista. Sentia o corpo cansado e a tensão acumulada me pesava um pouco. Decidi que precisava apenas de um pouco de paz e sossego!

Eu era o mais velho de três irmãos e considerado o “filho rebelde” por toda a família. Analisando hoje com calma, reconheço quanta dor de cabeça causei a meus pais com minha índole audaciosa, curiosa, inquieta e agressiva. O simples mencionar do meu nome já cheirava a confusão.

Meu maior problema, digamos, era o tal do “limite”. Por que tudo tinha que ser tão cheio de regras??! A Sociedade, a escola, a família! De uma forma ou de outra, eu queria enfrentá-las e quebrá-las. Não suportava nada imposto. Eu deveria criar meus próprios limites.

Atravessei a rua sentindo no rosto o vento morno e pensando aonde ir. O tão almejado período de refrigério era sinônimo de isolamento. Eu adorava andar em bando com meus amigos. A liberdade era total! Ninguém me dominava, ninguém me dizia o que fazer e o que não fazer. As regras eram o que menos importavam. Mas...... às vezes precisava estar só.

Nestas ocasiões eu ia a algum parque público “ver o verde” ou, mais comumente, às bibliotecas que adorava freqüentar. Esta outra faceta da minha personalidade era quase um paradoxo quando comparada à primeira. No entanto estes momentos passados comigo mesmo sempre proporcionavam-me a restauração do equilíbrio perdido.

Eu era ávido por conhecimento desde criança e quase tudo me interessava . Rebuscar nas grandes estantes da biblioteca do “Centro Cultural São Paulo” era um lazer no qual muitas vezes eu me perdia, esquecido do tempo, passando horas e horas a pesquisar sobre os mais diversos assuntos. Astronomia, Filosofia, Esportes, um pouco de Física e Química, muita História.

E naquela tarde decidi realmente ir ao Centro Cultural espairecer a cabeça.

O dia estava pesado, fumacento e havia muito barulho de trânsito. Mas não era isso que me incomodava. Fui devagar, olhando as coisas e as lojas, sem pressa. Comprei uma coca-cola para acompanhar o saquinho de amendoim japonês.

Entrei na Biblioteca sentindo aquela sensação gostosa que sempre me invadia quando podia escapulir para lá. Estava tão tranqüila! Podia ver apenas uma ou outra pessoa de longe, perdida no vasto salão. Gostei daquilo.

Fui primeiro ao setor de braille para ver se descobria algum cego. Adorava conversar com eles! Tão cheios de uma visão do mundo muito mais perceptiva, sensível e inteligente do que muitos “seres enxergantes” que eu conhecia. Eu ficava fascinado com muitos deles. Gostavam de conversar. E não me enxergar ajudava. Acho que somava uma certa carenciazinha da minha parte com a própria solidão deles. E assim batíamos muitos papos amigáveis.

Naquele dia eu queria encontrar um cego para debater a questão: como eles criariam um filho, caso os tivessem? Talvez fosse apenas uma busca minha, uma solução para meus próprios conflitos familiares. Não que eu desse muita bola para o que meus pais diziam, mas ser sempre a “ovelha negra” às vezes me entristecia um pouco. Eu não tinha má índole, apenas energia demais para gastar e muita imaginação.

A sessão de braile estava às moscas.

Na falta do meu cego tratei de ir separando alguns livros de esportes que vinha lendo, pois eu estava estudando sobre a maratona e o “Teste de Cooper”. Afundei-me nos livros em uma mesa de estudos e logo perdi noção do tempo, completamente absorvido na leitura.

O ambiente respirava calma, placidez e ali a temperatura estava agradável. Eu escutava de longe os roncos vindos da Avenida Vergueiro. Réstias de sol iluminavam o chão e as mesas, entrando pelas janelas aqui e ali. Eu me considerava em paz. E estava sozinho.

***

Quando me dei conta, de repente ele estava ali ao meu lado.

Acho que eu tinha estado muito entretido pois não o vi entrar e não o vi sentar-se. Senti a presença de alguém ao meu lado mas custei a desviar a atenção dos livros.

Encafifado, finalmente estiquei os olhos sorrateiramente de esguelha mas sem virar a cabeça. Reparei que ele lia uma enciclopédia, a mesma com a qual eu estivera entretido não fazia muito tempo.

Achei tudo aquilo muito chato. Fingi ler mas pensava lá comigo, já irritado: “Com tanto lugar nesta biblioteca vazia e este sujeito vem sentar na única cadeira ao meu lado!!!”. Fechei o livro e tratei de levantar-me ostensivamente.

Então ele falou comigo, sem erguer o rosto:

— Não vá embora, Eduardo. Eu preciso falar com você. —Aquele “preciso” soou estranhamente enfático. Não parecia um pedido. — Eu não sou o que você está pensando.

Chamou-me pelo nome! Um tanto intrigado, perguntei com certa brusquidão:

— Você me conhece?!

Ele ergueu o rosto e me olhou diretamente pela primeira vez. — Eu vim por causa disso. — Apontou o livro. — Eu conheço isso aí. Li há pouco tempo . Ele procurou ser afável, esboçando um leve sorriso, ainda que mantivesse o mesmo tom firme que me intrigava. — Sente aí para conversarmos. — Convidou ele. Ainda assim não me convenceu. Não era preciso muito tempo para perceber   que se tratava de uma pessoa de alto poder aquisitivo e fino trato. E bem mais velho do que eu. Ainda por cima tinha a enciclopédia bem aberta exatamente naquele artigo. — Eu nem te conheço. Ele interrompeu:

— O meu nome é Marlon. Recentemente você tem escrito cartas e se correspondido com S.Francisco, na Califórnia. — Era uma afirmação. - Por causa disso é que eu vim.

Engoli em seco, engasgado com a colocação. Deveria haver algum engano. Procurei simplesmente me ater à lógica mas as idéias se misturavam vindo em borbotões à minha mente... Como aquilo teria acontecido? Será que eu tinha feito alguma besteira!? E como ele sabia das cartas?!! Será que ele também havia escrito? O que ele queria de mim, afinal?

Marlon estendeu-me a mão com gentileza e sobriedade. Eu retribui o gesto sem pensar com a cabeça ainda fervilhando, os olhos correndo pelo salão. Repassei num ápice de segundo:

“Isso aqui deve ser alguma cilada...deixa ver...será que alguém descobriu que fui eu que depredei e pichei a escola? Ou então...o Márcio dedurou que era eu quem estava passando droga no Colégio Jardim Suíço! Ele foi guindado pelo camburão e pode ter aberto o bico!”. Apalpei de leve os bolsos e respirei aliviado: “Estou sem drogas comigo, que sorte!!!” Apesar do rumo dos meus pensamentos, aproximei-me dele e arrisquei. Era melhor deixar a lógica de lado. Se realmente aquele sujeito estava ali por causa das cartas......

Meu tom foi de espanto:

— Pôxa, mas...você veio de lá?!! — Foi a primeira coisa que me ocorreu para dizer.

Marlon não fez de conta que não entendeu.

— Não. Sou daqui mesmo. — Respondeu ele com calma. E olhando diretamente para mim: — Você sabe aonde está pisando, garoto?

Nós sabíamos bem do que falávamos. E aquilo mexeu com meu ego. “Quem ele pensa que é?! Eu sei muito bem onde estou pisando”

E alto:

— É claro que sei. — Revidei com desdém e olhar irônico.

Marlon deu um leve sorriso, como que já esperando aquela reação. Ele parecia me conhecer e aquilo me deixava bastante incomodado. E curioso. Mesmo assim ainda mantinha a guarda alta. “Será que andaram me espionando?...”

Mas ele parecia descontraído. Não fez qualquer pergunta a meu respeito. Bem acomodado na cadeira, voltou-se para o livro e simplesmente comentou sobre o artigo.

— Esta não é a única Base. Existe outra em outro ponto do mundo. Serão muitas mais tarde. Além das Bases, há centenas de grupos fechados em quase todos os países, inclusive aqui no Brasil. — Ele falava de forma corriqueira, natural, alternando o olhar entre o livro e o meu rosto cada vez mais espantado.

Achei estranho a informação vir tão fácil. Realmente há cerca de mais ou menos oito ou nove meses eu me correspondia com S. Francisco. Foram muitas idas e vindas mas, estranhamente, há três meses eu não recebia nenhuma resposta. Pelo menos até o presente momento.

— Por que você está me falando tudo isso? — Meu tom foi mais brando desta vez, mas eu ainda não estava totalmente à vontade.

— Ué?! - Marlon passou a mão pela barba bem feita. — Faz quase um ano que você escreve perguntando as mesmas coisas e demonstrando interesse em adquirir este tipo de conhecimento. Faz um ano que você recebe as mesmas respostas e responde as mesmas perguntas. É engraçado, não? Quando acontece...você duvida?!

Difícil acreditar. Involuntariamente meu corpo se inclinou para mais perto dele e eu apertei os olhos para fixá-lo melhor. Era absolutamente inacreditável!

— Mas, então...você é um......? — Não cheguei a completar a frase.

Marlon girava lentamente o anel que tinha no anular esquerdo. Mantinha o ar sóbrio mas parecia levemente divertido com minha reação:

— Isso é só uma questão de nomenclatura, Eduardo!

Decididamente ele dissera a coisa certa. Eu me acomodei de vez, disposto a ouvir. Nem sabia o que perguntar primeiro.

— Mas como você sabia que eu...era eu?

— Você mandou foto, não foi? Eu tinha seu endereço e todos os seus dados. Não foi difícil encontrá-lo!

— Mas eu não estou em casa agora!

— É através do endereço que normalmente as pessoas se encontram, mas este não é o único caminho. Com o tempo você também aprenderá isso.

Eu olhava para ele sem dizer palavra. O que será que ele queria sugerir? Como ele podia saber que eu estaria ali àquela hora?

Poupei-me de perguntar. Eu tinha lá comigo a intuição de que as respostas viriam mesmo sem que as perguntas fossem feitas. Acomodei o cotovelo sobre a mochila jogada em cima da mesa e meus olhos não se desviaram mais do rosto dele.

Simpático, Marlon sorria sempre. Teria talvez uns 40 ou 42 anos, tez pálida e traços que lembravam uma descendência sírio-libanesa. Usava um blazer de corte fino e elegante, preto, com camisa esporte clara. O anel era claramente de ouro, bem como a grossa corrente ao pescoço e os pequenos broches esquisitos na lapela. Reparei no tremendo rolex!

Depois daquele encontro sui generis começamos a enveredar para assuntos mais interessantes.

***

Somos fruto do passado. Nossa história de vida e as experiências da infância são responsáveis por muitas das decisões que tomamos no futuro. Eu não poderia falar de mim mesmo sem começar do começo. Afinal, tudo tem um começo.

***

Eu estava com seis ou sete anos. Era um tempo bom.

Após minha família ter passado por vários percalços financeiros, meu pai finalmente estabilizou-se bem. Nessa época éramos apenas eu e meu irmão Roberto. O caçula, Otávio, não era ainda nascido. Nós morávamos na região de Interlagos, próximo à represa de Guarapiranga, numa casa que para mim sempre terá aquele “sabor de infância”: gostosa, com jardim, quintal e muito o que explorar ao redor.

Havia o que se poderia chamar de fartura em nosso lar. Eu tinha um quarto só para mim e também minha própria televisão. Os armários da cozinha estavam sempre abarrotados de coisas boas. Nós também éramos sócios de um clube da época e eu iniciei minha alfabetização em escola particular.

Desde que me conheço por gente, sempre gostei de “estudos”. Tudo começou com as aranhas: eu as capturava e guardava em potes de vidro cobertos com redinhas, para respirarem bem. Dava-lhes alimento, às vezes até gafanhotos. Eu gostava de estudar o seu comportamento. Elas me fascinavam tanto! Cheguei a ter uma dúzia.

Minha mãe permitia que eu as guardasse dentro do quarto desde que cuidasse para que não escapulissem pela casa. E vivia lidando com elas, aprendendo pela observação.

Havia dias em que eu promovia guerras de aranhas.

A Manfreda era grande e imbatível, ninguém era páreo para ela. Ela ficou comigo muito tempo.

Eu gostava também de formigas. Costumava pegar uma boa quantidade de formigueiros com uma pá de lixo e os colocava também em recipientes de vidro. Aos poucos as formigas tornavam a cavar seus túneis e reorganizavam o formigueiro. Observá-las era outro dos meus passatempos prediletos. Até no meio da noite, se acordasse, refletia lá comigo mesmo: “Será que as formigas estão dormindo?”. E devagar saía da cama, acendia minha lanterninha para espiar o formigueiro. E não é que sempre tinha algumas formigas acordadas?! Aqueles bichinhos nunca paravam.

Meus “estudos”, naturalmente, eram particulares. Eu me entretinha muito bem sozinho mas havia também tempo de sobra para brincar com a molecada da rua.

Certa vez meu pai levou a mim e ao Roberto num parque de diversões perto de casa. Recordo-me do fato como se fosse hoje, o Roberto quis conhecer   o trem-fantasma e meu pai concordou:

— Mas é tudo brincadeira, heim? Não precisa ter medo! —

Avisou ele.

Eu nada disse mas não estava lá muito convencido. Quando criança eu tinha medo do escuro. Não sabia por quê. Mas como eu era o mais velho — quase quatro anos além do meu irmão — tinha obrigação de “ser macho”.

Não dei um pio mas fui de olhos fechados todo o percurso, só escutava a choradeira e os berros do Roberto misturados às risadas do meu pai. Não vi nada, nada! Só queria que tudo acabasse.

— Que bobeira, Beto! É tudo de mentirinha. Eu não tive medo. — Fiz questão de deixar tudo bem claro tão logo saímos do trem-fantasma.

— Tinha uns bichos lá. — Falava ele, fungando. — Eu não gostei nem um pouco!

De repente fiquei curioso. Pensei comigo: “O que será que tem lá dentro, afinal?...”

— Pai! Vamos de novo? Eu queria ver de novo! — Pedi.

— Não, não, não! Meu dinheiro não é capim. Nós acabamos de sair de lá, vamos comprar um picolé.

Insisti um pouco mais, só que não adiantou nada. E fiquei sem ver o trem-fantasma!

Atribuo meu medo de escuro aos fatos ocorridos em casa de minha avó. Nós sempre íamos visitá-la mas meu avô detestava a bagunça que nós, crianças, fazíamos. Lembro-me bem daquele seu gesto já tão característico: nem bem assomávamos à porta e ele já se benzia, como que para proteger-se. Mas acho que nós é que precisávamos de “proteção” pois ele vivia a nos assustar. Nos enchia de medo falando de fantasmas; cobria a cabeça com lençóis e, segurando um toco de vela acesa na boca, com as luzes apagadas inventava histórias de gente que pegava crianças.

Subir para os quartos era proibido. Já bastava a bagunça e correria no andar de baixo. Mas havia algo que, para nós, no nosso mundinho de criança, tinha uma atração incrível. Era a lulú. No quarto dos meus avós, dentro do armário embutido, ela estava soberanamente entronizada numa prateleira alta: a cabeça de isopor com a peruca preta de minha avó.

Meu avô vivia nos assustando com a lulú e dizia que ela viria nos pegar no escuro se subíssemos lá em cima. E nós achávamos que aquela cabeça com peruca e tudo podia sair voando, e atacar.

Uma noite meu avô distraiu-se na cozinha e eu subi escondido até o andar de cima, esgueirando-me de gatinhas pela escada. A grande aventura dava um friozinho na boca do estômago, um misto de medo e uma indescritível sensação de aventura.

Todos estavam lá embaixo e atravessei o corredor, colocando a cabeça na porta do quarto. A janela, de meia folha, deixava entrever o ambiente coberto pela penumbra. Atravessei decidido até o armário. Havia uma pequena luz vermelha dentro dele e eu a acendi bruscamente. Lá estava a lulú, lá em cima, meio fora de alcance. Estava tão feia! Fiquei olhando bem para a cara dela bastante tempo, analisando os detalhes. E quase sem perceber comecei a raciocinar comigo mesmo:

— Isso é só isopor...não faz mal para ninguém...! Como é que eu pude ter medo de isopor???

Decidindo-me, peguei a vassoura que estava à um canto e joguei a lulú no chão. A peruca voou longe. Eu a tomei nas mãos revirando-a de todos os lados. A sensação do cabelo roçando a pele era tão esquisita!

Fiquei revoltado. Tanto tempo com medo daquilo. Que medo bobo! Não era justo. Num ímpeto comecei a socar a cara de isopor com força, e aquilo foi gostoso!

— Roberto! Roberto! Venha aqui! — Estava totalmente esquecido de que eu nem deveria estar lá em cima.

Eu queria que meu irmão visse aquilo pois ele também não deveria mais ter medo da lulú. Roberto chegou e eu estava feroz:

— Olha aqui! Olha só o fantasma! — Gritei injuriado. — Venha socar a cara dela!

Ficamos os dois amassando a cara da lulú até que nossas mãos começaram a machucar. Achei a solução:

— Beto, vai lá embaixo e traz uma faca. De ponta!

Eu havia perdido o medo. Destruímos a lulú por completo.

Tanto a cabeça de isopor, que ficou toda esfaqueada, como a pobre peruca que terminou em pedaços pelo chão.

Juntamos os restos mortais num pequeno montinho que foi enfiado de volta no armário sorrateiramente. Ninguém percebeu nada e a bronca sobrou para minha mãe, dias depois. Meu avô estava histérico:

É o que eu digo sempre!!! — Berrava ele. — Estes demônios! Filhos de satanás! Olha só o que eles fizeram com a peruca de sua mãe!

Esta parte da história deixou de ter importância para mim. A minha descoberta é que tinha valor e, de fato, estes episódios acabaram sendo uma espécie de marco na minha vida: o trem-fantasma e o confronto com a “monstruosa” lulú.

Não sei como explicar mas eu não tinha mais medo de tudo aquilo. Escuro, monstros, fantasias assombradas. No caso do trem-fantasma usei uma lógica inconsciente: tudo estava bem e não havia motivo para medo se após o passeio nós simplesmente íamos tomar picolé. E a lulú...eu mesmo descobrira a verdade sobre ela.

E na minha cabeça, mesmo tão infantil, inconscientemente introjetei aquela idéia...de que se o desconhecido se torna conhecido e palpável, o medo desvanece.

Havia algo dentro de mim, eu ainda não o sabia. Mas era uma força poderosa que durante toda minha vida iria impulsionar-me rumo ao desconhecido.

***

Chegou a época das férias. Os dias tornaram-se melhores ainda para os pequenos.

Subia em árvores, roubava frutas, eu e os outros moleques da rua inventávamos novidades todos os dias.

Naquelas férias eu destruí as rodas do meu primeiro kart. Eu não conseguia ficar quieto. Era um kart de pedal e eu levava encarapitados comigo tantos amigos quantos pudesse. O objetivo era vir rodando à toda e brecar de repente para dar derrapadas malucas. As rodas eram de borracha maciça e gastaram tanto por causa das derrapagens no cimento que ficaram quadradas.

Com as ruas e as crianças da vizinhança ao meu dispor deixei de lado as aranhas e formigas. Eu já as estudara bastante. Mas quando não estava com a turminha sentia falta de algo e precisava de coisas que dissessem respeito só a mim. Acabei por encontrar meu novo passatempo nas horas que passava acordado noite adentro.

Até aquela fase da minha vida eu não estava acostumado a deitar tarde. Isso começou naquelas férias e eu acabei me apaixonando pelos filmes noturnos da televisão. Mas não qualquer tipo de filme! Descobri que toda sexta feira, lá pelas onze da noite, exibiam filmes de terror. Eu nunca vira nada parecido antes e aquilo como que me enfeitiçava.

O primeiro filme a que assisti foi de vampiro. Para ser mais correto, de Drácula, e era uma comédia. Aquilo deu início a uma verdadeira febre. Na minha curiosidade com o personagem assisti a todos os filmes possíveis e imagináveis de Dráculas e vampiros.

Meu interesse não tinha fim. Os hábitos daqueles estranhos seres não me saíam da cabeça. Fui à biblioteca da escola procurar livros que me contassem mais a respeito. Nada encontrei além de histórias infantis e enciclopédias para estudantes. A moça da biblioteca disse que havia outros lugares onde eu poderia encontrar livros e, pela primeira vez, pedi a meu pai que me levasse a uma biblioteca pública. Ali encontrei o que queria e li sobre todas as lendas e as prováveis histórias do incrível personagem.

Parece estranho, mas eu “torcia” para o Drácula nos filmes. Como odiava os grandes matadores de vampiros! Em alguns filmes ele ganhava. No final, no meio de uma névoa de vapor, a risada sarcástica. E ficava implícito que ele não estava vencido! Eu ia dormir regozijado, raciocinando comigo: “Pôxa, é a natureza dele, o jeito dele. Não dá para ser mudado. Ele se alimenta de sangue, precisa disso para sobreviver.”

E me virava para a parede, pensativo. “Coitado! ...”

Passei a desenhar freneticamente histórias em quadrinhos. Meu personagem principal: um vampirinho. Só que nas minhas histórias o “mal” sempre ganhava. Porque não era um “mal” real, eu entendia o vampiro simplesmente como um ser de natureza peculiar. Da mesma forma, o leão não é “mau” porque mata para comer.

Acho que meus pais nunca entenderam porque eu não desenhava casinhas, lago de patos, e montanhas ao fundo. Nem famílias com cachorrinhos. Era só o vampirinho de sempre, e um castelo mal assombrado, e um cemitério, coisas assim.

Quando esgotei o assunto sobre vampiros a nova saga foi descobrir tudo sobre o lobisomem, que passou a ser o novo herói do meu pequeno mundo e também virou personagem de história em quadrinhos.

Eu simplesmente gostava daquilo. Parece que aquela fascinação me acompanhou desde criança. Mais tarde meu interesse neste sentido tomaria outros rumos.

***

Eu olhava fixamente para Marlon. Todo o resto da biblioteca parecia não existir.

— Sua ficha foi analisada e chegamos à conclusão de que você tem muito potencial a ser explorado. Cremos que é chegada a hora de todas estas coisas finalmente aflorarem. Será bom você ser apresentado.

— Apresentado?...

— Se você realmente estiver disposto, é claro. Na verdade a escolha é totalmente sua. Nós estamos apenas lhe dando a oportunidade de fazer isto.

Eu não sabia direito como responder. Que o meu prazer seria imenso...indescritível, maravilhoso! Tentei organizar os pensamentos mas ele continuou antes que eu respondesse:

— Não sei ao certo quanto você sabe sobre tudo isso, a Sociedade e suas bases. Em duas palavras, destina-se a estudar o Oculto. De início eu o convido para assistir algumas aulas com outras pessoas. — Ele usava um tom amistoso mas ligeiramente impositivo.

Não fazia parte da minha natureza aceitar este tipo de coisa. Mas eu queria descobrir o que havia por trás daquele estranho homem. Marlon emanava uma aura densa de mistério, eu quase podia senti-la. Ele havia me desarmado logo de cara ao dizer que viera especialmente por minha causa. Eu nunca escutava isso de ninguém, ainda mais vindo de alguém como ele, obviamente tão culto e poderoso. Além do mais...ele estava falando daquele artigo da enciclopédia.

Minha expressão revelava qual seria a minha resposta. Meu olhar cruzou com o dele profundamente, significativamente. E Marlon simplesmente começou a falar.

— O Oculto nada mais é do que aquilo que ainda não conhecemos. Aquilo que não foi revelado; está como que envolto em névoa, ou atrás de cortinas. Quando você dissipa a névoa ou rasga a cortina...o Oculto deixa de ser Oculto.

Assenti com a cabeça.

— Vou te dar um exemplo rudimentar. Imagine um índio que não conhece talheres de mesa. Se estes lhe forem apresentados por trás de um véu, com pouca iluminação, certamente ele não fará a menor idéia do que se trata. As sombras longas e estranhas vistas por transparência no véu talvez o assustem. Ele terá medo e irá embora. E contará o que quiser aos demais. Mas um outro índio, mais esperto que o primeiro, olha atrás do véu e vê simples talheres de prata. Descobre que as formas assustadoras que se mostravam antes eram apenas projeções, não traduziam a realidade. Agora ele não tem mais medo, toca os objetos e os guarda com cuidado. O Oculto foi revelado a este segundo índio mas - note o detalhe - ainda em parte porque ele não sabe manipular os talheres. Consegue compreender o que eu quero dizer? Não seria difícil tais objetos tornarem-se elementos de adoração ou culto. Isso acontece porque ele teve acesso a apenas parte da verdade.

— Tem razão.

— Toda Verdade tem várias facetas. Para o primeiro índio havia horríveis espíritos por trás do véu; para o segundo, lindos objetos usados pelos deuses. Compreenda um princípio básico: se eu conheço apenas uma faceta de uma determinada Verdade e você outra, não posso dizer que eu estou certo e você errado, e vice- versa. Este é um lado da questão. A pior coisa é “conhecer em parte”. Mas é ainda pior quando fazemos dessa “parte” a expressão do “Todo”. O verdadeiro conhecimento só vem quando levamos em consideração todos os ângulos da questão. Compreende? Tanto do ponto de vista horizontal como vertical...

Interrompi, perguntando:

— Horizontal e vertical?

— Sim, quando falo em ponto de vista terreno, humano, finito, estou me referindo ao plano horizontal. Quando eu falo, ao contrário, plano vertical, quero dizer que isto tangencia o espiritual e o infinito. Entende? Quero dizer que o plano vertical envolve outras dimensões, dimensões não físicas. Somente conhecendo a Verdade sob todos os ângulos podemos nos gabar de conhecê-la completamente. Não basta olhar apenas para um lado. O grande equívoco da Humanidade, muitas vezes, é fazer da “parte” um “Todo” — como eu já salientei - e, de posse disto, arvorarem-se como donos da verdade em tantos e tantos aspectos. No nosso exemplo nem o primeiro nem o segundo índio estavam corretos, ainda que o segundo tivesse tido maior revelação. Mas imagine-se agora diante dos grandes mistérios do Universo..! A confusão fica bem pior porque, como você sabe...”Existem mais mistérios entre Céu e Terra do que sonha a nossa vã filosofia”!

Eu apenas escutava absorvendo cada palavra. Ele continuou falando de uma maneira que começou a me fascinar, introduzindo-me num raciocínio lógico e intelectual.

— Apenas o conhecimento completo leva as coisas a fazerem sentido. Quer ver um exemplo? Antes, na Antigüidade, o homem tinha medo do fogo. E por quê? Se tentavam tocá-lo, queimavam-se. O processo físico da combustão era um enigma completo e por isso o fogo era tido como letal. Mas hoje é diferente. O conhecimento nos fez ver que o fogo não é assim tão temível e agora podemos usá-lo em proveito próprio. O conhecimento trás o domínio e o controle. Quando se domina a força - no caso, o fogo — ela deixa de ser letal e passa a ser benéfica. Olhando por este prisma é muito fácil compreender que o temor do desconhecido é sem sentido, concorda? Uma tocha pode queimar alguém se você investir contra ela; no entanto a mesma tocha pode servir para iluminar o seu caminho, ou aquecê-lo. Assim é que uma força não é boa ou má em essência, depende do uso que é feito dela. Você compreende que isso que eu estou dizendo não está ligado ao conceito de Bem e de Mal em nenhum aspecto? Eu tinha que concordar. — Mas quer usada para o bem ou para o mal, o importante é que você tem o domínio da força, tem o controle sobre ela. Tanto pode queimar alguém...como pode aquecer-se.

Quanto mais ele falava mais quieto eu ficava, pensando em tudo aquilo.

— O que é o Bem e o Mal, então? — Marlon fez uma pequena pausa, olhando para mim.

Eu não arrisquei resposta.

— Imagine uma noite escura, de tempestade violenta, com raios caindo em todos os cantos e uma ventania lúgubre. — Começou Marlon calmamente. — Imaginou? Pois bem, pense também em um belo dia de sol, com brisa fresca e amena, passarinhos cantando e borboletas voando. Poético, não?

Teria percebido um tom levemente irônico na voz dele?

— Você poderia dizer que a tempestade é ruim e o dia de sol é bom? — Novamente uma leve pausa, como que incentivando-me a pensar. — Será que uma árvore na floresta diria isso? Que a chuva é ruim e o sol é bom? Penso eu que ela, na sua sabedoria, afirmaria ser necessário tanto um quanto outro. A árvore faz parte da natureza, do Todo; e estando inserida no contexto das forças naturais, não as teme. Simplesmente sabe que são necessárias. Quer ver outro exemplo? Uma lâmpada! Que ilumina, que nos faz ver as coisas como elas são de fato. A luz produzida pela lâmpada é resultado de duas forças, de um pólo positivo e outro negativo - daí temos a luz. Sem os dois pólos, sem os prótons e os elétrons, jamais haveria a lâmpada! Quando estamos integrados à natureza, fazendo parte deste Todo e compreendendo as forças pelas quais o Universo é regido começamos a compreender que esta dualidade permeia tudo o que existe. Sol e Chuva, Calor e Frio, Dia e Noite, Vida e Morte...é o princípio milenar de sabedoria expresso no TAO, no Yin-Yang. Você sabe! Quanto mais compreendemos que o Universo caminha e se alterna dentro de um ciclo e que isto é a pura expressão da Perfeição, mais claro fica que, em realidade, o Bem e o Mal não existem como Absolutos. Eles são produtos da nossa imaginação, da nossa criatividade, são apenas referenciais, conceitos criados pelo ser humano a nível de definição. Nunca Verdades Absolutas!

Marlon simplesmente olhava para mim:

— O Bem e o Mal são complementares, e não opostos. O termo “oposto” é ruim. “Opositor” já decodifica subliminarmente uma idéia de maldade e isto está muito mais ligado ao nosso instinto do que à realidade. Eu nem gosto deste termo “Bem” e “Mal”, melhor seria usar qualquer outro termo mais neutro porque são apenas coisas diferentes em essência. Não estão ligadas a sentimento de bondade e maldade. Isso é fruto da mente humana que, em sua pequenez, não compreende plenamente a verdade acerca das leis que regem nosso Universo. O nosso Sol, por exemplo: é graças ao calor dele que existe a vida nesta Terra da forma como a conhecemos. Mas imagine o planeta Mercúrio, tão próximo do Sol que sua temperatura média é tão absurdamente alta que impossibilitou a vida. Quer dizer então que o Sol só é “bom” aqui no nosso planeta ? Em Mercúrio deveríamos dizer: “Oh, que Sol mau, torrou o planetinha!”

Tive que dar risada:

— De fato!

— Que pensamento mais primitivo! O Sol não é bom nem mau! Em qualquer canto do Universo ele é simplesmente uma estrela. É preciso abandonar esses conceitos tão errôneos para poder progredir.

“Que inteligência...”, pensava comigo mesmo, “Quanta cultura!”. Cada vez eu simpatizava mais com ele.

— Em nossos grupos de estudo a ênfase é justamente essa, conhecer o desconhecido como um todo. Isso abrange conhecer não só as forças do Universo mas também aquelas ocultas dentro de nós mesmos. O ser humano tem muitas potencialidades que precisam ser exploradas. Imagine, por exemplo, que você possui uma antena...ou melhor, você é uma antena. Quando bem posicionada a antena capta ondas de rádio que são decodificadas em sons e imagens que trazem, em última análise, informação e conhecimento. As “captações” que você poderá fazer a nível individual são mais ou menos do mesmo tipo. Através de uma viagem introspectiva e pessoal, você tomará conhecimento de que existe no seu interior uma série de potenciais que você sequer suspeitava que existisse. Que sequer foram explorados. E que precisam vir para fora. Um Mestre indiano caminha sobre brasas e não se queima. Mas por quê? O que o tecido dos pés dele tem de diferente do seu? Nada, realmente! E pele, ossos e músculos como qualquer pé. Só que ele potencializou uma capacidade nata que já existia, que todos possuem em maior ou menor grau. O conhecimento de si mesmo o levou a desenvolver capacidades consideradas “sobrenaturais”.

— Pôxa...tudo isso que você esta falando é tão legal! De verdade, sabe? Realmente eu gostaria de aprender muito mais. — E arrisquei timidamente um elogio: — Parece que você está muito além da maioria, nunca vi alguém que tivesse esta visão, é como a águia que voa alto e vê mais longe... — Eu não sabia bem o que dizer.

— O conhecimento faz com que você tenha visão. Visão além do alcance! Você vai aprender muito nas aulas.

— Você também faz parte do grupo? Estuda lá?

— Sou, digamos assim, um dos Professores. — Ele não falou mais nada sobre o grupo provavelmente para produzir em mim uma sensação de expectativa. — E sabe qual é a melhor parte do conhecimento?

— ?

— Visualize um átomo com seus elétrons girando nos seus orbitais, em volta do núcleo. Um único átomo tem muito pouca expressão. Mas milhares de átomos unidos têm força. Milhares de átomos saem do plano virtual, inexpressivo, e invadem o plano físico. Constroem algo. Não é fantástico?

— Isso é um convite ao conhecimento? — Perguntei com ar levemente risonho.

Ele respondeu com o mesmo ar risonho.

— O conhecimento está ao alcance de quem o procura.

Aquela era a palavra certa. Eu estava empolgado com tudo e minha sede de conhecimento pedia mais e mais. Que oportunidade única!

— E o que mais vocês fazem lá? É só isso?

Nessa altura, a tarde já quase findava. Como quem não dá muita atenção à pergunta ele convidou, amistoso:

— Vamos tomar um café?

— Vamos nessa! - Respondi de bom grado. — Tá pagando?

— Você é meu convidado.

Como sempre eu estava duro. Não que aquilo fosse novidade, afinal eu estava acostumado às pequenas agruras, vez por outra. Como descer pela porta de trás do ônibus.

Deixamos a mesa, caminhando lado a lado. Na lanchonete do Centro Cultural o ambiente era agradável e havia várias pessoas por lá. Eu já desistira de velho de ir ao colégio. Sentei numa mesinha.

— Você quer mais alguma coisa além do café? — Perguntou ele. Pergunta errada. Reconheço que eu era muito sem cerimônia. Estiquei o pescoço na direção do balcão:

— Humm! ... Aquela torta ali será de quê? Marlon olhou.

— De palmito.

— Ué, como é que você sabe que é de palmito? — É de palmito, sim. Você quer?

— Manda duas aí.

Sem se incomodar, ele comprou o que eu pedira. Trouxe dois cafés e três pedaços de torta para me acompanhar na escolha. Eu contemplei a xicarazinha de café quente e cremoso que ele colocou à minha frente. Talvez esta fosse a minha parte do teste. Queria ver a reação dele. Era engraçado...eu não estava acostumado àquelas atenções e por isso eu o admirava cada vez mais. — Esta torta está boa mas meio salgada, né? — Você quer um refrigerante?

— Uma coca. — Realmente eu não tinha lá muitas cerimônias. E Marlon levanto, e trouxe duas cocas. — Vou te acompanhar. Aos poucos, fomos retomando a conversa.

***

Não sei porque todos os meus personagens tinham aquele fundinho meio macabro. Depois que esgotei todas as literaturas a respeito de vampiro, lobisomem, múmia e caveira acabei me cansando.

Como é duro ser criança e depender de adulto prá tudo!

Tenho sempre que esperar alguém que me leve na biblioteca!

De sorte que deixei de lado tudo aquilo por motivo de for a maior, apesar da fixação que tinha com eles.

Mas depois de meus dez ou onze anos eu já podia andar sozinho de ônibus e descobri bibliotecas novas que eu podia freqüentar. Fui devorando tudo quanto encontrava. Muitas vezes eu até cabulava aulas da escola a fugia para os meus livros. A Biblioteca era muito mais divertida e eu podia xeretar em tudo.

De repente descobri coisas novas e magníficas.

Descobri que gostava muito de ler sobre bruxas, feiticeiros, Magia. Acabei inevitavelmente caindo também na História da Igreja e da Inquisição. E embora eu não compreendesse exatamente do que se tratava, eu continuava lendo e lendo. Apesar de perguntar em casa sobre o que significava aquilo tudo ninguém parecia saber, ou querer, me explicar. Na minha cabeça ficou apenas o óbvio: que na época da Inquisição eles torturavam e queimavam bruxas na fogueira. O que mais me surpreendia era que bastava o testemunho de uma criança para condenar alguém ao fogo. A confissão “do crime” faria com que a morte, pelo menos, fosse rápida. Caso contrário...

Impressionei-me demais com aquelas histórias. Mesmo depois que saía da Biblioteca minha mente continuava presa àquilo. O próprio Torricelli foi queimado! Ele, que deixou um legado à Humanidade com suas descobertas. O pobre homem fazia experiências com um grande manômetro de mercúrio e estudava reações da pressão atmosférica. Havia uma bonequinha conectada ao sistema e conforme registravam-se variações de pressão, a tal bonequinha também subia ou descia. Isto até ao ponto dela chegar a ultrapassar a altura do telhado, podendo ser vista da rua. Quando isso acontecia, logo depois chovia sempre, (obviamente).

“Ora”, pensaram todos, “Logo depois que aquela boneca aparece, chove! Ele está fazendo chover, isso é bruxaria!!!”

Galileu Galilei quase teve o mesmo destino por causa das suas ousadas afirmações sobre a Terra e Sistema Solar naquela época de ignorância.

A Terra não era o centro do Universo? E... redonda??!

Galileu negou seus estudos em praça pública. Deus meu, Deus meu! Quantas barbaridades não foram feitas em Seu Nome? A conclusão óbvia para um garoto muito pouco informado a respeito de doutrinas religiosas foi aquela mesma: sem que ninguém houvesse falado sobre isto até então comecei a deduzir que a Igreja não passava de um órgão meramente político. Uma maneira de governar a Sociedade, de mantê-la na ignorância e sob o domínio daqueles que se diziam imbuídos do poder de Deus.

Quanta sujeira!

Paralelamente lendo sobre a história da bruxaria percebi -e os próprios livros atentavam para o fato - que a maioria das chamadas “feiticeiras” não o eram na realidade. Tudo era extremamente recheado de misticismo, a maioria dos fatos eram simples lendas de gente que não podia ainda compreender certos fenômenos. Ou que não tinha mais o que fazer! Sem dúvida, era muito mais fácil colocar tudo dentro do mesmo saco e rotular: “Bruxaria”. Aí era só enredar as pessoas com um monte de bobagens, queimar um bode expiatório na fogueira, purificar a alma e ficar com a consciência tranqüila.

Eu pensava e repensava naquilo. Mais tarde iria estudar no colégio que Karl Marx pensava do mesmo jeito: “A religião é o ópio do povo”.

Eu havia estudado também sobre os métodos de tortura usados na Inquisição: eram aqueles realmente os bons desígnios de Deus? (Onde é mesmo que Deus se encaixava naquilo tudo?).

Ao esgotar o que encontrei sobre Inquisição, Igreja Católica, bruxas e torturas desviei-me para o lado da Magia propriamente dita. Ou, pelo menos, o que consideravam como Magia. Mas era tudo meio louco, não parecia ter lógica alguma. Foi um pulo pular aquilo e passar direto para o Ocultismo. Li muito. Aquilo de fato me fascinou.

Estudando sobre Ocultismo uma tarde eu descobri algo sobre bruxos de verdade. Aquilo sim, era quente! Não se tratavam mais de meras histórias carregadas de fantasias e tolas superstições. Não, não... aquelas eram histórias reais de bruxos reais! Li tudo o que pude sobre todos eles, Abra Merlin, A. Crowley, Fausto e outros. Quando o assunto se esgotou, ( não havia muita coisa), continuei tentando achar mais coisas tão interessantes quanto. Neca!

E eu não tinha dinheiro para comprar livros em livrarias.

Tive que me contentar com assuntos menos chamativos e fui ver o que descobria sobre paranormalidade. Uma das coisas que me chamaram a atenção foi o que descobri sobre “Poltergeist”. Em suma, aquele termo queria dizer “espírito brincalhão” e, ao que parece, era atraído pela presença de uma criança ou adolescente em uma casa. Algumas versões diziam que poderia ser a própria criança desencarnada. Como eu acreditava nestas coisas foi um prato cheio na época.

— UAU! - Eu vibrava. — Queria um destes em casa! Seria o máximo! — Me dediquei com esforço dobrado aos estudos na tentativa de descobrir como atrair um deles para casa. Todos os dias saía feliz e exultante da biblioteca, sem me intimidar, satisfeito com a perspectiva de ter um amigo só meu. Eu queria tanto...! Tentei bastante, é verdade, mas acabou não dando certo. Os livros ensinavam até como expulsar um Poltergeist, mas nada diziam sobre o que fazer para atraí-lo.

Nesta época eu estava quase às portas do meu primeiro emprego, mas enquanto isso não acontecia o tempo que me sobrava era muito bem empregado para satisfazer todas as minhas curiosidades. Acabei realmente enveredando para o lado do Espiritismo. Havia muito mais material à disposição do que sobre Ocultismo e também a possibilidade de visitar algum lugar onde pudesse vivenciar a coisa na prática.

Nesta altura eu já tinha lá meus 12 ou 13 anos e meus pais não mais exerciam sobre mim todo o domínio que gostariam. E eu perambulava aonde me desse na telha. Descobri um Centro de Macumba nas imediações do colégio e resolvi xeretar por lá. Na sexta-feira, dia da reunião, aboletei-me num dos bancos para assistir à sessão.

Os espíritos “desciam” e encarnavam nas pessoas, que mudavam as vozes, a expressão do rosto e a atitude do corpo.

Mas... não sei. Sinceramente falando... aquilo parecia tão tolo! Não pensava que o contato com os espíritos pudesse ser tão medíocre, tão “fraquinho” assim. No meu entender, quase nada se aproveitava daquilo. Tão distante daquelas histórias dos verdadeiros feiticeiros, carregados de poder e sabedoria. Eu sentia que estava cada vez retrocedendo mais. Mas não queria! Queria ir na direção oposta, na direção...do Oculto!

Lá no Centro a impressão que eu tinha era que os tais dos espíritos estavam sempre tirando um barato com a nossa cara! Tinha o “Marinheiro”, o “Zé Pilintra”, e daí prá frente. Alguns às vezes já se intitulavam “demoninhos” mesmo. Sei lá se eu engolia aquela história! E a fumaceira dos cachimbos que eles fumavam, então! Atacava minha rinite.

Ainda assim eu insisti e freqüentei as reuniões durante dois meses, na esperança de que o negócio melhorasse e eu pudesse sair mais edificado. Certa noite, chamou-me a atenção uma garota até que bastante jovem que parecia ter recebido um espírito. Levantei-me e fui para perto dela, sentando-me ao seu lado.

Como é o seu nome? - Indaguei. — Pretinha. — Pretinha?! Mas você é branca! — Eu só queria ver qual seria a resposta dela.

Ela mantinha o rosto abaixado e sussurrou:

— Não...! Este aqui é só o corpo dela. Eu estou usando o corpo dela, entendeu?

— Entendi. Mas quem é você?

— Ah, eu sou um espírito desencarnado.

— É? E você é bom ou ruim?

— Eu sou um bom espírito!

— Que bom. E como foi que você morreu?

— Morri atropelada.

— E que idade você tinha?

— Eu tinha cinco anos.

Ao escutar aquilo não pude deixar de vibrar. Ela era um Poltergeist!

— Você não quer me acompanhar esta noite? – Indaguei prontamente.

Ela virou a cabeça de lado e explicou:

— Eu não posso...! Só dá para ficar aqui até a meia-noite. Se eu não voltar, depois não posso descer de novo.

— Quer dizer, então, que você só fica até meia-noite!?

— É. Depois disso descem outros espíritos mais fortes do que nós.

— Então você não pode me acompanhar?

Em resposta ela sacou duas conchinhas do bolso, cuspiu dentro e selou a ambas com cera de vela vermelha. Olhei atentamente. Aonde ia dar aquilo? Ela colocou o estranho objeto dentro de um invólucro vermelho e estendeu-o a mim, balançando-se:

—Guarde este patuá. Enquanto você o tiver eu sempre estarei com você.

— Mas você não disse que à meia-noite tem que voltar?

— Se eu não puder estar, mando outro espírito para você. É só você me chamar! — Ela aproximou o rosto bem perto do meu e, enquanto expelia uma baforada comprida de cachimbo, sussurrou: — Quando eu estiver perto você vai sentir este cheiro.

Ela sorria de leve e eu procurei enxergá-la bem nos olhos.

— E o que é que você quer em troca?— Eu já estava bem ciente de que nada é de graça neste mundo (e talvez até fora dele!).

— Bom... — Fez a Pretinha. — De vez em quando você põe uma garrafa de pinga prá mim embaixo de uma árvore. Também serve matar uma galinha e oferecer na encruzilhada, tá bom?

Pensei intimamente: “'Galinha, nem pensar.. .mas pinga até vá lá!”

Naquela noite eu saí da sessão empolgado ainda que questionasse um pouco:

— E espírito lá bebe pinga...? E ainda mais espírito de criança! Cada bobagem!!

Mas quem sabe eu estaria realmente acompanhado? Será que o Poltergeist estava mesmo comigo?! Seria tremendo! Minha cabeça já rodopiava pensando em mil e umas...mil e umas!!!

Não agüentei esperar. Catei o patuá dentro do bolso:

— Pretinha! Pretinha?! — Chamei com os olhos bem abertos e o nariz empinado, farejando um eventual cheiro de cachimbo. — Pretinha, você está aí?

Para meu desapontamento e surpresa, nada aconteceu. Chamei mais algumas vezes e nada!

— Eu sabia... — Desabafei, chutando uma lata. — Bela roubada! Isso não serve para nada!

Depois de alguns dias e várias tentativas frustradas, joguei fora a droga do patuá e acabei cansando de ir ao Centro. Sempre a mesma coisa! Mas se minha curiosidade havia de amainar um pouco depois da decepção... que nada! Ela permanecia insistentemente acesa como fogueira que não se apaga, sempre crepitando, pedindo mais lenha, mais lenha, mais lenha. E eu tratava de obedecer.

Estudei tudo que encontrei sobre pequenos rituais de invocação de espíritos e casas mal-assombradas. Na Escócia - acreditem ou não! - as casas consideradas assombradas eram mais caras do que as demais. Era um sinal de “ibope” ter o seu fantasma particular. E eu queria porque queria ter o meu!

Separei os rituais de invocação de espíritos que me pareceram mais fidedignos. A maioria parecia um monte de bobeiras. Outros, não havia como arrumar todo o material. Mas o que dava para fazer, fui fazendo. Teve uma certa vez que até copiei do livro as palavras para dizer durante a sessão. O autor garantia que estavam escritas conforme se pronunciavam. Parecia um encantamento de verdade e eu resolvi experimentar. Só que nunca dava nada certo! E nem sinal dos espíritos.

Algumas vezes havia necessidade de mais alguém. Eu tinha uma amiga quase tão aficionada quanto eu nesse assuntos. E juntos nós fazíamos a “caça aos fantasmas”, com toda seriedade. As únicas coisas que vez por outra funcionavam era a “Brincadeira do Copo”, popular entre as crianças, e a Tábua Ouija.

Mas tudo parecia... tão pouco! Tão pouco consistente! Não era possível, deveria haver algo mais.

E eu ia carregando comigo aquela frustração meio inconsciente, aquele desejo, aquela necessidade de conhecer... o que estava além do meu alcance!

Onde encontrar o que eu estava buscando???

     ***

Eu observava Marlon e minha cabeça ainda dava voltas. Não cessava de me questionar enquanto bebia a coca e comia a torta de palmito.

Aquele homem mais velho do que eu — bem mais velho! -bem vestido, de boa aparência, transpirando riqueza, poder, inteligência... por que tanta atenção comigo? Ainda meio desconfiado, questionava:

 “Será que este cara... não é homem?! Será que tem algum outro interesse por trás disso?”

Apesar da desconfiança... — afinal aquilo fugia totalmente à normalidade — por um outro lado ele sabia das cartas!! E parecia conhecer-me profundamente. Mas a dualidade continuava. Que fazia aquele homem à minha frente gastando o seu tempo aparentemente tão precioso?

Nós falávamos de amenidades enquanto comíamos. E as recordações chegavam em “flashes” que duravam frações de segundo.....

A última carta que viera de S. Francisco trouxera consigo um questionário para ser respondido e enviado de volta. Aquilo estava fazendo pouco mais de três meses. A ficha que eu enviara era riquíssima em detalhes. Detalhes sobre tudo. Um perfil completo da minha personalidade e vida. O que eu pensava, como pensava, minha visão a respeito de diversos assuntos, sensações, sentimentos. E ia por aí afora. Perguntavam tudo à respeito de minha família, desde quantos nós éramos até que religiões eram praticadas, ou não; queriam saber sobre meus hábitos pessoais em todos os sentidos, até sobre minha maneira de me vestir, se eu preferia roupas claras ou escuras, número de sapato e calça, peso, altura. E fotografia!

Várias coisas que Marlon estava abordando haviam sido comentadas na ficha. Por exemplo, como eu entendia conceitos de Bem e de Mal; como encarava a figura de Deus e como via a sua paternidade; o que a figura do diabo representava para mim. Também havia questionamentos sobre se eu já tinha tido experiências tais como sentir-me observado por alguém ou como se houvesse uma presença à minha volta; se alguma vez vira ou sonhara com alguma Entidade espiritual; se eu já tinha ouvido falar ou entrado em contato com uma série de Organizações que vieram explicitadas em uma lista; se eu sabia algo sobre alguns nomes da história, dentre eles Abra Merlin e Crowley (como se eu não soubesse!).

Havia também uma sessão onde eu deveria analisar e dar minha opinião sobre diversos   pequenos   textos. Um deles em especial veio-me à mente naquele momento porque de certa forma Marlon abordou o mesmo tópico: a questão das forças ditas complementares. O texto dizia que a Igreja tinha se utilizado das Cruzadas e da Inquisição para aproximar o homem de Deus. O fim era este, a aproximação de Deus, mas o meio utilizado era um meio de sangue, de dor, de tortura, de violência. E aí a pergunta, meio capciosa, se “os fins justificam sempre os meios”. Depois acrescentavam novos dados para que eu discorresse a respeito: Deus é chamado também o Senhor dos Exércitos; em outras palavras, o Senhor da Guerra. Eu acreditava que os atos cometidos nas Cruzadas estavam em conformidade com o perfil de Deus? Em contrapartida, Deus também é Deus de Amor. Como eu encarava esta dualidade?

Lembro-me bem da minha resposta porque ela traduzia pensamentos muito íntimos meus, muito pessoais. Coisas que eu não comentava com ninguém porque não havia com quem comentar. Respondi que eu não achava que Deus fosse bom ou ruim, as oscilações fazem parte e são complementares. Existem momentos em que, para disciplinar um filho faz-se necessário elevar a voz, bater, exigir. Em outros é necessário o abraço e o carinho. Isto tudo não descaracteriza a paternidade, simplesmente faz parte do processo.

Eu não compreendia nesta época que a natureza de Deus não se assemelha em nada à natureza humana. E por isso fiquei muito contente quando Marlon disse a mesma coisa em outras palavras. Gostei do conceito apresentado a respeito de Verdades relativas e absolutas. Traduzia o que eu próprio acreditava no meu íntimo embora nunca tivesse me preocupado em expressá-los de forma tão coerente.

Outra questão a que dei muita ênfase foi quando me perguntaram se eu tinha atração especial pelo Oculto e nisso eu gastei muito tempo. Pois não parecia haver palavras suficientes para expressar o quanto essa sede era intrínseca dentro de mim!

Uma das minhas maiores buscas era justamente essa apesar de eu não saber definir exatamente o quê era o Oculto. Mas eu tinha que saber, tinha que haver algo mais!!! E engraçado como Marlon principiou seu discurso justamente definindo conceitos neste sentido! E pude perceber que a necessidade de conhecer o que eu não conhecia espelhava sede de conhecimento, e com isso eu vibrei. Era o que eu mais queria, conhecimento! Queria encontrar o que estava perdido, o que estava por trás do véu. O que ainda não existia aos olhos da consciência. Mas que estava lá!

Por isso Marlon me fascinava tanto com a sua conversa e eu não conseguia sequer pensar em ir embora. Como ele mesmo já dissera o conhecimento trás revelação, e a revelação trás libertação. Libertação do medo, da ignorância, da servidão aos dogmas e crendices. Como a história dos dois índios! E eu...ah! Como eu ansiava por aquela libertação.

Bebi o último gole de refrigerante. Com amabilidade Marlon arrancou-me de meus pensamentos:

— Você não vai ao colégio hoje?

— Não, hoje não! Vamos conversar mais. Achei interessante. Nunca tive a oportunidade de falar com ninguém a respeito desses assuntos!

— Você tem muita inteligência mas acho que foi pouco estimulado a pensar. Você tem buscado muita coisa por si mesmo e quando a gente busca sozinho são muitas as limitações. Existem certas coisas que, por mais autodidata que você possa ser, é necessário alguém para ensiná-lo.

— Com certeza, isso é verdade!

Ele deu-me um sorriso e recostou-se melhor, também disposto a dar seqüência na conversa. E continuou com um lance certeiríssimo:

— Quer dizer, então, que você é um admirador de Crowley?!

Aquela era demais. Ergui bruscamente as sobrancelhas.

— Ué?! — Olhei bem para Marlon. — Você viu a minha ficha. — Afirmei.

— É, eu dei uma olhadinha nela.

— Pô, mas eu mandei ela para os E.U.A, cara!

Ele deu de ombros :

— E daí? A Organização é a mesma.

— Como assim, Organização? - Eu não tinha uma idéia clara ainda. Estes dados não me haviam sido passados em momento algum.

— Eu já te disse. É uma Organização que se destina ao estudo do Oculto. A lançar luz sobre o que está encoberto.

— Mas é só isso mesmo? - Eu voltei na pergunta, interrompendo-o, enfático.

— Bem, existe um período em que você aprende. E depois você executa! Se não for para executar aquilo  que se aprende, para quê aprender, então? Infelizmente é isso o que acontece nas escolas, você deve saber melhor do que eu. Garanto que você aprende um monte de bobeiras que nunca vai usar na vida! Adorei ouvir aquilo: — Mas nem!!

— Uma boa parte desta bagagem é pura cultura inútil. E eu sei que você anseia pela verdadeira sabedoria. — Marlon falava categoricamente. — Interessa aprender aquilo que tem algum significado. De tolices o mundo já está cheio.

Eu concordei, revirando a bolinha de guardanapo de papel amassado nas mãos, sem dizer palavra.

— Aliás, Eduardo, você tem algumas características muito peculiares. A data do seu nascimento, o horário, o local, tudo isso forma uma equação singular! Numerologicamente falando. Fazendo uma analogia corriqueira, por exemplo, com astrologia: a astrologia lida com probabilidades, certo? Como estatística. Da mesma forma você: os números da equação que envolve a sua pessoa demonstram que você tem uma predisposição nata, peculiar. Está compreendendo? A função numerológica que envolve o seu nascimento, a sua vida e a sua existência aponta para o fato de que provavelmente você tomaria o caminho que está tomando hoje. Essa predisposição — e entenda bem, não é predestinação — cresceu muito rápido dentro de você. Parece que as circunstâncias que o envolveram desde muito cedo potencializaram a predisposição. Você tem muito vigor, muita energia, e isso precisa ser canalizado para um fim realmente produtivo. Os números apontam para você como alguém especial, diferente, único. — Ele fez uma pausa e bebeu o fundinho da coca. — E é por tudo isso que você foi escolhido. Foi aceito. E participará a princípio do grupo que eu te disse, que estuda o Oculto. — Marlon abriu um sorriso mais amplo, simpático. - Considere-se um privilegiado!

Eu pensei um pouco e acabei questionando alto.

— Tudo bem, estudar o Oculto. Mas de quê me adianta isso? O que eu vou fazer com isso? — Eu queria espremê-lo ao máximo antes de concordar com ele.

— Ora... — Para ele parecia muito óbvio. — Este conhecimento vai gerar Poder. E Poder, em última análise, é o que o ser humano mais almeja. Porque o Poder está associado intimamente à conquista da Liberdade. A própria palavra “Poder” já diz isso, quer dizer “você pode... ou não pode” isto e aquilo. Quem não pode, não tem poder e nem controle da sua própria vida. O que eu quero que você compreenda, e que fique bem claro, é esta tríade progressiva: Conhecimento, que gera Poder, que resulta em Liberdade! O Poder fará com que você seja capaz de decidir a sua estrada, você poderá influenciar as circunstâncias à sua volta, poderá... enfim, você poderá escrever a sua própria história! Sem depender do aval de quem quer que seja.

Aquilo tudo entrava fundo dentro da minha alma. Cada palavra me cortava por dentro, me tocava, me fazia pensar e repensar. Ele expressava em palavras os anseios mais profundos do meu ser. Aquilo que eu procurara tanto tempo, sem encontrar!

— Chega de andar à deriva, Eduardo, como um barco sem piloto. Está na hora de você assumir o controle de sua vida, não é mais tempo de ficar sentado vendo a história passar. Deve fazer parte dela! Você tem um chamado e há um propósito a ser cumprido. Você é uma peça desta história.

Decididamente Marlon gostava de exemplos. E eles vinham sempre em boa hora:

— Fazer essa História acontecer é como construir uma grande Muralha. Aliás, você sabia que a Muralha da China é o único monumento que pode ser visto do Espaço? É grande... extensa... poderosa! Quantos tijolos não foram necessários para construí-la? Hoje estou te dando a oportunidade de vir a fazer parte de uma outra Muralha. E para esta Muralha nem todos os tijolos são chamados! Os escolhidos para participar dessa construção... ah, estes são especiais! Este tipo de união gera Força! A união pela união, sem um propósito comum, nada gera. Nem todo aglomerado de tijolos é efetivamente uma muralha, eles podem simplesmente estar amontoados e aquele montão não servir para nada. Mas a união de muitos tijolos com um propósito específico gera a tremenda Muralha! Gera a forma desejada. Isto é magnífico! Esta forma pode mudar a História, a concepção das pessoas, o destino da Humanidade.

Ficamos ambos calados algum tempo. Finalmente, assenti levemente com a cabeça:

— E este é o meu chamado? Fazer parte da Muralha?

— Ou ficar à deriva, jogado num monte de tijolos, sem saber o por quê da sua existência, sem fazer diferença alguma, contemplando a Vida, contemplando o Universo... contemplando apenas!

— Mas nunca ninguém disse que eu sou especial. Muito pelo contrário eu sou a ovelha negra, o que não vai dar em nada... — Eu não sabia como expressar melhor. — Sou o mal!

— Bom, isso eu também já te disse. O que é o Mal? O Mal não existe, você não é mau, nem bom. Você é simplesmente você. Bom e Mau são puros conceitos a nível de referencial. — Ele me encarou com um olhar sério acompanhado de um sorriso zombeteiro. — Você não é mau, Eduardo. Eu olho para você e não vejo e

este seu cabelo comprido... nem esta sua pulseira cheia de pontas... nem esta sua camisa rasgada... e nem estes seus broches esquisitos!

Comecei a dar risada de verdade:

— Não vê mas está falando, né?!

— Mas acontece que eu estou vendo além de tudo isso! Estou vendo a sua mente, o seu coração e a sua essência. E é isso que faz a diferença. Lembra do ditado popular que diz para não avaliar o livro pela capa nem o perfume pelo frasco, que o que vale é o conteúdo? Pois é... quando fazemos isso, quando olhamos o rótulo, tiramos daí uma idéia “a princípio”. E às vezes este preconceito, este conceito pré-estabelecido das coisas faz com que não tenhamos o privilégio de conhecer aquilo melhor. Né?

— Está certo, Marlon. — Chamei-o assim pela primeira vez. Ele havia praticamente derrubado as barreiras.

— Você já viu um diamante bruto? — Continuou ele.

— Não, nunca vi.

— Quem diria, não? Um diamante bruto é uma pedra horrível. Você acha na rua e dá um bico nele, pensando “isso aqui não vale nada!”. Mas se der o polimento, passar pelas máquinas, lapidá-lo... aquela pedra feia torna-se em algo de valor inestimável! É bonita, é agradável. Mas precisou do polimento.

 “Será que ele está querendo dizer que eu devia cortar o cabelo?”, pensei comigo. E perguntei:

— Este polimento do qual você fala é externo?

— Eu estou usando uma metáfora, quero simplesmente dizer que precisa de polimento para haver brilho. Isto não necessariamente quer dizer vestir-se bem ou cortar o cabelo. Você já deve ter ouvido isto, que “Jade sem polimento não brilha”. Esta você conhece, não?

— Ah, conheço! É um provérbio chinês! — A cultura chinesa fazia parte do meu cotidiano e, pelo visto, ele também estava a par disso!!

— Então...você precisa de polimento! Um polimento na alma. Porque o corpo em si não tem brilho. Você já reparou numa pessoa triste, como os olhos dela são opacos? Mas os olhos de uma pessoa alegre brilham! E o que faz o olho brilhar ou não brilhar? E a luz que vem de dentro, que vem da alma. É esta essência que faz a diferença. Uma pessoa feia, não agradável aos olhos... mas alegre, expansiva, comunicativa, tem toda uma Magia especial, não é? Ao passo que outra, a mais bela de todas, linda, espetacular, mas agourenta e depressiva... quem suporta? Tanto uma como outra contagiam o ambiente à sua volta. Não depende do “invólucro”, mas do “conteúdo”. - Fez uma pausa. - E eu olho para você e vejo jade... vejo diamante! O seu estereótipo é meramente uma maneira de rebelar-se contra o sistema.

Daquela história de rebelde eu gostei e até aprumei-me na cadeira. Era a pura verdade.

— Através da sua forma de se apresentar, em outras palavras você está querendo dizer: “Olha, eu sou contra tudo isso. Eu não aceito! Sou contra, quero ser eu mesmo. Quero ser diferente”. Não é assim? Sei que você quer algo mais. Não quer terninho, gravata, ficar sentado atrás de uma mesa de escritório e dizer “Amém, amém” para a Sociedade.

— Uau!!! Tremendo! — Explodi em entusiasmo. — Agora eu concordo que você acertou mesmo! Nunca ninguém foi capaz de entender isso, a lógica mais simples de todas! Nem em casa!

— É, isso é outra concepção que a gente tem, né? Pai, Mãe, laço de sangue. Isso não liga nada, não une ninguém! Não foi mesmo Jesus que disse para a sua mãe “Que tenho eu contigo... mulher?”. Com essa frase Ele deixou bem claro que este vínculo não existe. Embora haja lá o mandamento, parece que está escrito algo como “Honrar Pai e Mãe”... não é? Jesus, aparentemente tão sábio, tomou uma atitude meio... estranha!

— É. — Eu nada sabia sobre aquilo por isso concordei. — Este vínculo familiar é questionável. Muitas vezes alguém que te adota tem muito mais valor e afinidade com você do que aquele que te gera fisicamente. - Ele tocou em meu ombro e eu me esquivei de leve apesar de toda a simpatia que já nutria por Marlon. — Eu não te conheço direito ainda, mas já tenho um profundo amor por você!

Estranhamente... estranhamente aquilo não soou demagógico, mas tremendamente sincero! E o seu semblante, o seu olhar, a sua postura, tudo colaborava para que ele parecesse ainda mais transparente. Não sei porque, acreditei nele. Era verdade o que me falava, eu sentia, por mais inusitada que pudesse ser a situação.

— Este amor vem de uma Força que você ainda não conhece, ainda não enxerga, ainda não divisa. Mas que está à sua volta o tempo todo! — Mudou o tom de voz, brincando de novo comigo mas mantendo a seriedade da conversa. - E você que veio prá cá tentando achar um cego, heim?!!

— Peraí!... Como assim?!! - Ele ainda me pegava de surpresa com os seus tiros tão em cima. Será que ele lia meus pensamentos? Marlon apenas continuou:

— Mas foi você quem acabou abrindo os olhos. Todo aquele que não conhece o Oculto está cego para ele, e você compreendeu isso hoje. Você queria olhar o mundo através dos olhos de um cego para descobrir uma maneira diferente de enxergar as coisas, não é? Mas não havia percebido que você também está sem visão. Fiz que sim, mudo.

— Hoje você está sem visão... embora deseje muito ver! Estou dando a oportunidade que você precisa para poder olhar com seus próprios olhos, de enxergar, de ver a luz! — Por fim a pergunta que eu já aguardava. — Você está disposto?

— Eu escrevi para isso mesmo. — Foi minha resposta sem pestanejar.

— Ótimo. Tem certeza de que é isto mesmo que você quer? — Tenho. Eu apenas fazia uma outra idéia de tudo. Quando li o artigo pensei que fosse algo ruim apesar de me despertar prá caramba a curiosidade. Mas, de fato, da forma como você colocou vejo agora que eu estava enganado. E quero conhecer melhor tudo isso! O temor vinha justamente como fruto daquilo que você mesmo já explicou... do desconhecimento! Taí! Eu quero experimentar. Ser, como você diz, lapidado, não é? As pessoas têm medo porque não conhecem, é como entrar numa sala escura. A gente entra com medo mas quando acende a luz: “Uff! Não havia porque ter medo, são só objetos!”.

— Você compreendeu bem. A oportunidade é justamente esta: apertar o interruptor e acender a luz da sala. — Ele sorria abertamente. - Convido-o a entrar na sala...a fazer parte de Muralha. E para isto, começamos com o Grupo de Estudos.

Eu estava contente. Havia sido selecionado. Alguém estava me dando crédito. E não era qualquer alguém. Marlon, como representante do Grupo, boa pinta, bem arrumado, culto, inteligente, riquíssimo... era um senhor cartão de visita!

Ele ergueu-se e eu fiz o mesmo.

— OK! Vamos então combinar assim: tem uma igreja católica próxima à sua casa, ali na avenida, certo? Na próxima terça-feira eu vou passar por lá, te pego mais ou menos umas nove, nove e meia da noite. Tudo bem? E a gente vai para a reunião.

— Ah hã. Tá bom. Obrigado, eu vou estar lá!

— Eu preciso ir andando agora. Tenho outras coisas para fazer e acho que você também. Medita a respeito, pensa no que a gente conversou. E me aguarda lá na terça. — Aproximou-se de mim e puxou-me para junto dele abraçando-me forte e calorosamente. Que coisa esquisita......!

— Só tenha certeza de uma coisa... — Concluiu ele. — O lugar aonde você está entrando é um caminho sem volta.

— Eu sei disso. Foi dito na carta. E por quê, hein?

— Porque estamos investindo em você. É como entrar numa Empresa, ser treinado, fazer cursos, etc. A Empresa investe e não tem interesse de te perder depois. Porque você tem valor. E olhe, você encontrou aquilo que sempre esteve procurando. Encontrou a sua verdadeira família! Você vai gostar do pessoal!

Definitivamente tudo aquilo inspirou-me confiança. Reconheço que após as horas passadas com ele eu não estava mais com o pé atrás em relação a nada. Ou melhor... quase nada! Eu tinha que fazer a minha última pergunta:

— Escuta, não me leva a mal, não! Mas... você tem família?...

— Tenho.

 — Ah, tá! As sim... bom, você veio me procurar e tudo... por causa desses motivos que você falou, não é?

— Eu não sou “veado”. — Respondeu Marlon sem maiores preâmbulos. - Pode ficar despreocupado! Meu interesse é pela essência e não pelo corpo.

— Ah! Tá bom, então!! — Eu estava aliviado e suspirei mais leve.

— Fica tranqüilo. — Marlon riu descontraído e abraçou-me novamente do mesmo jeito, carregado de calor humano e força. E ainda apertou-me a mão. - Fica firme e te cuida! Tchau, e até terça!

Eu o observei ir-se embora. Fiquei meio letárgico por um tempo e deixei-me cair de volta à cadeira. Levei ali um bom tempo ainda, pensando... depois desci para outro setor do Centro Cultural, um local onde eu podia escutar música.

— Pô.....será que isto está acontecendo mesmo?

Ao som de “Hard Rock” eu continuei divagando a respeito.

— Será que eu vou com ele??? — Ao som tonitruante de “Hell's Bells” eu nem via o que se passava à minha volta. — Bom, eu não tenho mesmo nada a perder. Eu irei. Caramba.....alguém deu atenção prá mim!

***

Sem dúvida seria mais rápido se eu contasse logo o que aconteceu a partir daquela terça-feira que mudaria o rumo da minha vida. Mas eu não poderia deixar de lado o aspecto mais importante e que talvez tenha sido o que mais me impulsionou naquela direção. Algo que teve mais importância do que a própria sede pelo desconhecido.

Minha busca por uma família, a necessidade de aceitação, o preenchimento daquele vazio indescritível que eu tinha na alma. Isso não começou do nada. Teve as suas raízes.

E elas estão localizadas naquele período que começou de pois que deixamos a casa da minha infância, a casa em Interlagos.

***

        

PARTE I

Capítulo I

Meu pai foi fiador de um “amigo” que lhe deu o maior bote. Não o pagou e de quebra, sumiu.

Sem ter como saldar as dívidas em poucos meses nossa casa em Interlagos foi penhorada. Tivemos que desocupá-la. Até aquele momento minha mãe nada sabia do problema. Foi um choque horrível, um Deus nos acuda! Meus pais brigaram muito e toda aquela harmonia que “parecia” existir foi desfeita. Minha mãe quebrou todos os pratos e a louça da casa. Mas de nada adiantou.

Lembro-me muito pouco da mudança pois ela foi feita enquanto nós, as crianças, ficávamos em casa de minha avó. Eu tinha onze anos, o Roberto, sete e o Otávio era praticamente um bebê, com três anos.

Com certeza era problema para valer!

Mudamo-nos para longe, lá para os lados da Lapa. Nossa nova casa era um apartamento mas apesar de tudo era até espaçoso. Meu pai iria comprá-lo através de financiamento.

Entrei correndo para conhecer tudo depressa:

— Pôxa, ainda tem um quarto só para mim! Adorei! — Minha privacidade e sossego continuariam mantidas.

Não posso falar nada sobre minha mãe, mas quanto a mim, me pareceu ótimo. Ficava no primeiro andar e a minha janela, na lateral direita do prédio, dava para uma ruela estreitinha que terminava numa vila de casas lá atrás.

A rua da frente era sem saída e quase defronte ao prédio o espaço era ótimo para brincar. Havia ali sempre um bando de moleques da própria região. Depois de observar um pouco saí para travar relações. Alguns eram da minha idade, outros mais velhos.

Eles estavam sempre jogando bola. Sentei na ponta da calçada e, como não soubesse o que fazer, fiquei vendo. Ninguém ligou para mim :

— Ô, guri, vê se te liga e fica um pouco mais para dentro da calçada. — Disse um deles para mim. — Vai acabar levando bolada!

Eu obedeci silenciosamente. O jogo acabou e ninguém me chamou para brincar. Voltei frustrado e triste para casa. Não havia outra alternativa senão divertir-me sozinho assistindo desenhos na TV, escrevendo minhas histórias em quadrinho e voltando à saga das aranhas e formigas. Todos os meus amigos haviam ficado em Interlagos ou na escola que eu havia acabado de abandonar.

Já sabia que podia desistir do futebol de rua. Mas depois que a decepção amainou não me incomodei muito. Ainda mais porque naquele tempo eu adorava fazer pipas. Passava toda a tarde entretido e caprichando ao máximo. Um dia saí feliz da vida ostentando uma bela pipa em formato de arraia, multicolorida, grandona e com uma longa cauda como de cometa. Lindíssima!!!

Os meninos estavam lá. Me acendeu uma chamazinha de esperança, talvez a hora fosse boa para tentar novamente travar relações amigáveis. Mas mudei a estratégia. Eu queria fazer um “ciuminho”, chamar a atenção deles.

— Depois... — Pensei. — Se ninguém ligar, pelo menos eu estou com a minha pipa e fico brincando no outro canto da rua. Mas quem sabe alguém puxa papo comigo?

Saí com a pipa embaixo do braço olhando de esguelha como quem não quer nada. O bandinho gritava, correndo atrás da bola.

— Vai, meu! Passa a bola!

— Manda leve, manda leve!

Ninguém nem me olhou. Que coisa! Um pouco depois disso foi dado um “tempo” e todos sentaram na calçada, suando. Era minha deixa. Saí correndo para dar linha na pipa e passei bem pelo meio do campo deles.

Desta vez percebi muito bem que eles me olharam com olhos um pouco compridos. Cochicharam entre eles. Todo exultante eu dava mais e mais linha aproveitando o vento. Que auge!

De repente, vi pelo rabo-do-olho que um deles aproximava-se de mim . Empinei o rosto e fiz cara de quem está fazendo a coisa mais importante e difícil do mundo.

— Ô, meu! Legal esta pipa aí, heim, cara?! — Disse-me o garoto.

— Pois é! Passei a tarde toda para fazer! — Eu alternava a vista entre a pipa e o rosto dele. — Legal, né?

Ele olhava para o alto protegendo os olhos com a mão: — Voa bem. Maior barato!

Naturalmente eu gostei da aproximação e não queria desperdiçar a oportunidade. Ofereci gentilmente: — Quer empinar um pouco?

— Opa! Manda aí! — Sem esperar maiores convites ele tomou a linha das minhas mãos. — Beleza!!

Foi dando mais linha, alguns leves puxões, e foi-se afastando pela rua em direção ao grupo. Até aí, tudo bem. Afinal ele tinha mesmo que aproveitar o vento. Mas para minha surpresa o garoto começou a recolher a pipa enquanto olhava para mim com expressão zombeteira. O resto do bandinho começou a erguer-se e todos tinham o mesmo arzinho caçoísta no semblante.

Fiquei olhando sem entender bem. Mas algo me dizia que talvez fosse hora de voltar para o apartamento.

— Ei! Você não vai devolver a minha pipa?! — Gritei. O moleque já segurava minha linda pipa nas mãos. Caiu na risada e o resto do bando com ele:

— Laranja!! Agora ela é nossa! E você pode ir já para casa. — É isso aí, vê se te manca!

— É proibido empinar pipa aqui!

— Mas eu não sabia... - Ainda tentei argumentar. — Pois agora já sabe! Hi, Hi, Hi!!!

Virei as costas e saí dali. Agora, além de muito frustrado eu estava também com raiva. Depois disso quantas pipas eu fazia tantas eles me roubavam. Percebi que eu era a nova brincadeira do pedaço. Bom... talvez esta fosse a maneira de eu me relacionar com eles. Mas já nem caprichava nas pipas. Fazia tudo mal feito porque elas tinham mesmo vida muito curta.

O bando da rua me tomou para Judas. A solução que encontrei foi brincar na vila atrás do prédio. Ali eu estaria seguro. Os garotos da rua que se danassem!

Então peguei minha bicicleta e esgueirei-me pela ruazinha lateral, procurando passar despercebido. Lá atrás, diante das casa da vila, havia um espaço super legal, tão bom quanto o da rua. Todo contente achei que tinha achado o meu espaço. Saí pedalando com um sorriso de orelha a orelha.

— EI!!! - Três garotos que eu não conhecia gritaram atrás de mim. — Ei, guri, chega mais!

Eles se aproximaram assim que parei. Seriam estes os meus novos amigos? Dei um sorriso de leve.

— Oi.

— Oi, nada, moleque! — Falou o de camiseta vermelha. — Da onde é que você é?

Não gostei muito do tom dele mas respondi, desconfiado:

— Eu moro ali no prédio.

O de boné riu dando-me leve pancada no braço. Olhou para o prédio logo adiante.

— Chiiii, o moleque é novo no pedaço, Zeca!!

— Mudei há pouco tempo. — Respondi ao Zeca.

O terceiro garoto não falava nada, só brincava com o estilingue nas mãos olhando-me com desdém.

— Pois é! — Retomou o Zeca. — Acho que você tá mesmo por fora, moleque! Desta vez vai passar em branco, mas é o seguinte: aqui é lugar da Turma da Vila, sacou, bocólão? - Ele aproximou o rosto do meu em atitude intimidadora. — Ninguém da rua entra aqui, senão é porrada na certa! Deu prá entender ou eu preciso repetir?

Mundo cão!... Pelo visto eu estava chegando tarde em todos os lugares, já estava tudo ocupado e não parecia haver espaço para mim. Os outros dois também me encaravam firme.

— Deu prá entender, sim! - Eu encarava de volta. - Mas acontece que é chato ficar lá na rua e eu pensei...

— Azar seu se o povo de lá também não te quer. É bom você ficar sabendo que a Turma da Vila não se bica com o povo da Rua. Você mora no prédio, não é? Pois então! Você é da rua e ponto final. Vê se não torra o nosso saco e vai já caindo fora daqui!

— Sei, mas onde é que eu vou andar de bicicleta se a rua é deles e a vila é de vocês?

O do estilingue falou pela primeira vez, segurando minha camiseta pelo colarinho: acho que a boa vontade deles comigo tinha acabado.

— Olha aqui, guri, a paciência já esgotou! O problema é seu, te vira e não apareça mais por aqui! Você mora lá na rua! Vai se entender por lá! Agora! —  Deu-me um peteleco na ponta da orelha e eu sabia que aquilo era somente um “amigável” aviso.

— Vai carregando o teu bagulho embora senão vai sobrar, heim? Ninguém precisa de almofadinha filhinho-de-papai por aqui! — Retomou o Zeca.

— Tchauzinho, seu laranja!

Eu havia sido escorraçado. Sem dó. Voltei pedalando pela ruazinha, injuriado. Passei por baixo da minha própria janela. E tão entretido estava em meus próprios pensamentos que me esqueci da molecada da rua...

— Olha lá, pessoal!!! — Eles quase foram a delírio. — Olha só a bicicleta do bacana!

Eles já vinham todos correndo para mim. Caí na realidade de repente.

— Olá, pessoal.

— Olá! Vamos dividir a magrela um pouco? Deixa a gente dar uma voltinha?

— Depois eu!

— E eu!!

— Você nada, eu falei primeiro!

Pelo visto eu era o único que tinha uma bicicleta no pedaço. E não havia o que fazer. Agora eles já haviam visto! Que coisa. Depois daquele episódio eu não podia sair com a bike porque, sempre que o fazia, todos a usavam menos eu!

Aos poucos fui me cansando. Estava cheio de tanto abuso! Agora nem pipa e nem bike, aquilo já estava mesmo sem graça.

Um dia eu estava ali catando aranhas num terreno baldio e o grupinho jogava bola em meio a urros, como sempre. Acabei me entretendo e esqueci deles. Quando passei de volta eles já não estavam mais lá, haviam debandado rua abaixo para o passatempo de final de tarde: jogar cascas de laranja, ovos e restos de comida na turma que passava pendurada nos trens e que ia para casa. Naquele trecho a linha de trem passava bem pertinho e era um alvoroço para a molecada. Eu só ficava olhando, com semblante meio entristecido. Vinha me sentindo muito só desde que havíamos nos mudado para o apartamento.

Eles voltaram aos pulos, rindo e falando alto, comentando quem acertou o quê. Hoje em dia há um muro alto separando a rua dos trilhos mas, na época, nada havia que os impedisse.

Deram comigo ali parado. Eu conhecia a todos de vista e a alguns de nome.

— Pô, bacana! Você tá incomodando. Faz um favor, vai prá casa, vai!

— Mas eu não estou a fim de ir para casa agora. — Normalmente eu costumava retrucar um pouco.

— É, mas acontece que a partir de agora você fica proibido de sair de casa a não ser que pague o pedágio.

— Que pedágio?!

— É a nova onda que inventamos prá carinhas assim bacanas como você! — Ele chegou mais perto de mim, com as mãos à cintura. — Ô, meu, tem queijo lá na sua casa?

— Tem, sim. Por quê?

— Então sobe lá e trás queijo prá gente.

— Daí posso ficar na rua!?

— Pode!!! — Responderam em coro.

E a “nova onda” pegou. Volta e meia eu tinha que pagar um pedágio para alguém para poder ficar na rua. Era tudo tão diferente de Interlagos!... Lá não havia meninos como estes, folgados, encrenqueiros, que se uniam em bandos e dominavam o pedaço, judiavam dos demais.

Naquela época eu era inocente. Tinha sido muito protegido até então e com 11 anos, o que eu conhecia do mundo, afinal? Sempre em escola particular, amiguinhos da minha idade e de boas famílias, clube, roupas novas...

Falar em roupa......

— Pôxa, você é um tonto mesmo, heim? Você não usa calças jeans, não, ô, bacana?

— Quá, quá, quá!! Olha só a roupa do moleque! De fato, eu nunca usara um jeans. Minha mãe nos vestia com roupas bem “fora de moda” para aquele bairro. (Pensando bem, acho que ela nos vestia bem fora de moda para qualquer lugar da cidade). Eram calças tipo sarja, com pregas, camisas esportivas, sapatos do “Dic”. Não dava mesmo para enganar. Tudo me denunciava, meu jeito de falar, minhas expressões, meu modo de agir, meus brinquedos... e minha roupa! Em meu novo bairro eu não passava de um filhinho de papai mesmo, um otário! E essa, agora, que fazer?!! Tudo que eu tinha aprendido como certo agora eu via que estava errado pelo ponto de vista dos meus novos vizinhos.

Pensei que as coisas se acalmariam quando as aulas reiniciassem. Chegou fevereiro e também o primeiro dia de aula. Meus pais haviam esclarecido que eu iniciaria a quinta série em escola pública, mas que tudo seria muito bom para mim.

Minha mãe levou-me ao meu primeiro dia na “Escola Experimental”. Era uma escola muito grande para os meus padrões, eu nunca vira nada assim. Praticamente tudo era diferente do que eu conhecia. Em primeiro lugar, o colégio parecia não conseguir comportar todos aqueles alunos, os corredores estavam super cheios, havia correria e gritaria por todos os lados. E muito pouca gente com pulso firme para “por ordem no galinheiro”. Depois, os alunos eram esquisitos, vestiam-se esquisito, andavam esquisito e falavam muita gíria. Apenas o ginásio funcionava de manhã, portanto a grande maioria dos alunos era mais velha do que eu.

Recebi e dei algumas ombradas no meio do empurra-empurra até conseguir finalmente descobrir que eu pertencia à quinta “C”. Achei a tal sala e sentei-me lá no fundo, à espera de que algo acontecesse, que alguém entrasse e desse alguma orientação de qualquer tipo. Havia já alguns alunos por lá. Eu não sabia ainda mas a quinta “C” era a única classe aonde meus pais conseguiram matricular-me. Em breve eu viria a descobrir o por quê deste “privilégio”. As turmas “A” e “B”, mais seletas, não dispunham de vagas. A “C” era a turma mais marginalizada e o lugar dos repetentes.

Um cara sentado sobre a mesa do Professor, sem qualquer motivo aparente, começou ostensivamente a encarar-me. Senti-me mal e subitamente comecei a achar que talvez aquela não fosse a minha classe:

— Ah, eu acho que a quinta “C” não deve ser aqui, não! - E tratei de ir recolhendo as minhas coisas. — Vou procurar de novo, não estou muito à vontade nesta sala...

Saí mas tive que voltar. A sala era realmente aquela, para meu desgosto. Havia mais gente agora e quando entrei todos voltaram os olhos na minha direção. Pelo visto eu era o único novato. Mas não sei por que aquela cara de poucos amigos, especialmente dos mais velhos. Tinha verdadeiros marmanjos na classe, com 16 ou 17 anos, e espelhando em cada gesto e cada palavra toda a revolta contida na alma.

Logo entrou o Professor, um sujeito meio gordo de bigodinho bem aparado e óculos de aro azul. Parecia irritado e caminhou com passos rápidos até a mesa, onde literalmente atirou as coisas. Virou-se para nós com ar autoritário e mau humorado ao mesmo tempo:

— Aviso desde já que hoje estou de péssimo humor! — Vociferou à guisa de bom dia. — E sabem por quê? Porque infelizmente vou ser obrigado a aturar esta turma o ano inteiro!!! Estendeu o dedo ameaçadoramente enquanto dava voltas pela frente da sala. - Mas não pensem que serei o único prejudicado! Vocês também terão que me aturar! — Ele falava com raiva na voz e acabou até cuspindo longe alguns perdigotos.

A maioria olhava para ele com ar irônico, provocador, relaxado; os mais rebeldes, espalhados nas cadeiras com as pernas abertas e os cotovelos fincados nas mesas, mascavam chicletes ostensivamente.

— Vocês jogam pesado e se julgam muito espertinhos! Eu sei bem com quem estou lidando e não pensem que os agitadores da turba passam despercebidos aos nossos olhos. Vocês pensam que podem fazer o que quiserem. Mas vou deixar claro o seguinte: falam o que quiserem na aula de outro Professor, porque eu também sei jogar pesado. Aliás, para quem já levou bomba tantas vezes... uma a mais, uma a menos não faz diferença nenhuma!

O aluno que estivera a me encarar estava sentado a poucos metros de mim e riscava as costas da cadeira da frente com a ponta do canivete. Outro, ao meu lado, com uma barba rala, puxava e repuxava para fora da boca o chiclete, fazendo um barulho desagradável. Podia-se ouvir buchichos aqui e ali, entremeados com risadinhas abafadas. Ninguém estava nem aí!

— Vocês estão bem avisados. É bom tomarem cuidado comigo. — Aquilo tinha o tom da ameaça. — Não sou flor-de-cheiro!!

Era até difícil de acreditar. Aquela era realmente minha nova escola... meus novos colegas... e que Professor! Que bronca!!!

Ele voltou as costas para a turma e principiou colocar na lousa os títulos de algumas literaturas. Acho que a aula ia começar e então eu arrumei minha carteira como de costume: O estojo do lado esquerdo, o caderno ao centro, a borrachinha no canto superior direito e as canetas enfileiradinhas à direita, preta, azul e vermelha.

Percebi que os alunos ao meu lado começaram a encarar muito, trocando cotoveladas, piscadelas, apontando na minha direção com o queixo. Risadotas. Mas eu procurei não dar muita bola e copiar o que estava sendo colocado na lousa.

De repente o garoto ao meu lado passou a mão na minha borracha. Olhei e achei que ele só queria usar um pouco. Fiquei na minha.

Quando a aula terminou, como ele não a tivesse ainda devolvido, virei-me para cobrar: — E a minha borracha?

Ele inclinou-se para mim rindo entre dentes e encarando-me: — Quer dizer que a belezinha quer a borrachinha de volta? Não respondi mas fiquei encarando tão firme quanto me foi possível. Logo juntou gente em volta para assistir à cena do “novato”. Mas eu estava calmo. Que gente mais folgada!

—Quer dizer que você não vai devolver a minha borracha? — Vem pegar! - Respondeu com a cara já meio fechada o tal garoto. — Você não quer de volta? Então vem pegar, pivete! — E jogou a minha borracha dentro da cueca!! — Vem pegar!

— Essa não! — Respondi instantaneamente. — Eu não quero mais isso aí!

— Vem pegar, pivete!! — Ele rebolava debochado à minha frente.

A maioria ria, aderindo ao jogo:

— Pega aí, vai!

— Você não quer mais a borracha?

— Não quero mais. - Tornei a dizer.

O garoto parou de rebolar e assumiu um ar sério:

— Tudo bem, vai! Hoje eu vou dar uma de bonzinho com o coitado que está começando hoje!

Tirou a borracha de dentro da calça e a colocou propositalmente bem ajeitada na minha carteira, no mesmo lugarzinho.

— Eu não quero mais essa borracha. Tá contaminada!

Aquele que me encarara logo cedo aproximou-se mais. O nome dele, como eu viria a saber, era Paulo:

— E tem mais, viu, sua bostinha? — Ele me olhava com desprezo no semblante. — Aqui a gente só usa uma caneta !Você não precisa desta aqui! — Pegou a caneta preta e “Pec!”, partiu-a. — E nem desta outra! — “Pec!”. Partiu também a vermelha e quase encostou o nariz no meu, inclinando o corpo para ficar bem à minha frente. — Entendeu, bostinha?!

Quanta coisa dá para acontecer em 5 minutos!

Finalmente o Professor entrou na sala e eles me deixaram antes que eu pudesse responder qualquer coisa. Estava chocado. Não havia outra palavra para descrever meu estado.

Durante as aulas que se seguiram eu trocava olhares com eles, o Paulo e o Barão (o que me roubara a borracha), mas também com mais uma meia dúzia que insistia em me encarar torto. Eu sentia, no íntimo, que havia um preço a pagar. Um preço para ocupar aquela carteira. Eu ia ter que pagar.

Chegou por fim a hora do Recreio. Mas lá não era “Recreio”, era “Intervalo”. E não caísse na bobeira de usar o primeiro termo! Aliviado, eu rebusquei na mala em busca do lanche: sanduíche e suco de fruta.

— OPA! — Era o mesmo da borracha, o Barão.

“Mais essa!”, pensei erguendo os olhos para ele.

— Pô, cara! Que coisa! — Como os demais, Barão falava gingado, malandro, usava muito as mãos e o corpo a cada frase. Nunca tinha ouvido um palavreado tão... tão...

— Aeh, me descola aí um picho! — Gritou para mim.

Molecada mais chata! Quase que senti saudades da turma da rua! Os outros sujeitos ao lado do Barão falavam ao mesmo tempo:

— Olha só que otário! O cara traz lanche de casa!

Barão retomou, impositivo:

— Me vê um picho aí!

— Picho? — Balbuciei. — Que picho?

— Laranjão!!! Picho, bufufa, prata, carvão, grana! Não sabe de nada, né?! — Fez com mau modo um terceiro que tinha o nome de Juca. — Ele quer dinheiro, burraldo! Essa é a única linguagem que você entende?

Dei de ombros.

— É, mas dinheiro eu não tenho. Só trouxe o meu lanche!

Barão se aprumou, fazendo pose para os demais:

— Tudo bem, como eu já disse, hoje estou bonzinho porque é o primeiro dia do pirralho. Serve o rango, já que está sem picho mesmo. Manda ver!

Para indignação minha, eles comeram o meu lanche e tomaram o meu suco como lobos. E sequer me deixaram um pedaço. Lembrei-me do Paulo riscando a cadeira com o canivete. E tive que engolir também a história do lanche. Eram maiores e estavam em bando. Como ir contra aquela turma?

Logo após o intervalo era aula de educação artística. Deram-nos argila para modelar. Eu não achei lá muita graça no passatempo bobo. Imagine só os marmanjos!

A Professora saiu um pouco e a classe ficou sozinha. Sentado ao meu lado na mesma mesinha, um cara de blusão jeans desfiado nas mangas deu-me um cutucão:

— Aeh, guri. Que que tu pensa que é isso aqui? - Perguntou ele naquele sotaque tão característico.

Ele olhava sua obra recém acabada com ar de orgulho e voltou-se para mim com a boca meio torta:

— E aí?

Eu olhei e não respondi de pronto, analisando se aquilo seria realmente... aquilo!

— Heim?!! — Ele me encarava.

— Bom...eu acho que você esculpiu algo assim como um... algo parecido com... um pepino! - Eu não ousava arriscar nenhum outro palpite.

Ele inclinou-se na minha direção:

— Pô, meu! Isso aqui é uma rola!

— Rola, é?

— É, seu trouxa, e sabe para quê serve isto? — Passou o braço em volta do meu ombro e disse baixo algo que não convém publicar.

Me pegou tão de surpresa que fiquei mudo. Achei que eu não tinha entendido muito bem. Fiquei olhando de olhos muito abertos para ele.

— Quer ver como é?

Eu continuava sem fala até que alguém gritou de outra mesa:

— O, Tucano, enfia esse negócio aí no Fred!

Sem hesitar o Tucano esqueceu de mim e pegou a argila esculpida. O Fred estava de costas, debruçado ao lado de um grupo de meninas, do outro lado da sala. E sem a menor cerimônia Tucano amassou a tal da rola no traseiro dele.

O Fred nem quis saber quem foi. Virou para trás que nem um boi bravo e enfiou a mão na lata do Tucano que, sinceramente, acho que não esperava o revide tão em cima! Engalfinhados, os dois rolaram pelo chão; cadeiras caíam e a turma já formava um cerco em volta, com gritos de disputa por um ou por outro. Pelo visto aquilo era o supra-sumo do divertimento.

Confesso: eu estava trêmulo e nem conseguia sair do lugar. Meio atrás dos demais pude vislumbrar a cara do Tucano que já brotava sangue. Nunca havia visto uma briga ao vivo!!! Meus joelhos tremiam e apoiei sem querer a mão sobre minha própria argila, destruindo minha escultura. Tudo bem, eu não sabia mesmo o que estava modelando.

Para terminar aquela gloriosa manhã e a estréia na nova escola meu avental ainda foi batizado com várias solas de sapato. Meus colegas decididamente tinham ido com a minha cara!

— Meu Deus do Céu...! Não gostei muito dessa escola...

Daí para frente eu tive que me adaptar. Canetas... levava só uma. E nada de arrumar a carteira! Os lanches... não tinha jeito: quantos eu levasse, quantos me roubavam. Aliás eles roubavam tudo o que interessasse a eles. Aprendi que dinheiro eu só podia levar dentro da meia.

— Êh, pivete, me vê aí uns mangos para a cantina! — O Juca me abordou no pátio. Mascava goma e sua cara não era das melhores. Na cabeça o mesmo gorrinho de sempre.

— Eu não tenho dinheiro.

— Larga mão! Manda aí a grana!

— Já te disse que não tenho!

— Pois eu vou te dar uma geral! E se eu encontrar te encho de porrada além de ficar com o picho!

Fiquei quieto enquanto ele me revistava. Foi fácil achar o lanche, ele me deu um “cróc” na cabeça e tomou meu sanduíche. Era sempre assim. Na verdade eu não tinha nenhum amigo. Nem na rua, nem na vila e muito menos na quinta “C”!

Um dia um guri me abordou. Era mais ou menos da minha altura e usava bermudas compridas sob o avental. Todo folgado ele atravancou bem na minha frente de pernas afastadas e braços cruzados. Que pinta! Encarou-me com o queixo empinado e ar de quem se acha o máximo. Eu não costumava dar muita bola para olhares e fui passando reto.

— Você aí!! — Ele nem mudou de pose.

— Que que é?! — Perguntei já na defensiva.

— Você sabe o que é o F.B.I.?

— F.B.I.? Não sei, não. Olha...

— Eu faço parte do F.B.I.

— Ah, é? Legal.

— F.B.I. quer dizer “Federação dos Baixinhos Invocados”!

É, de fato ele era meio mignon mesmo. E sem o menor aviso o tal do garoto encheu a mão no meu ouvido que eu até senti zunir por dentro. Não deu tempo nem de pensar! Eu estava fulo de raiva! Estava farto! Mas quem iria me defender??? Comentar com meus pais acho que não ia adiantar muito.

No dia seguinte não é que o tal do F.B.I. me aparece de novo pela frente?! Vinha acompanhado de um outro. Eu olhei feio para eles mas abriram um sorriso amigável. Pena que eu confiasse tanto na inexistente boa índole do ser humano!

— Oi! Eu queria te apresentar o meu amigo, o Dalton.

Olhei para o Dalton que parecia inofensivo:

— Eu também sou do F.B.I. Você já sabe o que que é?

— Sei, sim, sei muito bem! — Eu ainda estava desconfiado. “ZUM”! Reconheço que fui muito tolo deixando-os chegarem tão perto. O tapa no outro ouvido doeu mais do que o anterior. E o ego doía mais do que tudo!.... Saíram correndo, rindo-se a mais não poder.

Naquele mesmo dia a Professora de ciências nos ajuntou em grupos e distribuiu uma lista de material para cada equipe. Deveríamos trazer o necessário para a experiência da semana que vem. A mim coube arrumar uma vela.

Reconheço que metodicidade era o meu forte. De uma forma até exagerada! Em casa fiz de tudo para enfiar a vela branca e comprida demais dentro do estojo de lápis. Virei, revirei, apertei, estiquei o estojo... e nada! Droga de vela.

Ao invés de simplesmente jogar a vela dentro da mala eu acabei por descobrir a brilhante solução! Cortar um toquinho da porção superior, mais ou menos dois centímetros. Era o que eu pensava ser mais do que suficiente para a experiência. E coube direitinho no estojo!

Na aula de laboratório, cada grupo em sua mesa, expusemos o material enquanto a Professora fazia o possível para tornar tudo aquilo muito interessante. Montamos os conjuntos e o pessoal reparou na minha vela:

— Pôxa, cara, que muquiranice, hein, meu?! - Reclamou o Barão, que infelizmente estava no meu grupo.

— Olha só o tamanho da vela do idiota! - O Paulo não estava achando graça nenhuma.

— Que vela pequena, hein? Combina com a sua?!

— Quá, quá, quá!!! Velinha!

Só que o Paulo me apertou:

— Pois tem uma coisa, seu otário. — E o tom da voz dele me fez engolir em seco.

Continuei olhando firme. Pelo menos eu procurava sempre manter a postura de quem não se deixa intimidar.

— Se esta porcaria não durar até o fim da experiência você está ferrado, moleque! Juro que desta vez não vou alisar e na saída você leva um pau!!

— É isso aí!

Eu olhei de relance para a vela, já acesa.

Mas...oh, azar! Algumas meninas certinhas resolveram interessar-se demais pela combustão de oxigênio e a Professora foi falando, falando...

— Acho melhor apagar um pouco. — Resmunguei em tom baixo.

— Não!!! — Foi a resposta unânime. — A de todo mundo está acesa.

Comecei a suar frio. Eles me encaravam, deliciados com aquele clima de terror. A torcida se dividia: “Será que apaga? Será que não?”. E as ameaças vinham aos borbotões, sussurradas, com olhares maldosos que faziam questão de deleitar-se no meu rosto preocupado.

— É, seu babaca! Você vai ver o que vai sobrar de você!! Só mingau.

E a voz da Professora que não parava nunca:

— Vocês verão que a chama perpetuar-se-á enquanto houver oxigênio na câmara.

Ôxa!... O pavio da vela quase tocava o pratinho num pequeno lago de espermacete e, de repente... Pufff!... apagou! Fechei os olhos por alguns segundos antes de encarar o pessoal. Nossas cabeças quase que formavam um cerco ao redor da mesa, tal o interesse em acompanhar bem de perto o trágico destino da vela. Fulminaram-me:

— Taí!!! Tão metido a playboy e apronta uma dessas prá cima da gente! A única tarefa dele era trazer a vela e nem isso ele fez direito!

— Pois é, esse bunda mole nunca mais vai fazer trabalho com a gente! — Eles eram todos amigos e eu era o único tolo que vinha de fora.

Senti-me pior do que um rato!

Mas eu estava de olho no Paulo, calado até então. Ele não ia deixar barato e chegou tão perto que o cabelo comprido dele até roçou no meu.

Fiquei assustado. O Paulo tinha fama de mau, era bem mais velho, com aquele ar meio de marginal. Eu não queria encrenca com ele.

— Você vai ver, seu pivete. Acabo com a sua raça na saída!

Não adiantava eu querer me explicar diante deles por isso fiquei quieto. Eu queria que todos fossem para o Inferno!

A Professora acudiu em tempo quando percebeu o tumulto em nossa mesa. Diante dela eu tentei me justificar, envergonhado e assustado ao mesmo tempo.

— Achei que ia dar......

— Não tem problema, outro grupo empresta um pedaço para vocês! Eu mesma trouxe material a mais. — Sorriu. — Sempre acontecem algumas eventualidades!

E ela foi pessoalmente cuidar de arranjar outra vela. Quase suspirei audivelmente de tanto alívio. Mas, pôxa!... por que me distraí tanto??? Só senti o metal roçar de leve na pele do meu rosto, e o barulhinho, “TIC”...num movimento rápido o Paulo cortou todo o meu cabelo, todo o pedaço acima do ouvido até a frente!!! Meu cabelo era um pouco comprido e o chumaço caiu sobre a mesa à minha frente.

Virei-me rápido, a mão tocando a cabeça onde antes estava o cabelo. Sem pensar, quase gritei:

— Pôxa, o que que você pensa que é?!!...

Não tive tempo de acrescentar mais nem uma palavra. O Paulo me segurou forte pelo antebraço, apertando a ponta da tesoura no meu pescoço. Fiquei imóvel. Ele me espetou de leve e resmungou entre dentes:

— Cala a tua boca. Nem se atreva a dar na vista aqui dentro. Não queira adiantar a tua hora, senão eu te furo aqui mesmo. É na saída que eu vou te arrebentar!

Senti medo, ódio, revolta. Ninguém tomava o meu partido! Todos se limitavam a assistir o que acontecia. Eu não sabia brigar, não sabia me defender daquele tipo de agressão. Não tinha a menor idéia do que fazer... meu ódio crescia dia a dia e eu vivia pensando no momento em que me fosse permitido me vingar!

Naquele dia escapei da escola nem sei como. Eles estavam distraídos e para mim aquela era a deixa. Cabulei a última aula e saí na surdina, me mandei. Não podia atinar com o motivo pelo qual eles me odiavam tanto. Será que era simplesmente porque eu era diferente da maioria deles, porque era ingênuo e tolo, porque era ainda uma criança, porque era branco...? Poderia haver uma infinidade de motivos mas eu não achava que nenhum deles fosse tão substancial assim.

Corri, corri, suando, com o coração batendo na garganta. Em casa menti a respeito do cabelo, disse que havia sido só um acidente. Eu mesmo tentara cortá-lo e acabara estragando tudo. Minha mãe acreditou na desculpa e tratei de acertar o corte com quem sabia fazer. Uma orelha de fora e a outra coberta estava realmente uma coisa!

Numa segunda vez fizeram um pouco pior: grudaram um monte de chiclete bem no alto da cabeça. Era impossível pensar em tirar. Dessa vez fui escondido ao barbeiro e só voltei para casa com o cabelo já bem aparado. Seria difícil explicar aquele novo acidente.

Nos dias que se seguiram eu era a chacota! Todos sabiam o que acontecera no meu cabelo. Aquilo estava começando a me marcar.

“Eles não me bateram ainda mas estou vendo a hora em que isso vai acontecer.” — Pensava comigo mesmo, apreensivo. —”Mas talvez seja até melhor, uma cara roxa não vai passar tão desapercebida como tudo o mais que eles estão fazendo. Ninguém vai poder alegar que não está vendo!”

O clima era tenso para mim desde o primeiro minuto em que eu punha os pés dentro da escola até o último. Eram ameaças morais, psicológicas e físicas, um tipo de massacre silencioso. Eu tinha sempre que estar fugindo de alguém!

Ir ao banheiro do colégio também era motivo para muito susto. Eu já ouvira contar coisas horríveis! Pancadaria, assaltos, violências sexuais até!! Eu não sabia direito o que era uma violência dessas mas também não queria saber. Só entrava no banheiro se tivesse a total certeza de que não havia ninguém lá dentro. Trancava-me na cabina e ficava empoleirado sobre a tampa do vaso para que meus pés não fossem vistos. E antes de sair sempre olhava por baixo da porta!

Suportei sozinho e de bico calado. Mas meu coração estava cada vez mais cheio de uma tremenda revolta.

Até dos estudos acabei me desinteressando, perdi todo o gosto que tinha em aprender. Eu havia pensado que seria como na escola de Interlagos, que aprenderia coisas novas e interessantes, teria amigos e poderia também brincar bastante. Mas tudo revelou-se uma tremenda decepção!

Além dos problemas com os colegas eu também tinha chegado um pouco mais adiantado na matéria do que os demais. Todas as perguntas feitas em aula eu respondia antes dos outros. Caminho errado. Aquilo valeu-me o apelido “Sabidinho”. De início realmente não me incomodava mas à medida que os meses foram passando até aquilo tornou-se insultante!

Então larguei mão de participar muito das aulas. Não abria mais a boca e, numa vã tentativa de ser aceito, dei um basta em tudo que se referisse à escola. Passei a me comportar como os demais, tentei usar jeans, abdiquei do estojo de lápis. Um caderno velho e cheio de orelhas acompanhado de uma caneta levada no bolso de trás da calça era o suficiente. Mas já era muito tarde para me enturmar. O meu rótulo estava mais do que consolidado. Mas aí comecei a ir muito mal em inglês, matéria até então desconhecida para mim. Não havia quem me ajudasse. Decidi que detestava inglês! E o apelido “Sabidinho” virou “Saburrinho”. Eu estava cheio!!!

A gota d'água foi quando de fato encostaram a mão em mim com maldade. Foi por causa do lanche. Não adiantava esconder nada, até uma bala que eu tivesse no bolso, eles me revistavam e ficavam com ela.

Então uma vez eu resolvi levar dois lanches. No intervalo eu desembrulhei o primeiro sanduíche e só fiquei esperando. Era questão de segundos, ia aparecer alguém e ficar com ele. Aí talvez eu tivesse a chance de comer o segundo sem que percebessem. Dito e feito, não demorou muito. O problema foi que nem bem o primeiro virou as costas com meu lanche e apareceu o Barão. — Passa aí o rango.

— Não dá, acabaram de levar.

— Como, “levaram”? O lanche era meu, como é que você dá prá outro cara?!!!

— Não posso fazer nada, já te disse que levaram! Mesmo assim ele fez questão de me revistar. DROGA! DROGA! DROGA! O Barão deu com o outro sanduíche enfiado no bolso do casaco, por dentro do avental. — Ah!

Ele arrancou com força o saquinho e, aí... deu-me brutalmente uma bofetada no rosto! E virou as costas sem dizer mais palavra e se foi, desembrulhando o que era meu.

Difícil dizer o que senti. Eu só fiquei olhando para ele. Vi-o afastar-se com o cabelo comprido caindo pelas costas. Não chorei. Nunca chorei. O máximo que eu podia fazer era encará-los sem abaixar o olhar, sem dar um pio, sem dizer palavra alguma. Acho que isso os irritava mais ainda e talvez estivessem exagerando só para ver até onde eu agüentaria. Mas eu não lhes daria este gosto: nem um pio, nem uma lágrima, nem uma implorada diante deles, nada! Este era o meu trunfo.

Mas, trunfo ou não resolvi dar uma comentada de leve com os meus pais. E em casa abordei o assunto sem entrar muito em detalhes:

— Sabe, mãe, é que o pessoal não vai muito com a minha cara...!

— Imagina, menino, de onde é que você tirou isso? — É verdade, mãe, sabe...? Eles...bom, eles não gostam muuuito de mim, não!

— Agora pode até ser, mas com o tempo eles vão gostar de  você, sim, Eduardo! — Não vão, não, mãe! Eu sei!

Minha mãe deu um basta na louça da cozinha voltando-se para mim um tanto espantada com a minha insistência:

— O que é que está acontecendo, afinal?

Tive que desembuchar, em partes atenuadas.

 — ..... e depois eu também estou começando a ir mal, detesto estudar lá! - Concluí. - Será que não daria para mudar de escola?!?

Minha mãe olhou bem para mim. Acho que ela não entendeu muito bem a situação.

— Mas, meu filho, daqui a pouco o ano já está acabando! Como que você quer mudar de escola agora? — Voltou-se para a louça. — Agüenta só mais um pouco, no ano que vem a gente vê o que dá para fazer e você muda de escola!

Fiquei quieto. Mas acho que mais tarde ela deve ter dito alguma coisa a meu pai e ambos decidiram ir até o colégio após terem-se informado melhor comigo do que vinha ocorrendo.

A diretora era uma mulher baixinha e gorda que eu vira poucas vezes desde que entrara naquela escola. Chamava-se Dona Ondina.

— Em que eu posso ajudá-los? — Manifestou-se ela diante de meus pais. — Problemas com o garoto?

Meus pais passaram a expor a série de pequenos atos de violência cometidos contra mim. Para espanto deles ela não pareceu surpresa. Apenas franzia de leve a testa enquanto ouvia e seus olhos ficaram um pouco mais apertados. Puxou um suspiro de dentro e então falou:

— Sim... infelizmente esta escola está bem aquém do que eu gostaria, mas esta é a realidade que vivemos hoje. As escolas públicas deixaram de ser Instituições de Ensino e acabaram tornando-se lugares aonde a violência e a marginalidade correm soltas e acabam, ao invés de coibidas, mais estimuladas ainda. É uma triste realidade, mas não há o que fazer com esse garotos... sem um policiamento real. E note que eu estou falando de policiamento mesmo, e não de simples bedéis de classes. Isto podia funcionar no seu tempo e no meu mas não funciona nas nossas escolas de hoje em dia.

— O Eduardo é pouco mais do que uma criança, não estava preparado para isto. E nós sequer sabíamos o que ocorria porque ele não nos contou até que a situação se tornasse realmente insustentável !

D. Ondina olhou minha ficha.

— Estava tendo ótimas notas no início mas é evidente que o seu rendimento caiu muito. É uma fase crítica. O conceito de “Coletivo ganha muito significado. Realmente esta é uma fase difícil e decisiva no que diz respeito ao futuro da sua personalidade. O Eduardo é um aluno diferenciado na quinta “C”, mas a turma é tremendamente problemática, tem antecedentes de longa data.

Meu pai já estava cansado de tanto palavreado e nenhuma sugestão sobre o que seria feito para melhorar a situação.

— Bem...e como ficamos?

Dona Ondina apoiou as mãos firmemente sobre a mesa e falou categoricamente:

— Minha opinião é definitiva: Seria melhor que os Srs. realmente pudessem tirar o garoto da escola.

— Isso não é possível agora, estamos passando por sérios problemas financeiros! — Interrompeu minha mãe.

— Infelizmente a escola não pode tomar nenhuma medida mais séria. Como eu já disse, isto requer um carro de polícia na frente do colégio e policiais que pudessem estar direto aqui dentro para manter aquilo que entendemos como “um mínimo de ordem”. Na verdade, seria até melhor alguns leões-de-chácara! — Ela procurava descontrair o ambiente. — Mas os Srs. sabem tão bem quanto eu que a prefeitura não pode arcar com este ônus. Estamos de mãos atadas.

Não havia nada a ser feito. No fundo eu já sabia disso desde o início. Meus pais orientaram-me a ficar longe dos meninos e, no ano que vem, eu iria para outra escola. Como se fosse possível ficar longe deles!...

***